quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“PARA ONDE VÃO OS GUARDA-CHUVAS”
de AFONSO CRUZ

Era uma vez o equilíbrio notavelmente/absolutamente/absurdamente/infinitivamente/moralmente/esteticamente desequilibrado




Num ano em que editou os infanto-juvenis “O livro do ano” e “Assim, mas sem ser assim”, o exercício teatral de “O cultivo das flores de plástico” bem como mais um tomo da “Enciclopédia da estória universal”, o multidisciplinar Afonso Cruz consegue, finalmente, lançar “Para onde vão os guarda-chuvas” (Alfaguara, 2013), um projeto no qual trabalhava há três anos e que vinha sendo adiado devido à sua complexidade e a outros compromissos que iam surgindo no seu empolgante percurso.

Ao longo de mais de 600 páginas, Afonso Cruz percorre um universo digno de umas peculiares mil e uma noites, que fazem o leitor entrar num Oriente efabulado e apaquistanado onde passado, presente e futuro servem de palco para um cenário que traz a mais profunda das dores, que é a perda de um filho, tendo como inspiração maior um conselho dado por Gandhi a um hindu destroçado por uma idêntica tragédia.

Repleto de surpresas e fortemente alicerçado no poder que a imagem representa enquanto objeto contextual, “Para onde vão os guarda-chuvas” começa com uma História de Natal dedicada a quem não acredita da mítica figura do velho das barbaras brancas e fatiota vermelha e, de uma forma, crua Afonso Cruz relata e ilustra uma outra visão da época natalícia que, ainda assim, recompensa os mais bem-comportados.

Tendo como figura central Fazal Elahi, um “marreco social” dono de uma fábrica de tapetes e que “gostava de ser como as paredes”, “Para onde vão os guarda-chuvas” é como que uma caixa de Pandora repleta de maravilhosas personagens, algumas das quais forçando uma tangente com outras obras do autor.

Numa sociedade onde a (in)tolerância religiosa é condição justificável para tudo, Fazal Elahi partilha uma casa, da qual se viam “as montanhas e o céu”, com a sua irmã de dentes desalinhados, Aminah, cujo sonho é casar com um rapaz de olhos azuis e que lhe dê uns sapatos vermelhos e perfumes estrangeiros. O primo Badini, um dervixe enorme e mudo que fala pelos cotovelos, Bibi, a sua mulher e Salim o seu cabritinho herdeiro, são os outros inquilinos da habitação.

A completar o eclético desfile de personagens surge um mulá dogmático, um general cujas vestes acerejadas tentam esconder intolerâncias e violências várias, hindus que se convertem ao islamismo, solados equivocados, prostitutas com e sem burcas, um anjo da guarda e muitos, muitos outros.

Todos estes ingredientes formam um prato absolutamente encantador, cuja escrita maravilhosamente encantada de Afonso Cruz nos deixa entregues a um dos mais deliciosos livros publicados em Portugal nos últimos anos e que tem, na metafórica visão estratégica de um jogo de xadrez, uma lição de vida, de comportamento e de existência.

Tendo como cenário uma sociedade onde a religião assume contornos de justificação moral para os mais bárbaros atos de violência, as mulheres são um ser menor e o trabalho infantil é uma necessária e bem-vinda banalidade, “Para onde vão os guarda-chuvas” é um livro cheio e que preenche uma obra maior que transcende a mera função romanceada que, através de uma narrativa ímpar, atinge o epicentro da pessoa que o lê. Mais que um livro, estamos perante um alimento para a alma e para os sentidos, características sempre presentes na obra de Afonso Cruz, sem dúvida um dos mais carismáticos e singulares escritores da sua geração e que tem na ponta dos dedos uma arrebatadora noção de humanidade.

Ao longo do livro, para além das muitas imagens cujo objeto central é um tabuleiro de xadrez, Afonso Cruz fez pequenas ilustrações, refugiando-se na sapiência dos fragmentos persas – frases, fruto da eventualidade da escrita de um anónimo do século I que foram enciclopedicamente recolhidas por Téophile Morel – para contextualizar a ação e o pensamento dos personagens.

E como a perda é o sentimento abrangente deste livro, Afonso Cruz deixa um apelo nas últimas páginas, encorajando o leitor a relatar uma perda semelhante ao que sucede a Fazal Elahi. Também a editora quis deixar uma nota especial no final da obra e oferece uma prenda a quem descobrir uma diferente palavra que apenas se pode encontrar em dois dos cinco mil exemplares da primeira edição desta obra.

In Rua de Baixo

THESE NEW PURITANS @ TMN AO VIVO

O LADO OBSCURO DA LUA




Com um considerável culto por terras nacionais e em ano de lançamento do seu terceiro disco de originais, o complexo e de toadas mais clássicas “Field of Reeds”, o agora trio These New Puritans regressou a Portugal e deu um brilhante concerto na aconchegante sala ribeirinha do TMN ao Vivo, que apenas pecou pela escassez de público.

A transformação sonora que a banda dos gémeos Jack e George Barnett e Thomas Hein tem vindo a registar desde do mais punky “Beat Pyramid” revela a constante espiral evolutiva que os britânicos fazem questão de ser sinónimo da sua música. Hoje, num registo onde a presença de instrumentos como uma trompa ou uma trompete confere uma maior solenidade ao seu ambiente, os britânicos These New Puritans têm em “Field of Reeds” uma majoração do seu talento enquanto intérpretes de uma arte que parece sedeada algures num satélite lunar que mistura eletrónica, um certo revivalismo punk e laivos de um neoclassicismo abrasivo.

Ao longo de mais de uma hora, as dezenas de espetadores que se deslocaram até à sala perto do Cais do Sodré vibraram com um alinhamento que teve por base o mais recente disco de originais da banda, que também recorreu a algumas faixas do brilhante “Hidden” para dar outras tonalidades à sua atuação. Curiosamente, ou talvez não, “Beat Pyramid” não marcou presença na noite de ontem.

Os primeiros sons que chegavam do palco, ainda sem todos os elementos da banda presentes, tinham como companheiras ténues luzes brancas que serviam de farol para o mecânico rugir de motores automóveis que aceleravam, a espaços, numa imaginária via rápida. De branca para roxa, a tonalidade sobre o palco era alvo de uma metamorfose que servia de entrada para um labirinto sonoro sinistro, apenas quebrado pelos acordes que saíam do baixo de Jack Barnett, que anunciavam assim “Spiral”, uma das mais densas composições de “Field of Reeds”.

Para além do formato trio, os These New Puritans contam com a companhia da doce e etérea voz da portuguesa Elisa Rodrigues, que lança uma espécie de feitiço sobre a música da banda e, ao entrelaçar-se com o espetro vocal de Jack, inicia um competente diálogo que, em conjunto com clarinete, trompete e piano, dá origem a um melódico e controlado caos sonoro, sublinhado pela eletrónica que resulta dos samples de Hein e dos loops de George.

A solenidade e jogos musicais proporcionados entre a pujante bateria, baixo e samples servem de apresentação a “Fragment Two”, um dos momentos mais saudados pelo público. O silêncio também marca a sua presença e cola sons ao quebrar fronteiras entre “extremos” orgânicos e maquinais. Ao vivo, as composições mais contidas de “Field of Reeds” crescem e a ensimesmada e jazzy “The Light in your Name” parece saída de um conto de fadas assombrado e enche a sala de uma bela melodia noturna que incendeia o jogo vocal entre Elisa e Jack. Piano e bateria engrandecem o negrume e teme-se a presença de Nosferatu na sala.

O primeiro recurso a “Hidden” chegou através da curta “Three Thousand” e, durante cerca de três minutos, a bateria pauta o ambiente e a voz de Jack assinala de forma sublime o ambiente marcial que ecoa na sala. Sons de vidro a quebrar tornam a performance mais teatral e punk. Os momentos seguintes têm o disco de 2010 como origem e o arábico “Attack Music” faz abanar as almas presentes, que se deixam embalar pelo sedutor hipnotismo maquinal que sai do palco. A eletrónica libertada por Hein encontra um porto de abrigo nas vozes de Elisa e Jack, que são abraçadas pela intervenção compassada da bateria.

Aos primeiros acordes da muito solicitada “We Want War”, a sala vibra de forma intensa. Naquele que é um dos exercícios que mais bem define o ADN dos These New Puritans, a faixa retirada de “Hidden” reflete o quebrante musical da banda e permite estabelecer o submundo sonoro habitado pelo trio britânico, que muitas vezes fixa raízes na interpretação minimal de uma escuridão urgente. As várias camadas sonoras de “We Want War” e a entrega dos músicos em palco resultam na maior ovação da noite.

Jack solta um “obrigado” e o concerto prossegue com “Organ Eternal”, mais outra peça de “Field of Reeds” que, aos primeiros acordes, encontra resposta nas palmas do público. Às primeiras notas saídas das teclas eletrónicas do órgão, George alheia-se da bateria e entrega-se aos loops que são ocasionalmente interrompidos pelos uivos samplados por Thomas Hein. Jack canta de forma sussurrada e a ténue cadência vocal é intencionalmente assaltada pelos outros elementos orgânicos em palco.

Esta magia sincopada encontra seguimento em “Field of Reeds”, faixa que dá o nome ao mais recente álbum da banda e que se movimenta entre momentos de puro e tranquilo deleite. Sem o baixo, Jack Barnett assume o microfone por completo e, por momentos, sentimos que estamos a caminhar numa qualquer floresta encantada onde fantasmas dos islandeses Sigur Rós seguem o seu caminho. Do palco, nascem luzes que parecem procurar almas incautas que vagueiam na sombra.

Antes da breve saída de palco, os These New Puritans anunciam “V (Island Song)” ,e ao longo de mais de dez minutos, as vozes misturam-se com a música e o resultado é mais um momento de grande intensidade. Os sons resultam na medida e lugar certos e do aparente caos surge a harmonia. No final, os músicos abandonam à vez o palco, que fica entregue a si próprio, ao som das palmas do público e de um omnipresente feedback.

O regresso, quase imediato, é feito com uma reinterpretação de “We Want War” e o público é presenteado com a brutal entrega dos músicos. O sampler domina o ambiente e, por momentos, sente-se a panfletária herança do manifesto dos suíços The Young Gods, que vão atuar nesta mesma sala no final da próxima semana. O último tema da noite seria um “Orion” em tom operático e brilhante, que se revelou no canto do cisne da brilhante e cativante atuação dos These New Puritans, que se assumem como uma das mais interessantes bandas da atualidade.

