quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

“Desde a Sombra”
de Juan José Millás

O mordomo fantasma


No início do mais recente livro do jornalista e escritor (ou escritor jornalista?) valenciano Juan José Millás, um dos personagens, no caso o onírico apresentador de televisão Sergio O´Kane, pergunta a Damián Lobo, o nosso (anti)herói, com que peixe se identifica mais. Perante as opções tubarão ou sardinha, a resposta surge soturna, ensimesmada. «Não sei, talvez com a moreia», responde Lobo.

E é essa a descrição possível para um dos melhores personagens saídos da cabeça criativa e um pouco esquizofrénica de Millás. Lobo é um homem confuso, escondido de si próprio, que desde a perda do emprego se desmoronou refugiando-se, qual moreira, nos mais recônditos lugares onde deambula. Um dia, nesses passeios sem destino, dá consigo numa feira de antiguidades e acaba por esconder-se dentro de um armário depois de realizar um pequeno furto.

Incapaz de sair de dentro do antigo móvel, é levado para a casa de Lúcia, Fede e María, mãe, pai e filha que compõem uma (a)normal família de classe média. Damián acaba por fazer do armário o seu refúgio de felicidade, um esconderijo perfeito para alimentar o seu desejo voyeurista e conseguir reconquistar um sentimento que julgava perdido dentro de si: a vontade de viver. Nem que a mesma se expresse por via das mais vulgares tarefas domésticas ou de uma inesperada cumplicidade.

Livro curto mas denso e intenso, “Desde a Sombra” (Planeta, 2016), reflete a solidão através de um expressivo delírio do sentido de realidade e assume-se como uma crítica velada ao capitalismo e à chamada “tv lixo”, uma “expressão comunicativa” infelizmente muito usual nos nossos dias. Também as relações familiares, umas mais disfuncionais que outras, nalguns casos numa perigosa trajetória incestuosa (onde não falta uma irmã chinesa com apetência a atribuir alma ao pénis), são objeto de reflexão, assim como as já habituais análises psicanalíticas. A união de tudo isto está a escrita superlativa de Millás, uma espécie de exercício siamês entre emotividade e sobriedade, entre o real e o fantasmagórico, cujo terreno de ação tem uma dupla neutralidade.

Estão assim, felizmente, reunidos todos os elementos que fazem com que os livros de Millás sejam especiais, únicos, escritos e lidos numa fronteira bidimensional, no caso, dentro e fora de um armário. Como aliados estão os habituais e diferentes pontos de vista narrativos, os desdobramentos de personalidade dos personagens e um sentido de humor inteligente, predicados esses bem vincados noutras obras do autor, principalmente no anterior “A Mulher Louca”.

Além da função de escritor, ou contador de estórias, Millás torna-se num amigo e amante absoluto das palavras e faz com elas desarmantes malabarismos que dão origem a narrativas inquietantes que envolvem o leitor como se de um estranho, diferente e envolvente abraço se tratasse.

In Rua de Baixo

Mão cheia de livros
Semana #48

Começamos as sugestões da semana com algo completamente diferente.


“A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar” (Tinta da China) traz de volta Ricardo Araújo Pereira desta vez em formato de manual de escrita humorística. Segundo o autor, este livro é um modo especial de olhar para o humor e dar-lhe uma hipótese real de acontecer. Para Ricardo Araújo Pereira: «somos treinados para saber o que as coisas são, não para perder tempo a investigar o que parecem, ou o que poderiam ser. Este livro procura identificar e discutir algumas características dessa maneira de ver e de pensar».


Falar de Afonso Cruz é descobrir um universo muito particular e especial. Entre o seu já vasto espólio literário, a coleção Enciclopédia da Estória Universal (Alfaguara) é um desses exemplos e é com prazer que anunciamos a edição do seu mais recente tomo: “Mil Anos de Esquecimento”. Além dos (des)habituais aforismos, dramas, personagens, apostas e considerações sobre temas tão importantes como Deus e a medida de uma cintura, este volume inclui ainda um relato de um pintor renascentista que se vê enredado numa guerra violenta e sanguinária entre duas cidadelas inimigas, governadas por irmãos desavindos, que encarnam a acesa disputa entre o aristotelismo e o platonismo, depois de… mil anos de esquecimento.


Depois de “As Raparigas Esquecidas”, a dinamarquesa Sara Blædel oferece-nos “O Trilho da Morte” (Top Seller), mais um thriller da saga protagonizado por Louise Rick, agente policial do Departamento das Pessoas Desaparecidas. Na ordem do dia está o desaparecimento de Sune Frandsen, um menino de 15 anos que desapareceu na floresta de Hvalsø, no dia do seu aniversário. Ao investigar, Louise descobre que se trata do filho do talhante Frandsen, amigo de Klaus, o seu primeiro grande amor, cujo suicídio nunca fora convenientemente explicado.