Antes do concerto dos These New Puritans o palco esteve entregue à solitária alma de Erica Buettner, uma norte-americana que adotou Portugal como sua casa e tem no registo indie-folk a sua imagem de marca. Num universo próximo de Joan Baez ou Joni Mitchell, Buettner cantou meia dúzia de canções cujo ambiente tranquilo e sedutor soube arrancar merecidas palmas em crescendo junto dos poucos que já se encontravam na sala. Com apenas um álbum editado, de seu nome “True Love and Water”, a simpática e cativante norte-americana tocou canções como “Parisian Clouds”, “Wolf Among Wolfs”, algumas das quais parte do reportório de uma colaboração resultante com o coletivo “The Resident Cards”. Apenas com uma viola como companhia, Erica Buettner deixou água na boca e o seu perfil tímido e intenso merece especial atenção num futuro próximo.

In Palco Principal

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Maria João Lopo de Carvalho em entrevista

«Não sendo eu feminista acredito que a mulher portuguesa é singular e, para mim, o símbolo máximo da resiliência e coragem. Somos metade de Portugal e mães da outra metade»



Com o pretexto do lançamento de “Padeira de Aljubarrota” estivemos à conversa com Maria João Lopo de Carvalho, ficando a conhecer um pouco do esquema de trabalho da autora, as suas fontes de inspiração e mestres, assim como o porquê de fazer um livro que se assume como um exercício metafórico sobre um Portugal que faz das fraquezas forças e encontra heróis improváveis que se superaram a si mesmos.

Em “A Marquesa de Alorna” explorou a vida de uma mulher rebelde e fez um elogio à liberdade e ao amor que sente por Portugal. Em a “Padeira de Aljubarrota”, a esse amor à pátria junta uma noção metafórica de resistência e coragem. Serão estes dois romances uma reflexão muito própria sobre o Portugal recente?

Os meus livros refletem sobretudo um eco do amor a Portugal por parte dos portugueses. É uma voz intemporal que cruza a sociedade de ontem e de hoje baseada na esperança de que «amanhã» haja também esta mesma resiliência e capacidade de lutar pelo país com a habitual coragem de uma nação que se diz «valente e imortal».

Explora a lenda da Padeira e os acontecimentos de 1385 de uma forma bastante pertinente e apaixonada. Quais foram as maiores fontes de inspiração para fazer um romance como a “Padeira de Aljubarrota”?

Antes e primeiro que tudo o meu amor a Portugal e à nossa Historia. Depois, o meu mestre: Fernão Lopes; e a minha maior luz: Nuno Alvares Pereira.

No livro cruza as vidas de D. Beatriz de Portugal, rainha-infanta, e Brites de Almeida, uma das maiores lendas nacionais. Se de um lado temos a “causadora” da Batalha de Aljubarrota, do outro está a maior heroína do conflito. Como foi trabalhar esses intrincados extremos?

Sempre desconfio da História quando é contada a uma só voz. Na batalha de Aljubarrota havia os dois lados da «moeda» Ao descobrir Beatriz de Portugal tive de fazer um exercício para não me deixar ir atrás dos acontecimentos, mas sim de analisar as causas da batalha de Aljubarrota, Atoleiros e Valverde pelo lado de Castela. Quem tinha razão? Haveria uma só «razão?» Estaria certa a causa de Beatriz, símbolo da nobreza e dos filhos primeiros? Ou de Brites, metáfora do povo e dos filhos segundos que estavam pelo mestre de Avis. Penso que não há, na crise de 1383-85, uma só versão da História. Há sim as várias «estórias» da histórias que ajudarão o leitor a tomar um ou outro partido. E isso é que pode ser mais interessante neste livro.

Este livro resulta num elogio ao género feminino. Sente que a mulher portuguesa tem dentro de si “uma costela” de Brites de Almeida?

Sinto e mais: tenho a certeza. Não sendo eu feminista acredito que a mulher portuguesa é singular e para mim o símbolo máximo da resiliência e coragem. Somos metade de Portugal e mães da outra metade.

Os seus romances históricos são muito ricos em pormenores e patenteiam a noção de uma forte investigação. Por norma, como realiza o processo e quanto tempo demora a preparar uma obra deste género?

Nada nesta vida se faz sem trabalho. Neste caso seria impossível deitar mãos à obra sem muito estudo e investigação. Passo pelo menos seis meses só a ler, a estudar e a investigar. Como costumo dizer, preciso de viajar 600 anos para trás e deixar-me lá ficar. Só quando tenho a época em questão como presente do indicativo, é que ouso começar a escrever. Depois são outros seis, sete meses isolada do mundo. Dias e dias inteiros a escrever, a corrigir a verificar fontes e a pintar o «quadro»!

De certa forma, o resultado dos acontecimentos ocorridos no final do século XIV foram um forte incentivo para Portugal começar a investir nos Descobrimentos e a formar um forte império. Tendo em conta a conjuntura atual, que tipo de “abanão” deveria Portugal sentir para dar a volta por cima?

Esta crise de austeridade que vivemos já é um forte abalo para não voltarmos a cometer os erros do passado. Temos de aprender todos a viver de outra forma e lá está, tal como no século XIV, a não desprezarmos a nosso força interior e a nossa capacidade de nos lançarmos a novos desafios. Ontem desvendamos o mar e conquistamos o mundo; hoje o incentivo é precisamente esse: superarmo-nos a nós próprios e conquistarmos o futuro.

Tem perto de 50 obras publicadas. Da literatura infantil aos títulos históricos, passando pelo romance ou a elaboração de manuais escolares, a Maria João Lopo de Carvalho é uma referência da literatura nacional. Dos géneros que referimos qual lhe dá mais prazer?

Completam-se. São desafios diferentes. Não posso dizer que me dá menos gozo ir buscar-me a mim própria aos doze anos e escrever de acordo com essa voz interior que ainda cá mora; como também não posso deixar de sentir um enorme gosto em tornar simples uma história complexa e com ela levar os leitores a refletirem sobre o nosso passado coletivo. Ao fim ao cabo, sou apenas uma cantadora de histórias. E é esse o meu maior prazer!

O que podemos esperar de Maria João Lopo de Carvalho no futuro próximo? Mais incursões históricas, aventuras no espetro infanto-juvenil, um romance…?

Tudo se conjuga. Para já o que posso dizer é que a ultima palavra deste romance «Padeira de Aljubarrota» é «mar».Talvez seja um presságio do futuro…

In Rua de Baixo

“Padeira de Aljubarrota”
de Maria João Lopo de Carvalho

Elogio metafórico à mulher portuguesa



Maria João Lopo de Carvalho, uma das mais ativas e preponderantes vozes portuguesas do mercado livreiro nacional, tem cerca de meia centena de obras publicadas, entre títulos infantojuvenis, manuais escolares, romances e obras de cariz histórico.

Depois do sucesso com “A Marquesa de Alorna”, a autora natural de Lisboa volta aos grandes romances históricos com “Padeira de Aljubarrota” (Oficina do Livro, 2013), um livro que aborda, de diferentes perspetivas, a lenda da famosa Brites de Almeida, mulher de armas e uma das grandes referências no que toca à estoicidade e resistência nacional face às adversidades.

De uma extraordinária riqueza no que toca aos pormenores, “Padeira de Aljubarrota” é um grito de revolta contra as crises várias e intemporais, fazendo da coragem e determinação no feminino a melhor das metáforas contra o período atual do Portugal de hoje, alvo de assinalável crise e vítima da desesperança coletiva.

No centro desta muito interessante e cativante narrativa está Brites de Almeida que, envolta de um ímpar fôlego patriótico, enfrenta as intrigas resultantes da política da rainha-infanta D. Beatriz de Portugal, uma forte aliada de Castela.

Mas não apenas de espírito guerreiro vive este livro. Lopo de Carvalho dá-nos uma visão mais feminina e deliciosamente sedutora de uma mulher que tinha consigo outras armas para levar de vencidas batalhas no campo dos sentimentos.

Dividido em quatro partes, “Padeira de Aljubarrota” denota influências dos estudos do mestre Fernão Lopes e, através de um confronto de Beatrizes, leva-nos de volta aos primeiros passos da afirmação e extensão da noção de portugalidade, que tem marcada nas suas raízes feitos – lendários ou não – de personalidades que ajudaram à atual definição patriótica.

De forma a colorir ainda mais esta cativante estória, as páginas centrais de “Padeira de Aljubarrota” mostram algumas imagens que retratam a narrativa que Maria João Lopo de Carvalho oferece ao longo das mais de 500 páginas deste romance, onde a intriga, a ação, a coragem e a resiliência de um povo estão gravadas a fundo no perfil da conhecida padeira que tinha seis dedos em cada mão.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Scott Matthew
“Unlearned”

Direto ao coração



Ainda com os ecos do fantástico concerto que o australiano Scott Matthew deu no Pequeno Auditório do CCB no passado dia 14, integrado no cartaz da edição 2013 do Misty Fest, bem presentes, cabe agora fazer uma análise a “Unlearned”, a obra que serve de inspiração maior para a recente digressão do autor de álbuns como “There Is an Ocean That Divides and with My Longing I Can Charge It with a Voltage That's So Violent to Cross It Could Mean Death”.

Sendo um álbum de versões, “Unlearned” é muito, mas muito, mais do que isso. Matthew escolheu 14 canções que refletem a sua vida em determinadas fases. Estas canções, revistas e transvestidas, são fragmentos de um homem simples, sincero, talentoso e dono de uma das mais marcantes vozes da atualidade.

Eclético, Matthew, recorda clássicos de gente como os Bee Gees, Neil Young, Jesus & the Mary Chain, Radiohead, Joy Divison ou Whitney Houston. O registo acústico é o ambiente que envolve “Unlearned”, um disco feito com um deslumbrante carinho e que levou Scott a convidar Jurgen Stark para a guitarra, M Eugene Lemcio para as teclas, Clara Kennedy para o violoncelo e Celina da Piedade para o acordeão. Neil Hannon teve ainda o privilégio de cantar em “Smile”, um lindíssimo tema original de Charlie Chaplin, e Ian Matthew abrilhantou a versão de “Help me Make it Throught the Night”, uma balada da autoria de Kris Kristofferson que já foi também alvo de uma versão de Elvis Presley.

Sendo, na essência, um dos discos mais bonitos editados neste ano que se aproxima do fim, “Unlearned” revela a sensibilidade de um dos artistas mais especiais das últimas décadas. Scott Matthew consegue mesmo fazer-nos sentir que estamos perante composições em nome próprio, tal foi a intensidade e dedicação com que as levou para estúdio e, mais recentemente, para os palcos. Desde os primeiros momentos de “To Love Somebody” até aos últimos acordes de “Annie’s Song”, passando pela versão de “Love Will Tear Us Appart”, é impossível não sentir coração e alma a derreterem com a voz quente de Matthew, e os arranjos minimalistas e maravilhosamente assertivos que transformam as canções originais em pedaços da mais pura filigrana musical.

Logo no início do disco, a transformação do hit baladeiro dos Bee Gees “To Love Somebody”, ainda sem o registo em falsete, numa profunda composição solene onde as teclas e a cordas tímidas acompanham na perfeição a voz de Matthew, é uma excelente amostra do que podemos esperar de “Unleraned”. Sem qualquer tipo de urgência e de uma forma tranquila e doce, é possível sentir a transformação de uma descontraída composição como o é “I Wanna Dance With Somebody” numa canção completamente apaixonada e febril.

Existe também uma grande dose de coragem ao fazer-se versões de canções maiores que a própria vida, como o são “There's a Place in Hell for me and my Friends”, de Morrisey, ou, acima de tudo, “Love Will Tear Us Appart”, saída do génio de Ian Curtis, ou “Harvest Moon”, esta última tida, com uma boa dose de ironia, pelo cantor australiano como melhor que o original de Neil Young.

Em “Smile”, uma arrebatadora versão de um original de Charlie Chaplin, é impossível não sentir uma forte pontada no coração ao ouvir as cordas do ukelele de Matthew serem trespassadas pelas gargantas do vocalista dos Divine Comedy que, a meio da viagem, partilha o seu lugar com a poesia que brota da garganta angelical de Scott Matthew. Também fabulosas são as novas abordagens de “Jesse” e “Total Control”, canções que têm a sua génese nos trabalhos de Robert Flak ou no dos The Motels, de Jeff Jourard.

“Unlearned” é um disco que irradia sensibilidade e é vivamente aconselhável, senão imperdível, para quem sente a música de uma forma especial, como a banda sonora de uma vida inteira. Peça musical invulgar, este trabalho de Scott Matthew denota a extraordinária e bela melancolia que aponta em direto ao coração e tem no silêncio um poderoso aliado.

Alinhamento:

01 To Love Somebody
02 I Wanna Dance With Somebody
03 Darklands
04 Jesse
05 Smile com Neil Hannon
06 Help Me Make It Through The Night com Ian Matthew
07 No Surprises
08 L.O.V.E
09 Love Will Tear Us Apart
10 There`s A Place In Hell For Me And My Friends
11 Harvest Moon
12 I Don`t Want To Talk About It
13 Total Control
14 Annie`s Song

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

The Killers
“Direct Hits”

Bom prato, mas requentado



A proximidade com a época natalícia funciona como um motor propulsor no que às edições discográficas diz respeito, com particular incidência nos familiarizados “Best Of”. Quando tal acontece, estamos, vulgarmente, perante uma de três situações: o disco deriva de uma imposição contratual por parte da editora; a banda revela problemas criativos e o seu fim está, eventualmente, próximo; fecha-se um ciclo. No caso de um banda como os norte-americanos The Killers, que contam com uma década de existência e “apenas” quatro álbuns de originais, a edição de “Direct Hits” enquadra-se na primeira opção, como os próprios confirmaram recentemente.

Os mais de vinte milhões de discos vendidos até hoje tornam a banda natural de Nevada, Las Vegas, que tem na figura do seu vocalista, Brandon Flowers, o seu maior ícone, como uma importante referência nestas coisas da música. Em 2004 editaram “Hot Fuss”, o seu mais bem-sucedido trabalho em termos comerciais, e lograram subir aos lugares cimeiros dos tops mundiais através de um som que bebia influências no rock mais alternativo, assim como num revivalismo punk e new wave. Em entrevistas, aquando do lançamento do seu primeiro disco de originais, os próprios The Killers afirmavam que tinham muito carinho pelo trabalho de bandas como os New Order, The Cure, The Smiths, The Cars, Duran Duran, David Bowie ou Bruce Springsteen, sendo que estes nomes eram as suas maiores e assumidas influências.

De forma mais ou menos clara ou evidente, “Hot Fuss” e depois “Sam’s Town” - para muitos o mais sagaz trabalho do coletivo – traziam no seu som pedaços das referidas influências e, no caso do álbum de 2006, nota-se um crescimento musical assinalável, onde os ecos da obra de Bruce Springsteen eram notórios e muito bem-vindos. Os The Killers cresciam, davam muitos concertos, recebiam prémios e afirmavam-se junto de um público indie, mas nunca perdendo de vista o universo mais mainstream. Essa “metamorfose” seria completada nos passos seguintes, sendo “Day & Age” e “Battle Born” registos que situavam Flowers e companheiros em universos mais rock, por vezes muito dançáveis, outras mais contidos, mas manifestamente diferentes dos primeiros tempos.

E eis que surge “Direct Hits”. Muitos perguntam a pertinência da edição, outros ficam deliciados por verem compilados alguns dos temas mais emblemáticos da banda. Sim, hoje facilmente podemos fazer as nossas próprias “compilações”, graças a ferramentas como o itunes e similares, mas um registo em versão discutível de “o melhor de…” pode ser um objeto auditivo pertinente. Ainda que na construção do mesmo possa residir a grande fatia do seu sucesso e, talvez nesse aspeto, “Direct Hits” possa estar aquém do pretendido. Falamos em concreto da discutível organização cronológica da apresentação de “Direct Hits”, que revela uma preguiça de ideias, tanto na edição normal desta compilação, como na versão deluxe, que conta com mais três temas.

O disco começa com quatro belas canções de “Hot Fuss”. São elas: “Mr Brightside”, talvez o maior hino da banda, “Somebody Told Me”, “Smile Like you Meant” e “All These Things that I’ve Done”. O glamour indie disco do primeiro registo de originais dos The Killers é absolutamente irresistível e ficam na cabeça sons e frases como “I’ve got soul, but i’m not a soldier”.

Depois, é a vez de “Sam’s Town” brilhar, mais maduro e com uma escrita perto do registo de mestres como Bruce Springsteen ou Tom Petty, onde o rock and roll desponta com sobriedade. Houve quem afirmasse que este disco estava entre os melhores das últimas décadas. Exagero ou devoção desmedida, as reações ao álbum datado de 2006 transformaram os The Killers numa das maiores bandas do planeta rock. “Direct Hits” regista três momentos desse disco. “When you Were Young” e “Read My Mind” fazem como que a ponte entre sons indie e toadas associadas à América, e apontavam o futuro sonoro de Flowers e comparsas. Ainda que muito subjetivo, estranha-se, ou não, a opção de colocar no alinhamento “For Reasons Unknow” e deixar de fora a fantástica “Bones”.

Já em territórios assumidamente rock e em diálogo permanente com a grandiosidade dos grandes estádios e arenas onde os The Killers exibiram os seus “sucessos diretos”, “Day & Age” dá três músicas a esta compilação. “Human” é uma faixa coberta de uma tensão dançável, alimentada pelas teclas de um sintetizador omnipresente, mas que fica uns furos a baixo da intensidade de “Spaceman”, talvez a composição maior da banda nesta fase. Num registo mais intimista “A Dustland Fairytale” é um exercício que aponta para o exorcismo de sonhos perdidos.

Na ressaca de uma mega digressão que ocorreu a propósito de “Day & Age”, a banda fez uma longa pausa e tal hiato terminaria com a edição de “Battle Born”, lançado em 2012, um disco que foi sinónimo de um “retrocesso sonoro”, onde as guitarras assumiam maior protagonismo. “Runaways” é um exemplo disso e faz um passeio até aos recantos da memória dos anos 1980. “Miss Atomic Bomb” e “The Way t Is” continuam esse caminho e misturam ecos sintéticos com cordas que se soltam, transformando-se em paisagens, com a América sempre em mente, desculpando-se até a heresia de uma certa aproximação a gente como Meat Loaf.

Mas “Direct Hits” apresenta também duas e interessantes novidades. Se o synthpop de “Shot at the Night” é o reflexo do trabalho da banda com Antony Gonzalez, membro dos franceses M83, “Just Another Girl” é um regresso aos tempos de “Day & Age”, pois os The Killers voltam a trabalhar com o produtor Staurt Price.

Resumindo, ou talvez não, “Direct Hits” é um trabalho algo passivo e preguiçoso, mas tem excelentes canções que, de certa forma, retratam a evolução sonora dos The Killers. Fazer uma compilação com apenas quatro álbuns editados pode parecer estranho, mas a sua pertinência será mais bem analisada daqui a uns tempos, de preferência, esperemos, depois da edição de novos trabalhos. Até lá, “Direct Hits” é um disco envolto de fantasmas do passado, com uma leve esperança face ao futuro. Mas que dá vontade de ouvir, dá!

Alinhamento:

01.Mr Brightside
02.Somebody Told Me
03.Smile Like You Mean It
04.All These Things That I’ve Done
05.When You Were Young
06.Read My Mind
07.For Reasons Unknown
08.Human
09.Spaceman
10.A Dustland Fairytale
11.Runaways
12.Miss Atomic Bomb
13.The Way It Was
14.Shot At The Night
15.Just Another Girl

Classificação do Palco: 7/10

In Palco Principal

terça-feira, 19 de novembro de 2013

“A VIDA DE ADÈLE – CAPÍTULOS 1 E 2”
de Abdellatif Kechiche

Azul, a cor do desejo



Grande vencedor do mais recente Festival de Cannes, onde pela primeira vez os júris premiaram duas atrizes em simultâneo, “A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2” é um poderoso tour de force que assenta as suas forças e conteúdos nas deslumbrantes atuações das galardoadas Adèle Exarchopolus e Léa Seydoux e faz o realizador Abdellatif Kechiche regressar a temas como o amor e as difíceis dores do crescimento.

Baseado na novela gráfica de Julie Maroh, “A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2”, que fez parte do cartaz do Lisbon & Estoril Film Festival 2013, conta a conturbada predestinação de uma adolescente que se sente “atraiçoada” pela sua sexualidade mas que, de início, luta contra o facto de forma a integrar-se numa pequena comunidade proletária e conservadora.