Por mais que se mostre, escreva ou fale, o tema do Holocausto ainda consegue surpreender. Baseado em factos verídicos, “O Rapaz e o Pombo” (Oficina do Livro), de Cristina Norton, conta-nos uma história passada entre as décadas de 1930 e 1950. No epicentro está um rapaz judeu que descobre o ódio, o desalento, a ternura e o amor à vida, e à sua volta estão ecos e fantasmas de todas as pessoas que passaram por uma das maiores injustiças e vergonhas da humanidade: a violência provocada pelo III Reich. Este livro surge da necessidade de Cristina Norton em denunciar o que por vergonha as mulheres que haviam sido obrigadas a prostituir-se nos campos de concentração não ousavam contar.


Finalizamos a nossa mão cheia da semana com uma sugestão para o público infantojuvenil. Chama-se “As Mulheres e os Homens” (Orfeu Negro) e venceu o Prémio Não Ficção 2016 – Bologna Ragazzi Award 2016. A autoria é de Luci Gutiérrez, versa sobre a igualdade de direitos entre géneros e é uma espécie de serviço público do centro criativo espanhol conhecido por Equipo Plantel.

Boas leituras!

In Rua de Baixo

“Doutor Sono”
de Stephen King

Here’s…Danny!


Qualquer fã de Stephen King, principalmente aqueles que acompanham a sua obra desde sempre, já muito que aguardavam, nervosamente, a edição de “Doutor Sono” (Bertrand, 2016), a sequela de “The Shinning”, do fantástico mundo de Danny Torrance e do “seu” Hotel Overlook. Mas será que a espera valeu a pena?

Vamos por partes. Se o objetivo é ler uma continuação direta e explicita do livro lançado originalmente em 1977, recuperando a mesma sensação claustrofóbica de um terror atrativo, a espera terá sido em vão. Mas se se quer um bom livro que mistura suspense com terror, “Dr. Sono” é uma excelente companhia e tem como bónus sentir as mais recentes deambulações de Danny Torrance.

Agora adulto, Torrance tornou-se num alcoólico mas sente que tem de mudar, recuperar. Ainda assombrado pelos residentes do Hotel Overlook, anda há décadas à deriva, tentando libertar-se do legado de desespero e violência deixado pelo seu pai. Instala-se numa cidade de New Hampshire, apoia-se na comunidade local dos Alcoólicos Anónimos e trabalha num lar. O único brilho que lhe resta oferece é um derradeiro conforto aos moribundos, assumindo-se como o «Doutor Sono», sempre acompanhado por um misterioso gato.

Entretanto conhece Abra Stone, uma antiga companheira de infância cujos poderes suplantam os seus. Vivem-se tempos atribulados, principalmente devido a uma nova seita composta por “vampiros psicológicos” que se fazem transportar à boleia de autocaravanas, que se autointitula “Nó Verdadeiro”, seres (quase) imortais que vivem do vapor produzido pelas crianças, com o seu brilho quando são lentamente torturadas até à morte. Stone anda a ser perseguida pela seita e cabe a Torrence protegê-la e salvar a sua alma.

Ainda que com uma narrativa sólida (sim, King é King…), “Doutor Sono” deixa a desejar em alguns pormenores. Os seus monstros, por exemplo, não têm o mesmo perfil assustador de outros (volta, Pennywise!). Porque, simplesmente, não o são. Um dos poucos momentos que se sente, de facto pânico, e as mãos suam, regista-se aquando do rapto de um rapaz cujo destino é ser devorado. Talvez, dizemos nós, Stephen King tenha de sair um pouco de dentro da cabeça dos seus personagens maléficos – alguns deles, como por exemplo Corvo, Nozes, Sam Harmónica, Petty, a chinesa, ou até mesmo o Avô Flick, são neste livro vítimas de alguma falta de conteúdo, com papéis de meros antagonistas – e dar-nos mais a conhecer dos seus lados pérfidos.

Mas King está além da forma pois o seu conteúdo continua…brilhante. A caracterização dos personagens é fantástica, sendo, por exemplo, quase impossível não sentir uma (real) simpatia por Torrance. Rose (Hat) O’Hara é também uma mais-valia ainda que esteja muito longe, por exemplo, do magnífico Randall ‘Walking Dude’ Flagg.

Apesar disso, e das talvez demasiado elevadas espectativas, “Doutor Sono” é um (muito) bom livro, apresenta uma trama consistente, apresentada em “camadas” crescentes de interesse, vai, com certeza, saciar a sede dos fãs de Stephen King em ler o mestre.

In Rua de Baixo

“Contagem Decrescente”
de Ken Follett

Luta contra o tempo


Depois de deambular por territórios imbuídos de contornos históricos, sagas e várias derivações do thriller, Ken Follett regressa às raízes com um livro de espionagem cujo enredo nos transporta para os tempos da Guerra Fria.

Editado pela primeira vez em 2000, “Contagem Decrescente” (Presença, 2016) relembra os primeiros tempos da corrida espacial onde Estados Unidos e União Soviética disputavam cada segundo, milímetro, de atenção.