Os primeiros minutos do filme levam o realizador tunisino, que ficou conhecido pela direção de filmes como “Vénus Negra” ou “A Culpa de Voltaire”, a mostrar banais cenas do quotidiano da vida de Adèle enquanto estudante ou no conforto do lar. Os planos aproximados e a oscilação programada da câmara de Kechiche revelam pormenores mas ao mesmo tempo assume-se como um espelho bipolar que isola ou interioriza o personagem.

O contexto “escolar” permite também a exploração dos dramas da vida de adolescente. O flirt induzido por uma certa pressão do núcleo de colegas mais próximos de Adèle leva-a a envolver-se, com Thomas, um estudante local, mas tal fugaz relação apenas vai deixar a jovem mais confusa. Refugiada em si mesma e na procura de construir o complicado puzzle emocional do ato de crescer aceita um convite de Valentin, um amigo homossexual, e ao visitar um bar gay sente que o amor não tem sexo.



As dúvidas, ou certezas, aumentam na mente de Adèle quando vê na rua uma jovem de cabelo pintado de azul. Instintivamente, Adèle sente que dentro de si algo nasceu sente que está possuída por algo maior que ela quando (re)encontra Emma num bar de lésbicas.

Estas são algumas das linhas com que Abdellatif Kechiche faz evoluir a sua nova obra que tem o condão de deixar o espetador envolvido – e por vezes incomodado face aos limites que a câmara impõe – frente ao écran durante cerca de três horas absorvendo um intenso drama que capta a fundo a essência do ser humano e traça um fortíssimo retrato do amor, do sexo e das relações interpessoais.

Entre Adèle, uma jovem pragmática e Emma, uma estudante de Belas-Artes sonhadora, explode um sentimento irracional que explora e tende a derrubar fronteiras emocionais e físicas. Se por um lado Kechiche mostra alguém sem grande experiência de vida que apenas conhece a paixão através dos livros, do outro está uma mulher mais velha, desinibida e consciente. No fundo estamos perante antíteses, mulheres que apenas têm no amor que sentem pela outra a maior das afinidades.

Ao longo de todo o filme, mas principalmente na fase de conhecimento entre as personagens principais, o realizador tunisino serve-se de um inteligente jogo metafórico que traz à tona de forma vincada as diferenças entre Adèle e Emma. As ostras por oposição à bolonhesa, é um desses exemplos que dão origem a uma linha de pensamento que desagua na sexualidade muita exposta deste filme.



Tal como já tinha explorado em “A Esquiva”, Kechiche traz à tona a obra de Marivaux e “A Vida de Marianne” serve para contextualizar, na primeira fase do filme, as ações dos personagens mas face à maravilhosa interpretação da ainda pouco experiente Exarchopoulos pouco mais existe a dizer senão que é um dos mais intensos papéis que assistimos nos últimos tempos.

A exposição que a jovem parisiense de 19 anos está sujeita neste filme confere-lhe uma estonteante presença e não seriam muitas atrizes que conseguiriam aguentar a intensa e explosiva cena de sexo – ou paixão? – que protagoniza com Seydoux e que leva os presentes na sala de cinema a testarem a sua capacidade de resistência e saturação face a tão íntimas imagens. A matemática cinematográfica de Kechiche atinge o seu auge numa sucessão de grandes planos dos corpos das jovens que chega a roçar na exploração do ato do desejo mas que consegue, a esforço mas com distinção diga-se, situar-se nos limites do suportável. Mais que uma cena de sexo explícito, Adèle e Emma amam-se de forma absolutamente verdadeira, quente e apaixonada através de uma orgânica luxuriante.

A forma como que este filme trata a questão da traição e do arrependimento revela um sentimento urgente face às diferentes fases de um relacionamento que pode estar intrinsecamente associado a cenários meramente obsessivos. Uma discussão pode levar a uma rutura e ao espetador reserva-se o papel de rever os minutos passados e o que o futuro ainda pode oferecer. As personagens de “A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2” crescem, recuam, avançam e implodem. São alvo de uma (re)construção assente em camadas de fragilidade e solidão.

Depois da uma idade de inocência sentimos de fato que o azul é a cor da paixão mas também da desilusão e perda pois a linguagem cinematográfica de “A Vida de Adèle – Capítulos 1 e 2” é o reconhecimento que o cinema pode ser um reflexo complexo da realidade.

In Rua de Baixo

“UMA CANÇÃO DE EMBALAR”
de MARY HIGGINS CLARK

O Regresso da Rainha do Suspense



Com mais de 150 milhões de livros vendidos um pouco por todo o planeta, Mary Higgins Clark é uma das mais profícuas autoras dentro da chamada literatura de suspense, tendo já sido alvo de vários tipos de reconhecimento pela sua obra sendo, a eleição para o Grand Master of Edgar Award de 2000, por parte da Mystery Writers of America – entidade que presidiu posteriormente -, uma das maiores provas da sua intrínseca qualidade.

A dedicação à literatura surgiu depois de contrair matrimónio, pois chegou a trabalhar como secretária e hospedeira, ocupações que a autora norte-americana de livros como “Onde Estão as Crianças” e “Lar Doce Lar”, afirmou já, em algumas entrevistas, terem sido experiências importantes no que toca ao seu crescimento enquanto escritora.

Aos 83 anos a autora continua em grande forma e, a recente edição de “Uma Canção de Embalar” (Bertrand Editora, 2013) traz mais uma vez a inegável mestria de Mary Higgins Clark. O livro narra um obscuro segredo no seio familiar das irmãs Connelly, depois da empresa de mobiliário da família das mesmas ter sucumbido num terrível incêndio ocorrido misteriosamente a meio de uma noite calma de Long Island City.

A família Connelly não quer acreditar que a desgraça tenha assim batido à porta e depara-se com os edifícios, orgulhosamente erigidos pelo avô de Kate e Hannah – e fundador da Connelly Fine Antique Reproductions – transformados em cinzas. A tragédia maior está porém relacionada com o estimado museu, perdido para sempre, significando a perda de algumas antiguidades de valor incalculável que se encontravam em mostra permanente há inúmeros anos.

Para lá deste cenário dantesco, o rescaldo do incêndio trouxe à tona um achado surpreendente que levanta várias questões, sendo que a possibilidade de este acidente não ter sido obra do acaso ganha consistência. Crescem as dúvidas e surgem perguntas: Terá sido a presença de Kate no museu aquando do incêndio uma mera coincidência? Porque estaria ela acompanhada por Gus Schmidt, um artesão reformado e insatisfeito, nessa madrugada? Onde estará a verdade?

A investigação revela-se mais complicada pois Gus morreu e Kate está no hospital em coma e nenhum dos dois pode revelar o que os teria levado ao local do crime, e se o mesmo poderá estar eventualmente relacionado com o misterioso desaparecimento ocorrido há alguns anos de uma jovem. Estará alguém por detrás de todos estes acontecimentos? Alguém capaz de tudo para se salvar?

Os dados estão lançados e, numa corrida contra o tempo, Mary Higgins Clark tece um fantástico enredo repleto de suspense, ação, sobressaltos e interessantes personagens, assente numa escrita dinâmica que deixará o leitor definitivamente agarrado a “Uma Canção de Embalar” até devorar as mais de trezentas páginas deste livro.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

“Tearaway”
PS Vita

Num colorido mundo de papel



Uma das melhores formas de apresentar um jogo de consola é ter acesso ao trailer que faz a promoção do mesmo ainda que por vezes tal possa induzir em erro. Quem não se lembra de ver um desses vídeos de divulgação e depois sentir-se ultrajado pois o resultado final está aquém das expetativas?

Contudo essa frustração não faz parte do atraente mundo que compõe Tearaway, um dos mais interessantes jogos que o universo Vita ultimamente revelou. Se à primeira vista este novo jogo da Media Molecule – e que conta com a magia dos desenhos de Rex Crowle – se “assemelhava” a Little Big Planet, depois de alguns minutos de teste verificamos um charme, estilo gráfico e visual muito particular que tem nas virtudes do écran traseiro e da câmara frontal alguns dos seus trunfos.

Aventura jogada na terceira pessoa, Tearaway tem como figuras centrais duas personagens sendo Iota a versão masculina e Atoi a feminina. Ambas assumem a função de mensageiros e elevam sobremaneira a noção de interatividade que as funcionalidades da PS Vita permite.

Mas vamos por partes. Logo nos primeiros instantes do jogo somos convidados a assumir o papel de um “Tu” e temos honras de transportar a nossa cara no écran da Vita com a ajuda da câmara. Depois disso surgem questões pertinentes: qual o tamanho das nossas mãos? O tom de pele, género. Vamos entrar num mundo de lendas e tradição que precisa da nossa ajuda de forma a dar vida a um novo conto. E agitar é preciso, a consola claro, pois urge unir dois mundos onde o Sol tem um papel muito importante.

E, de repente, a mensagem torna-se o mensageiro e os perigos surgem na forma de Retalhos, incómodas criaturas que são eliminadas com a ajuda dos nossos dedos pois o écran tátil traseiro serve de porta de entrada para este delicioso mundo de papel. Salvar o Sol entretanto amaldiçoado é o objetivo e ao jogador é possível encarnar o mesmo pois o seu rosto incide no centro do astro-rei em tempo real.



Vencida a primeira batalha, somos convidados a dirigir-nos para o Sol e pelo caminho encontramos um fantástico mundo de origami que revela monstros, personagens que nos indicam o caminho e a vitória a cada nível é coroada com uma chuva de confetti. Em algumas situações o jogador é confrontado com obstáculos e plataformas que são ultrapassados, mais uma vez, com a ajuda dos dedos sendo que o écran traseiro pode, por vezes, servir de apetecível trampolim. Noutras situações o nosso personagem é levado a apanhar Retalhos e a atirá-los contra partes do cenário que revelam surpresas no seu interior.

A interatividade é constante e à medida que o jogo evolui o nosso Iota, ou Atoi, podem ser transformados ou enriquecidos. Ao ganhar pontos através da recolha de alguns pedaços coloridos de papel torna-se real personalizar o nosso mensageiro oferecendo-lhe olhos diferentes ou outros artefactos. Noutros casos somos convidados a colocar adereços em personagens e não se espante se tiver de coroar um esquilo. Ah, e quem faz, desenha e corta a coroa somos nós. Depois, se desejar partilhar tais objetos, pode fazê-lo no modo online.

A jogabilidade de Tearaway é bastante simples e intuitiva e o prazer de permanecer no meio de criaturas multicoloridas de papel é contagiante. O controlo do personagem é feito através dos comandos direcionais e, como já referimos, os dedos estão em permanente contacto com o painel traseiro.

Os gráficos de Tearaway são visualmente competentes e atraentes e por vezes imaginamos estar perante um constante stop motion vídeo ainda que de traços abstratos. No fundo, é como estar no sonho de papel onde a magia permite transformar o inimaginável em real. Para completar esta onírica ideia deixa-mos também uma palavra de apreço em relação à “música” que dá vida a este jogo e que quebra o aprazível e constante chilrear ambiente.

Uma clara aposta ganha por parte da Media Molecule, Tearaway assume-se como mais uma inovadora ideia num universo que, por vezes, opta pela cópia de um conceito em vez de seguir o caminho da novidade e criatividade. Quando essas ideias juntam-se às potencialidades da PS VITA cria-se algo de especial e único.

In Rua de Baixo

“Regresso ao Suez”
de Stevie Davies

As várias perspetivas de um conflito emocional



Naquela que é a estreia literária da galesa Stevie Davies por terras nacionais, “Regresso ao Suez” (Civilização Editora, 2013) revela-se um extraordinário romance que faz o somatório entre a experiência pessoal e um universo político muito próprio que tem, como base, um rol de personagens realistas e credíveis, assim como uma estória a todos os níveis coerente e que joga habilmente com uma intrincada linha cronológica de ritmo próprio.

Entretanto nomeada para importantes prémios internacionais como o Booker e o Orange, Davies, que acumula à paixão da escrita as atividades de historiadora, crítica literária e biógrafa, goza de um estatuto “clandestino” no universo literário, ainda que tenha já editado mais de uma dezena de livros e sejam sobejamente conhecidas as suas participações em ações de protesto contra o governo britânico.

Foi numa dessas manifestações, aquando das ações de rua contra a participação do Reino Unido no conflito do Iraque em 2003, que nasceu a ideia deste livro. Ainda que em parte desfasada na conjuntura e nos propósitos com a mais recente guerra no Iraque, Davies relembrou a crise no Suez na década de 1950, assim como a intervenção dos representantes governamentais britânicos aquando desse período crítico, começando assim a formar-se a ideia de escrever “Regresso ao Suez”.

Através de um romance sinónimo de profundo drama humano e político, somos levados ao período pós-guerra quando a Grã-Bretanha tentava assumir-se como potência mundial depois de acabar a Segunda Guerra financeiramente delapidada. A trama desta obra transporta o leitor para uma época imediatamente anterior à apelidada Crise do Suez, que acabou por “inspirar” o modelo das futuras invasões do Iraque ao Afeganistão.

Nesta emocionante e trágica estória, Stevie Davies apresenta-nos vários e atraentes personagens. Um deles é Joe Roberts, oficial do império britânico, um ser movido pelas agruras da vida motivadas pela veia proletária mas que tem um íntimo encantador, onde o humor está sempre presente – ainda que tal seja construído através de doses significativas de racismo e misoginia que, por vezes, roçam o extremismo.

A seu lado está Alisa, uma mulher inteligente que tem, na curiosidade e ansiedade de explorar a realidade do distante Egito, uma das suas maiores motivações de vida, aguçada pelo destacamento do seu marido Joe para o quartel britânico local. Pelo meio dessa maravilhosa viagem conhece Mona – tornada refugiada palestiniana depois da formação de Israel -, também casada com um militar, Ben, um devoto à causa judaica que a ensina a encarar o mundo de uma outra forma, desafiando Alisa rever os seus horizontes enquanto pessoa. Joe não concorda com tal visão liberal e, envolto de uma intolerância face às raízes de Mona, repudia a amizade entre a esposa e a nova amiga.

Apesar das diferentes visões da vida e unidos por um amor incondicional, Joe e Alisa observam a estrutura do seu edifício emocional ameaçar a derrocada depois da morte do melhor amigo de Joe, vítima do terrorismo egípcio. Anos mais tarde, Nia, filha do casal, mergulha no passado dos pais e, na companhia da idosa Mona, explora memórias e procura respostas. Será Joe um verdadeiro herói de guerra? Por vezes a vida mostra a verdade da forma mais dolorosa mas Nia está disposta a tudo…

Também ela filha de um antigo oficial da mítica RAF (Royal Air Force), Stevie Davies conhece bem a experiência de viver com os ecos das glórias remanescentes de um império, e tal ajudou a escritora a dedicar corpo e alma a este maravilhoso livro que revela, como poucos, a complexidade de uma paixão entre duas pessoas que conseguiram ao longo da vida colocar de lado as suas diferenças de forma a preservar a própria “conveniência” dessa união. Outro dos trunfos de “Regresso Suez” é a contextualização pormenorizada das épocas vividas no cerne deste romance, que tem como fundação para a sua grandeza a união de pequenos mas decisivos acontecimentos.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

“Novela de Xadrez”
de Stefan Zweig

Retrato prepotente da desumanidade



Nascido em Viena em 1881, Stefan Zweig é uma das maiores vozes literárias europeias da primeira metade do século XX. Pautou a sua atividade intelectual através da poesia, ensaios, contos e novelas aventurando-se, também, enquanto dramaturgo, historiador e biógrafo.

Apesar de ter conquistado um invejável sucesso por terras do velho continente, o austríaco sentia-se verdadeiramente ameaçado pela crescente influência que o nacional-socialismo começava a demonstrar na década de 1930 e, a sua ascendência judaica, tornava-o como um potencial alvo de perseguição.
Os seus piores pesadelos foram confirmados e, entre outras ações contra a sua pessoa, o autor de “Amok” ou “Carta de Uma Desconhecida” viu os seus livros servirem de combustível para uma das famosas piras organizados pelos guardas nazis como forma de repúdio à cultura judaica.

Amargurado e desgostoso com a conjuntura decidiu abandonar a pátria austríaca e rumou a Inglaterra, mas seria o Brasil o seu destino final. Na companhia da sua secretária Lotte – mais tarde sua esposa – procurou, em vão, a paz espiritual por terras sul-americanas, mas a política de Getúlio Vargas adensou a sua depressão. Ainda assim, seria por terras do Brasil que descobriria uma nova paixão: o xadrez.

É já em Petrópolis que escreverá “Novela de Xadrez” (Assírio & Alvim, 2013), obra recentemente editada com tradução do alemão e que conta com notas de Álvaro Gonçalves, assim como uma biografia do autor nas primeiras páginas.

Esta novela, escrita pouco tempo antes do seu suicídio, assume-se como o derradeiro testemunho literário de Zweig e relata a vida de um campeão mundial de xadrez que tem, no jogo que domina como ninguém, a única forma de exteriorizar alguma competência enquanto pessoa, pois sem o xadrez Czentovic é apenas uma sombra do espetro humano.

Com uma escrita sóbria e sem subterfúgios empolados ou mascarados, Zweig descreve a viagem de Czentovic num navio de passageiros que parte de Nova Iorque para Buenos Aires e que tem, entre a sua tripulação, alguém que vai colocar em causa a arrogante mestria do campeão mundial de xadrez. Esse misterioso passageiro é a face de uma reviravolta a bordo, e através do seu exímio pensamento frente ao tabuleiro de 32 peças desperta a atenção de todos que questionam onde o Dr. B. terá adquirido tal sabedoria e a que custo a conquistou.

Com a sábia genialidade de um dissidente, Stefan Zweig torna “Novela de Xadrez” numa das mais apetecíveis novelas psicológicas de toda a história da literatura, através de um misto de suspense e realismo, fazendo uma pertinente e metafórica reflexão sobre a transformação de um ser humano frágil num animal prepotente. Isto, ao mesmo tempo que convida o leitor a sentir os dramas infligidos pelo nazismo e, de certa forma, a descrença face à cultura ocidental da época.

In Rua de Baixo

“Pede-me o que Quiseres”
de Megan Maxwell

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Scott Matthew @ CCB

O paraíso existe e tem uma voz

 
 
Faltavam poucos minutos para as dez da noite quando as luzes do Pequeno Auditório do CCB começaram a desvanecer, devagar. Lá fora estava um frio invernoso, cortante, que fazia levantar golas e procurar um lugar quente. Ao lado, no Grande Auditório, fazia-se tributo a Joni Mitchell. Vivia-se em pleno o Misty Fest, evento que, ano após ano, traz a Portugal alguns dos mais interessantes intérpretes e músicos.

E vinha dos antípodas uma das vozes mais aguardadas da edição deste ano. Amigo de Portugal, Scott Matthew, convidado habitual de Rodrigo Leão, deu ontem um dos mais intimistas e maravilhosos concertos que os portugueses já assistiram. Na bagagem trazia o seu mais recente álbum, “Unlearned”, que se assume como uma homenagem sentida a algumas das canções que o acompanharam ao longo da vida e que marcaram indubitavelmente o seu crescimento.

Quando soaram os primeiros sons vindos do órgão de M Eugene Lemcio e Mathew se lançou numa deslumbrante e closy versão de “To Love Sombody”, um original dos Bee Gees, o tempo parou e, durante mais de hora e meia e quase duas dezenas de canções, sentiu-se o paraíso, com o anjo bem-disposto, natural de Queensland, a mostrar que é um dos mais emblemáticos cantores dos nossos dias. Envolto de uma simplicidade única, transformou uma normal noite de outono num hino à beleza.

Dono de uma voz invulgar, sempre à beira de um colapso deslumbrantemente doce, Scott Mathew sente-se em casa, pois, segundo o próprio, está “no melhor sítio do mundo”, que sabe receber quem o visita. Já sem o casaco, atira-se, delicadamente, a “Total Control” e a pérola musical originalmente composta pelos The Motels encarna uma segunda vida com a perspetiva de “Unlearned”. As palmas acontecem apenas quando do palco surge o silêncio, que é novamente quebrado com o afinar do ukelele de Matheew, que simpaticamente pede desculpa pelo facto. Depois, “There’s a Place in Heel for me and my Friends”, uma revisitação à obra de Morrissey, faz Scott levar a audiência para lugares onde o espírito pode e deve descansar.

Mas esta celebração em forma de concerto não era apenas condimentada com canções de outros. Ao longo da atuação, Scott Matheew brindou os presentes com temas do seu próprio reportório e, repleta de dramatismo, “For Dick” foi o primeiro exemplo. A seguir, “The Wonder of Falling in Love”, outro tema em nome próprio, deu origem a um coro de vozes tímidas por parte do público.

O regresso a “Unlearned” foi feito através da invocação de Neil Young e da versão de “Harvest Moon”, que Matheew, em tom de brincadeira, já afirmou ser melhor que o original. A interpretação trouxe ao palco Celina da Piedade que, na companhia do seu acordeão, trouxe mais solenidade e brilhantismo à noite. A maravilhosa rendição foi brindada como uma estrondosa salva de palmas.

Numa noite em que a alma foi repetidamente assaltada pela paz, através de canções maiores que a vida, “Smile”, tema da autoria de Charlie Chaplin, foi sinónimo de um momento desarmante, delicado, profundo, apaixonado. Por mais adjetivos que procuremos, é quase impossível descrever aqueles minutos que tornam a existência num lugar mais bonito e repleto de sentido. Matthew afirma que se trata da "canção mais triste sobre estar feliz" - e não anda longe da verdade.

Ainda com Celina em palco, a improvável “I Wanna Dance with Somebody”, cover de uma das mais emblemáticas canções de Whitney Houston, traz outro toque de magia ao espetáculo e, acredite-se, Scott Matthew consegue dar um cariz tão especial às suas versões que as mesmas se apropriam de alma própria. O público não resiste e acompanha a portuguesa no coro e o encantamento que se sente no Pequeno Auditório do CCB está ao rubro. “In the End” faz o australiano regressar às canções em nome próprio, sendo que “Jesse” traz à memória o “fantasma” de Roberta Flak. Logo a seguir, a curta “L.O.V.E”, de Bert Kaempfert, traz um pouco de “cabaret”.

“Little Bird”, retirada do álbum de estreia de Matthew, continua uma festa que também revela algumas surpresas, e a versão de “Anarchy in the UK” faz o australiano regressar aos seus tempos de membro de uma banda punk. A rebeldia deu lugar a um estado deslumbrante de doçura e da plateia surgem sorrisos. Segue-se “Abandoned”, com um fantástico falsete, e, antes da saída de palco, a brilhante “Annie’s Song” traz a palco John Denver. Matthew e companheiros saiem de cena mas a ovação de pé da plateia faz os músicos regressaram instantes depois.

“White Horse”, do álbum “There is an Ocean…”, é a primeira canção de um encore que traria ao palco todos os músicos que acompanham Scott Matheew, para uma interpretação em forma de trauteio de “Friends and Foes”, que também faz parte do já referido disco de 2009. Mais palmas, muitas, e Matthew aproveita para agradecer ao seu amigo Rodrigo Leão, presente na sala, mas como espetador.

Antes de abandonar por completo o palco, Scott, para os amigos, oferece uma maravilhosa versão de “Love Will Tears Us Apart”, que ousou invocar o fantasma de Ian Curtis. A assombrosa brutalidade da última música bateu forte e o sentimento de emoção total e a sensação de partilha e honra de se fazer parte de um momento sublime como aquele encheu a alma de quem saiu do Pequeno Auditório do CCB com a consciência que assistiu a um concerto deveras maravilhoso.

Antes de Scott Matthew, o palco pertenceu a Valter Lobo que, na companhia de Jorge Moura, ofereceu uma mão cheia de bonitas e “tristes” canções de inverno, nome de batismo do primeiro EP do nortenho. “Eu não tenho Quem me Abrace Neste Inverno”, “Asas”, “Ser de Água” e “Pensei que Fosse Fácil” foram sinónimo de belos e intimistas momentos, onde a qualidade de trovador de Lobo ganha uma assinalável magnitude através dos laivos timidamente sónicos das cordas de Moura. Envolto de uma melancólica moldura, a fotografia musical de Valter Lobo merece, de certeza, maior atenção. A não perder de vista.

Foto: Marta Ribeiro

In Palco Principal

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Zola Jesus
“Versions”

Canções descarnadas repletas de alma



Natural de Phoenix, Estados Unidos, Nika Roza Danilova é conhecida no mundo da música por Zola Jesus e é dona de uma das mais enigmáticas e interessantes vozes contemporâneas navegando por correntes sonoras que fazem uma fusão entre a electrónica, o gótico e o industrial com alguns salpicos de um certo experimentalismo noise.

Estudante de filosofia e fã confessa da corrente Situacionista, Jesus deu o primeiro passo na sua curta mas prolífera carreira em 2009 ao lançar o álbum “The Spoils” e desde aí tem por hábito dividir a sua atenção entre longas-durações e EP’s. Em todos os seus trabalhos Zola Jesus procura explorar uma visão experimental e vanguardista movendo-se do centro de um qualquer núcleo até às fronteiras do mesmo.

E são esses limites que a norte-americana explora e tenta extravasar a cada trabalho. Sejam envoltos de noções de ruptura ou continuidade, os discos de Zola Jesus ousam misturar conceitos díspares e a cantora já tem referido um variado leque de influências que vão de Kate Bush aos Joy Division, passando por Dead Can Dance e Cocteau Twins.

Dois anos depois de lançar “Conatus”, trabalho que foi sinónimo de excelentes críticas por parte do universo musical, Zola Jesus regressa com “Versions”, um disco que surge no seguimento da performance que a cantora realizou no museu Guggenheim de Nova Iorque e que contou com a colaboração de JG Thirwell, um dos mais arrojados e vanguardistas compositores contemporâneos.

O resultado é um disco repleto de canções descarnadas, nuas de preconceitos e grandes arranjos, mas directas ao coração e que têm como alicerces instrumentos clássicos como violinos e violoncelos que explanam o seu som na companhia de alguns elementos de cariz synth e electrónico. No fundo, Zola Jesus pega nos conceitos explorados nos seus registos anteriores e transfigura os mesmos de forma fragmentada e deliciosamente simples.

O somatório entre a irreverência de Danilova e a visão ampla de Thirlwell resulta numa colecção de temas que são apresentados sem artifícios mas envoltos de uma elevada tensão emocional para a qual a fantástica voz de Zola dá um decisivo contributo. As características singulares do Mivos Quartet – colectivo composto por três violinistas e um violoncelista – que acompanha Thirwell e Zola – conferem a ambiência certa e, tendo por base algumas das canções presentes em “Stridulum II” e “Conatus”, chegamos ao cerne de “Versions”.

Longe vão as complexas camadas sonoras dos registos originais e são agora exploradas novas vias que permitem que a voz ganhe outra relevância e acerto. Logo no início do disco, «Avalanche (Slow)» revela uma fragilidade inata no corpo vocal de Zola e em conjunto com «Fall Back», a segunda faixa de “Versions”, colocam o ouvinte num verdadeiro estado de urgência auditiva envolto no intrincado jogo entre cordas e pinceladas sintéticas.

Vamos mesmo mais longe, porque a música permite e aconselha. A sobriedade e tensão de faixas como «Fall Back» resultam num crescendo épico e fazem notar a cumplicidade entre vocalista, compositor e instrumentistas, entre forma e conteúdo, premissas que possibilitam a perfeita assimilação entre estádios pop e sensibilidades erigidas à custa da experimental vontade de um violino. Outro exemplo desse desarmante estado de graça é «Hikikomori», uma das mais excitantes canções de “Conatus”.

«Run me Out», e especialmente «Seekir», contam mais acerrimamente com a exploração da capacidade vocal de Danilova aqui dissecada em diversas camadas que se refugiam na fusão entre contextos díspares para sentir a procurada coerência que se encontra num eco de fantasmagórica produção.

Até mesmo as mais consistentes composições de Zola Jesus encontram no contacto com a veia empática de Thirlwell e camaradas novos focos de interesse. Como exemplo desse crescimento recomendamos a audição de «Night» ou «Sea Talk», faixas que se envolvem de uma “humanidade” para si desconhecida até agora.

É essa no fundo uma da mais significativas mais-valias de “Versions”, a emancipação das criações originais de Zola Jesus. Se «Collapse», por exemplo, remete para uma acalmia ausente em “Conatus”, já a visão arabesca de «Vessel» torna a própria canção num reflexo obscuro da sua edição original.

São estes alguns dos pressupostos que tornam “Versions” um dos trabalhos mais ricos e importantes da carreira de Zola Jesus. Mais que uma nova mistura, este disco revela a reencarnação musical das composições inicialmente lançadas e mostram que a colaboração entre universos distantes podem dar origem a uma paisagem que mistura talento e espontaneidade.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

“A Casa com Alpendre de Vidro Cego”
de Herbjorg Wassmo

Trilogia de Tora, a menina-coragem



A literatura oriunda dos países nórdicos tem, aos poucos, entrado no quotidiano dos leitores a nível mundial. O fenómeno Stieg Larsson deu um importante contributo e serviu de ponte para a entrada de autores oriundos da Suécia, Dinamarca, Islândia ou Noruega.

O mercado nacional está muito atento a essa situação particular e cabe à novíssima Arkheion Editora a honra de apresentar a obra de Herbjorg Wassmo, uma das mais prestigiadas escritoras norueguesas da sua geração que conta com uma já longa carreira literária, que teve o seu início na década de 1970 através de “Bater das Asas”, um livro de poesia.

Mas é em formato romance que Wassmo chega agora aos escaparates. “A Casa com Alpendre de Vidro Cego”, (Arkheion Editora, 2013) um clássico da literatura nórdica, é um dos mais intensos e pertinentes livros editados em Portugal durante o ano que se aproxima do seu final.

Sendo “A Casa com Alpendre de Vidro Cego” o primeiro livro da trilogia Tora (nome da personagem principal), a Arkheion anunciou a edição, para breve, dos outros dois tomos – “O Quarto Silencioso” e “Céu Doloroso”. Na base destas três obras está Tora, uma menina de 11 anos, filha de mãe norueguesa e de um soldado alemão. Toda a ação tem como palco uma aldeia nortenha da Noruega, prisioneira do rescaldo da Segunda Guerra, onde a pesca está no centro de todo o sustendo da comunidade.

Envolto de um realismo assombroso e uma sensibilidade contagiante, Wassmo relata a vida atormentada de Tora, uma ensimesmada menina ruiva de compridas tranças que tenta sobreviver às moléstias do padrasto, à distância e fragilidade da mãe e à frieza e crueldade da população.

No fundo, Tora, “a fedelha alemã” como lhes chamam os seus conterrâneos, vive os tormentos da sua filiação no seio de uma comunidade que não esquece os ecos deixados pela invasão nazi, apenas encontrando um porto de abrigo na força inata da tia Rakel e na magia que irradia de Gunn, a jovem professora local.

Ingrid, mãe de Tora, vive sob um forte estigma e luta para sobreviver numa terra em que as mulheres ainda não estão ao nível do estatuto conquistado pelos homens e tem, na sua relação conturbada com Henrik, um homem marcado fisicamente pela guerra e profundamente amargo e violento, um ponto que está longe do equilíbrio. A miséria moral e a pobreza em que a aldeia está mergulhada completam um cenário muito negro onde o desespero marca o ambiente. Associada a este pessimismo está a ideia de um romance repleto de ideias feministas e proletárias em que a vitimização da mulher enquanto género anseia por uma urgência solidária entre pares.

A escrita deslumbrante de Wassmo descreve o ambiente desumano que Tora tem de aguentar para sobreviver a várias provações e “A Casa com Alpendre de Vidro Cego” é o reflexo de uma triste realidade onde quem tem a sorte de sentir a felicidade, nem que por breves instantes, revela traços de uma beleza negada para a esmagadora maioria que esqueceu por completo a simples dádiva de se estar vivo.
Partilhando a casa comum com outras famílias, Tora encontra na sua amiga Sol, ligeiramente mais velha e vivida, um outro refúgio de felicidade que apenas tem paralelo nas suas mais íntimas fantasias com o seu pai biológico e na leitura de alguns livros emprestados por Gunn. Também a escuridão e o silêncio são armas que apaziguam a alma de Tora.

A metáfora é uma figura de estilo recorrente neste “A Casa com Alpendre de Vidro Cego” e, os fantasmas que habitam as mentes dos diferentes personagens, são relatados num misto de parágrafos curtos que exploram uma ideia, uma cena e alguns diálogos menos usuais, ainda que na segunda metade do livro estejam mais presentes.

Com mais de 500 mil livros vendidos apenas na Noruega, Herbjorg Wassmo é dona de uma escrita poderosa e extremamente cativante, sendo que as suas obras já foram traduzidas em mais de vinte línguas. Ainda que tenha sido alvo de vários prémios e homenagens foi com a trilogia de Tora que a autora arrecadou os mas importantes galardões dos quais se destacam o Literary Critics Prize, em 1981, o Booksellers Prie, em 1983 e o Nordic Council Literary Prize em 1987.

In Rua de Baixo

Pixies @ Coliseu dos Recreios

No céu está tudo muito bem 



Noite gorda de sábado. A emoção sentia-se amiúde nas imediações da Rua das Portas de Santo Antão. No regresso dos Pixies à mais mítica sala de espetáculos da capital, mais de duas décadas depois, a emoção de sentir de novo, ou pela primeira vez, a catarse resultante das composições de Black Francis e restante pandilha era palpável.

Reencontravam-se velhos amigos, recordava-se a inesquecível noite de 13 de junho de 1991, falava-se da substituição de Deal por Shattuck, vibrava-se com as jogadas entre Benfica e Sporting. Em grupo e colados às televisões, muitos fãs dos Pixies aqueciam a alma a ver futebol. Cardozo dava asas ao Benfica, o Sporting respondia de bola parada.

Dentro do Coliseu, a atuação dos britânicos AAAK (As Able As Kane) aquecia os já muitos que se encontravam na plateia e, durante cerca de meia hora, sentiu-se na pele um som pujante, feito de uma súmula de camadas industriais com laivos góticos, tal como aconteceu há 22 anos, sendo que na altura a honra coube aos Killing Joke.

A atuação dos Pixies estava marcada para perto das 22h00 e as incidências do derbi mantinham as hostes atentas. O Sporting empatava perto do fim. Prolongamento. A massa dispersava. Aproximava-se outro jogo mas com toadas rock and roll.

Com a sala a abarrotar, sentia-se, acreditem, um calor semelhante ao vivido em junho de 1991. A expetativa crescia e os mais de três mil presentes ansiavam pelos músicos. Até que as luzes se apagaram e soaram palmas e gritos. Instantes depois, Black Francis, Joey Santiago, David Lovering e Kim Shattuck ocupavam os seus lugares, com “Planet Of Sound” a ser o rastilho para quase duas horas de emoções fortes que, sem paragens, transportaram os fãs dos Pixies para um espaço sideral próprio.

Mais de trinta canções, muito suor em palco e grande entrega na plateia. Se o concerto começou com a revisitação a “Trompe Le Monde”, “Cactus” seria a primeira incursão a “Surfer Rosa”. Lovering dava o mote na bateria e o baixo da “nova Kim" soava seguro. A seguir, o groove de “BagBoy”, muito bem recebido, diga-se, resultou na composição mais longa de uma noite que revelou uma plateia ainda compreensivelmente menos ligada aos temas do mais recente EP da banda, com a performance de “What Goes Boom” a observar uma resposta passiva por parte dos milhares presentes.

O motim regressou com “Wave of Mutilation”, que viu a sua poesia ser entoada em coro por um público rendido à mestria dos seus ídolos. “Magdalena” e “Silver Snail”, esta última habitualmente interpretada por Frank Black, envolveram o Coliseu em alguma letargia, sentimento esse quebrado por mais uma das grandes faixas de “Trompe le Monde”. Falamos de “Alec Eiffel”, que encontrou dignos sucessores na excelente interpretação de “Broken Face” e “Debaser”. Nas filas da frente a agitação dava a origem curtos momentos de mosh e um pouco por toda a sala a massa saltava.

“Tony’s Theme” trouxe à memória a fantástica intro de Deal, mas Shattuck aguentou-se muito bem. “I Bleed”, “Brick is Red” e “Break my Body” continuaram a festa e Black Francis estava agora em formato acústico. “Here Comes Your Man”, uma das músicas que mais marcou uma geração que encontrou nos Pixies a banda da sua vida levou o Coliseu à loucura e as milhares de vozes presentes entoavam em coro a letra da canção.

“Indie Cindy”, mais uma de “EP1”, revelou-se um bonito exercício de “spoken word” dolente e as palavras ditas por Black Francis em forma de agradecimento aos seus fãs de sempre encheram a alma de todos. As toadas surf da banda de Boston davam, depois, lugar a ambientes mais intimistas e freak, raptados a David Lynchl, e “In Heaven (The Lady in the Radiator Song)” fazia uma viagem a um céu harmonioso.

Depois de momentos menos intensos ao som de “Andro Queen”, “Bone Machine” e a densa e escura “Subbacultcha” fizeram sentir a presença acutilante do baixo que, a par das batidas de Lovering e das cordas corrosivas, atingia o público em cheio. Sem demoras, “Monkey Gone to Heaven”, talvez o maior dos hits dos Pixies, fez a habitual e frenética matemática entre o Homem, o diabo e Deus, com a vitória deste último. As gargantas afinadas cantavam em uníssono. Sem tréguas, “Crackity Jones” - estranhamente, ou não, foi indiscutivelmente um dos momentos altos da noite – incendiou ainda mais o Coliseu que, já entregue de corpo e alma, recebeu “U-Mass” e “I’ve Been Tired” com a devida vénia. O ambiente sobe de intensidade e os rebeldes “Tame” e “The Sad Punk” antecedem “Ed id Dead”, cantado por todos de forma vibrante e emotiva.

A entrega demonstrada na plateia era bem recebida, e sentida, pelo quarteto que ocupava o palco. Com um empate emotivo entre banda e público, “Nimrod’s Son”, envolto pela mestria de Santiago, e o ato hedonista de “The Holiday Song” transportaram todos para “Come on Pilgrim”. Cheirava a prolongamento mas, antes da curta recolha ao balneário, “Where is my Mind”, provavelmente o momento mais bonito do concerto, colocou o ambiente ainda mais ao rubro.

O regresso ao palco, ainda com o público a entoar os ecos da última canção, fez-se com mais três grandes interpretações e “Hey”, “Caribou” e a maravilhosa “Gounge Away” formaram o feliz desfecho de um concerto, por certo, memorável. À saída, os semblantes revelavam pessoas satisfeitas, de alma cheia, num céu particular.

In Palco Principal

sábado, 9 de novembro de 2013

“VÉNUS DE VISON”
de Roman Polanski

E o Senhor o feriu pela mão de uma mulher




Ainda que não seja a primeira vez que o sempre apaixonado e polémico realizador Roman Polanski “transforme” uma peça de teatro em obra cinematográfica – “Carnificina” e “Noite da Vingança” resultaram em exercícios de grande pertinência – “Vénus de Vison”, película que integra o cartaz do Lisbon & Estoril Film Festival, está a gerar grande expectativa entre os amantes da sétima arte.

Com um argumento inspirado no livro de conotações sadomasoquistas do escritor austríaco Leopold Sacher-Masoch, editado em 1870, “Vénus de Vison” surge como um intrincado jogo de espelhos entre dois personagens que ao longo de cerca de hora e meia assumem o espirito alheio através de um delicado e exasperado processo de metamorfose.

Para ocupar o centro da tela, ou devemos dizer do palco, Polanski escolheu Emannuellle Seigner, sua companheira, para o papel de Vanda, a dobrar, e Mathieu Amalric faz de Thomas. Se ela interpreta uma atriz candidata ao lugar de Vanda na peça, ele assume-se como um encenador e escritor de peças de teatro ensimesmado entre a obra de Sacher-Masoch e a sua precoce e traumatizada experiência de vida.
Polanski e David Ives montaram um diálogo vivo, intenso e repleto de um acutilante humor que leva o espetador para dentro de um labirinto emocional que tem como acesso metafórico uma porta de um teatro parisiense vazio.

Fazendo parte da seleção oficial da mais recente edição do Festival de Cannes, “Vénus de Vison” tem como ponto de partida uma audição de Vanda que, trajada a rigor, depois de um autêntico dia aziago, tenta, literalmente, seduzir um apresado Thomas que não encontra o nome da candidata na lista de audições. Pouco paciente, Thomas tem ainda a noiva à sua espera.

À beira da desistência Vanda consegue persuadir Thomas a representar três páginas de texto e…a magia acontece. O argumento sólido de Polanski e Ives faz o espetador entrar de cabeça numa intrincada batalha em que a sabedoria e conhecimento de uns encontra, seduz e tortura a vulnerabilidade alheia sendo que tal atmosfera onírica apenas é interrompida pelo chamamento de Wagner quando o telemóvel de Thomas diz presente.

Severin e Vanda, Thomas e Vanda, homem e mulher, escravo e senhora. Eis algumas das dicotomias presentes em “Vénus de Vison” que com o decorrer dos minutos leva-nos a pensar quem é quem perante a bem montada ilusão. Thomas fascina-se com ambas as Vandas e entrega-se de corpo e alma.

Em termos de representação, Seigner incorpora ambas as Vandas de uma forma completamente brilhante e eficaz. As “encarnações” quebram momentaneamente a ação e num ápice estamos perante uma bipolaridade que se reforça a cada minuto. Indigente, Vanda, a candidata a atriz, questiona o argumento do livro de Mascoch e desfasada da realidade burguesa do século XIX apelida o mesmo de sexista e depravado. Amalric contrapõe tais considerações e apela ao romantismo de Sacher, à paixão das suas palavras e pensamentos, à profundidade emocional de um sentimento tão grande que leva alguém a sentir prazer através do servilismo, da humilhação, da entrega sofrida.

O ambiente entre os dois personagens é fruto de uma grande cumplicidade e alguns pormenores de realização de Polanski agigantam esses momentos. Como exemplo temos algumas sonorizações de ações (in)visíveis entre os atores onde uma assinatura de um contrato, um ramo arrancado de uma árvore ou o mexer de uma chávena dão um toque repleto de fantasia à ação. A juntar a isso, a tímida mas muito assertiva banda sonora de Alexandre Desplat torna tudo mais dramático e o fetiche ganha ainda mais a noção de presença.

Mestre na manobra e criação de situações onde a manipulação claustrofóbica deixa os personagens à beira do abismo, seja ele emocional ou não, Polanski torna “Vénus de Vison” numa bifurcação entre o teatro e o cinema, entre duas artes díspares mas que centram a sua essência na representação, seja essa ação realizada defronte de uma câmara ou de uma audiência atenta e o duelo psicológico entre Vanda e Thomas traz à tona fragilidades que perante um cenário de constante sedução e submissão ganha contornos de batalha épica.

O jogo da vida quebra as várias máscaras dos personagens e o conceito maneirista das diferentes camadas de realidade ou ilusão levam “Vénus de Vison” a desaguar num oceano transformista e perigoso que eleva a recente aventura cinematográfica de Polanski para estádios de pura catarse e beleza interpretativa.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

“BEYOND: DUAS ALMAS”
PS3

Uma experiência transcendente



Muito já se falou sobre a mais recente aposta em forma de videojogo por parte da Quantic Dream. É um jogo-filme, um filme jogado ou algo que reúna vários conceitos? “Beyond: Duas Almas” está no centro de muitas discussões sobre o futuro das consolas para mais quando se aproximam de forma ameaçadoramente desafiante as novas PS4 e Xbox One.

Depois de termos o privilégio de testar algumas partes do jogo no verão que recentemente nos deixou e confirmar a excelência desta nova criação de David Cage na sua apresentação oficial, era chegada a hora de colocar o blu-ray na consola. Ainda com os ecos de alguma saudade do seminal “Heavy Rain” na mente é preciso receber “Beyond: Duas Almas” de braços abertos e deixar a trama fluir.

Sabemos de antemão que Cage confere várias camadas de emoção às suas criações e a expectativa que “Beyond: Duas Almas” está a gerar poderia tornar as aventuras de Jodie Holmes e Aiden em fogo-fátuo, por isso toda a atenção é necessária. Não tendo o objetivo de agradar a gregos e troianos, o mínimo que se exigia era um decente “herdeiro” de “Heavy Rain” ainda que com algumas diferenças de forma e conteúdo. Vamos jogar?

E é pelas diferenças com “Heavy Rain” que começa a desenhar-se o ADN de “Beyond: Duas Almas”. Em vez de quatro personagens do jogo criado em 2010 são duas as “vidas” que agora controlamos. Se por um lado assumimos a pele de Jodie Holmes, magnificamente interpretada pela atriz Helen Page, do outro temos o controlo de Aiden, uma entidade paranormal que faz dupla com Holmes e é da dicotomia entre estes dois “bonecos” que se situa a alma do jogo.

A ligação entre Jodie e Aiden faz com que o jogador assuma o controlo destas duas personagens consoante a ação decorrente e enquanto Aiden não se espante se “conseguir” mexer objetos de forma telepática, curar feridas, possuir personagens ou entrar nas memórias de pessoas mortas.



O início da aventura coloca-nos perante um grandioso quebra-cabeças que apenas o decorrer das horas de jogo vai esclarecer. Jodie tenta reunir peças da sua memória que permitam construir um fio condutor à sua existência ainda que a cronologia seja pouco linear. Se num momento estamos a ver Jodie enquanto menina de tenra idade (logo nos primeiros momentos de gameplay) depois podemos ter Holmes como uma adulta repleta de fantasmas e pronta para a ação. Alvo de testes por parte do Professor Nathan Dawkins (um Willem Dafoe quase de carne de osso), Jodie passou grande parte da sua infância sob experiências no Departamento de Atividades Paranormais e torna-se numa adolescente repleta de angústias que tenta libertar-se dos muros impostos pela presença em laboratório.

À medida que a narrativa é apresentada, nós, enquanto jogadores, fazemos parte dessa “ficção interativa”, definição usada por Cage que melhor representa “Beyond: Duas Almas”. Apesar de a atmosfera ser realmente impressionante em muitos episódios o jogador tem uma presença muito passiva pois ocasionalmente somos convidados a pressionar um comando, fazer uma sequência de operações, algo que se torna mais atrativo quando é Aiden que assume o papel principal. Apesar desse senão, a mecânica do jogo remete para a ação de “Heavy Rain” e a sensação de deja vu de algumas cenas é evidente.

Em determinadas fases do jogo, pensamos, pedia-se uma maior intervenção do jogador na ação. Ainda que essas decisões possam personalizar o desenrolar da aventura, a maravilhosa tela de “Beyond: Duas Almas” exigia maior entrega de quem tem o comando na mão. Por vezes perdemos a noção que estamos num jogo e damos por nós a assistir a um filme interativo apenas quebrado pelos ocasionais “quick-time events” e escolhas de diálogo. Senhor Cage, nós queríamos jogar mais…

Essa sensação cresce ainda mais depois de sentirmos a adrenalina de estar em cima de um jeep na Somália ou a descer uma floresta a ritmo alucinante. Com um motor gráfico assombroso e novas formas de controlo do personagem apetece ser Jodie enquanto agente rebelde ou sentir a emoção de percorrer corredores na penumbra por muito mais tempo. Será pedir demais? Num mundo em que os contextos estão intrinsecamente ligados aos sentidos ser Jodie ou Aiden liberta a alma…ou as duas.



E já que falamos em Aiden não podemos deixar de referir o divertimento que é vestir a sua “pele” sendo este personagem um dos grandes trunfos de “Beyond: Duas Almas”. Basta apenas carregar num botão para saltar entre Jodie e Aiden e quando podemos passar entre portas e muros e interagir com o cenário a grandiosidade deste jogo aumenta consideravelmente. Outra das principais características de Aiden é a possibilidade de conseguir possuir corpos alheios e com eles resolver uma complicada situação e prosseguir com a narrativa que evolui à medida das nossas decisões e aqui aplica-se, como nunca, a noção ação-consequência pois diferentes interpretações do cenário de jogo resultam em conclusões díspares. Com isso “Beyond: Duas Almas” ganha vida própria pois dificilmente dois jogadores conseguiram repetir uma mesma cadência narrativa.

Ainda que este jogo posso envolver sobremaneira o jogador, existem algumas questões que surgem à medida que as horas passam. A já referida cadência passiva de algumas cenas levam a questionar se, de facto, “Beyond: Duas Almas” é apenas e só um jogo. Com tais momentos contemplativos na ação é legítimo pensar se a Quantic Dream não deveria ter apostado mais no que toca à participação ativa do jogador. A envolvência emocional está lá mas a estória inventada por Cage fica aquém da tão falada intervenção do jogador.

Mas se podemos apontar pequenas questões no que toca ao evoluir da narrativa, no que diz respeito à questão gráfica façamos a devida vénia ao pessoal da Quantic Dream. Nota-se a clara intenção de colocar o jogador no centro de uma aventura “cinematográfica” e nesse aspeto “Beyond: Duas Almas” não tem até hoje, em nossa opinião, rival à altura. O ambiente revela uma tensão ímpar e a ambição de conseguir um jogo a roçar a realidade foi bem conseguida com uma captura de movimento realmente assombrosa e competente principalmente no que toca à presença de Jodie e Nathan, personagens maravilhosamente fidedignas em termos de expressão facial aos seus modelos humanos. Essa aproximação já não acontece com as restantes presenças que ainda assim não desiludem. “Beyond: Dual Almas” é, sem dúvida, um marco e assume-se como um dos mais belos jogos no que aos gráficos diz respeito e será uma referência no que toca à futura geração de videojogos.

No fundo, estamos perante um jogo que se encontra num patamar diferente e tal como aconteceu com “Heavy Rain”, Dave Cage e a Quantic Dream estão de parabéns pois criaram uma das melhores experiências emocionais no mundo das consolas e o desafio que “Beyond: Duas Almas” coloca é saber até que ponto poderá fazer-se algo melhor nos tempos que se aproximam. Cage colocou a fasquia demasiado alta e tem todo o mérito. Também inovadora é a ideia do gameplay deste jogo que permite uma relação intuitiva entre ação/consequência e tal resulta que o decorrer da própria narrativa está nas mãos do jogador pois as decisões perante determinados momentos-chave alteraram o curso dos acontecimentos dando a possibilidade de existirem cerca de duas dezenas de “finais” possíveis. Mais, em “Beyond: Duas Almas” não existe uma noção de “gameover” pois a ideia é garantir continuidade e ação. Seja em modo “solo” ou “duo”, em consola ou através de um sistema Iphone ou Android, “Beyond: Duas Almas” é sinónimo de pura diversão e entretenimento.

Uma nota para a fantástica versão na língua de Camões onde as vozes dos atores Rogério Samora (Nathan Dawkins), Joana Santos (Jodie), Ricardo Pereira (Ray Clayton) e Rui Unas (Cole Freeman) abrilhantam o contexto já de sim muito competente.

Feitas as contas, “Beyond: Duas Almas” vai por certo configurar nas listas dos melhores do ano e quem já o jogou pode comprovar toda a sua magia, seja ela humana ou de um qualquer outro mundo paralelo.

In Rua de Baixo