A ação passa-se em 1958, na ressaca da vitória soviética no jogo orbital, e leva-nos a seguir as atribuladas movimentações do cientista Claude Lucas, um dos responsáveis pelas operações espaciais norte-americanas, encarregado do lançamento do Explorer I, o primeiro satélite americano, e que se encontra desaparecido.

Vítima de amnésia, Lucas acorda numa casa de banho de uma estação ferroviária na capital do país do Tio Sam. Desconhece o seu nome, onde mora, e nem sonha que é um dos maiores responsáveis pela eventual glória espacial norte-americana.

Enquanto Lucas tenta recuperar a identidade, a CIA continua a operar em prol do bom nome do país. A conhecida agência, liderada por Anthony Carrol, antigo camarada de Claude Lucas, sente-se confortável pelo desaparecimento deste, e pondera matá-lo caso intervenha no lançamento do Explorer I.

Não sendo um dos melhores títulos de Follett, “Contagem Decrescente” tem alguns pontos muito positivos, principalmente no que toca à forma de como vamos descobrindo quem é Lucas e como este consegue estar sempre um passo à frente dos seus perseguidores. Numa corrida entre Washington, Alabama e Cape Canaveral, o leitor é convidado a entrar numa perseguição sem tréguas, num período de 48 horas, juntando-se a Elspeth, esposa de Claude, Carrol, Bille e Bern, amigos de longa data do protagonista e atualmente espiões, bem como do terrível Anthony ou de uma sombra de chapéu e gabardina.

Ainda que os primeiros capítulos do livro sejam passados em velocidade de cruzeiro, à medida que a trama evoluiu a dinâmica ganha outros contornos e a ligação entre Lucas e os seus aliados, com ou sem aspas, vão ultrapassando, ou fomentando, obstáculos. Para isso muito contribuem os (bem escolhidos) flashbacks e um dilema bem delineado que faz interrogar sobre quem é amigo ou inimigo.

No entanto, o autor de “Os Pilares da Terra” falha em alguns pontos, nomeadamente na previsibilidade narrativa e num final apressado, assim como no recurso de um romantismo (muito sexual) desconexo que fragiliza o todo, sendo outro dos seus pecados capitais a falta de reviravoltas que fazem as delícias de um bom thriller. Ainda assim, Ken Follett consegue disfarçar estas pechas com uma escrita inteligente que consegue cativar o leitor.

In Rua de Baixo

Mão Cheia de Livros
SEMANA #47


A saudade é uma palavra especial, tão cara e inata à alma lusitana e há algumas cidades que não saem da memória dos portugueses. A capital angolana é um desses exemplos, principalmente para quem teve o privilégio de sentir a sua pulsação no auge do conturbado período colonial. Controvérsias à parte, Luanda era uma cidade inesquecível e é esse brilho que Rita Garcia nos oferece em “Luanda como Ela Era” (Oficina do Livro), um livro que retrata, por via da palavra e da imagem, a modernidade, costumes e paladares da referida capital da Província.


É um dos personagens preferidos dos amantes de policiais e está de volta. Falamos de Harry Hole, o peculiar inspetor norueguês que nasceu da mente criativa de Jo Nesbo. “Polícia” (D. Quixote) traz de volta o terror às ruas de Oslo pois está um assassino à solta e Hole encontra-se em parte incerta. Quem protegerá os polícias envolvidos em anteriores investigações de crimes que nunca foram solucionadas, hoje as vitimas preferidas do referido criminoso? Conseguirá a Brigada Anticrime sobreviver a tudo isto sem o carismático Harry?


Quem não se deixou inebriar com o já clássico “A Sombra do Vento”, de Carlos Ruiz Zafón, que atire a primeira pedra. Os ecos do Cemitério dos Livros estão ainda bem presentes e “O Labirinto dos Espíritos” (Planeta) assume-se como o desejado último tomo da referida tetralogia. Estão assim de regresso Daniel, Bea, Fermím e outros velhos conhecidos do universo do escritor espanhol assim como novos protagonistas. Espera-se muita intriga, emoção, paixão pelos livros e, claro, Barcelona.


Chama-se Casal Mistério, venceu recentemente a categoria «Melhor Blogue de Lazer e Culinária» na primeira gala dos blogues do ano e está agora em livro. O misterioso casal, «ele cozinha, ela viaja», defende que o segredo é a alma do negócio e abraça a “árdua” tarefa de experimentar novos pratos e visitar anonimamente restaurantes de todo o país, e o livro “As Escolhas do Casal Mistério” (Manuscrito) reúne as melhores receitas provadas pela dupla assim como mais alguns truques que vão deixá-lo de queixo caído e alma cheia.


E se o Natal fosse salvo por um dinossauro especial? William Trundle acredita que sim e na companhia de um particular e inesperado amigo vão viver uma aventura extraordinária. “Natalossauro – O dinossauro que salvou o Natal” de Tom Fletcher (Nuvem de Letras) vai encantar pequenos e graúdos e conta uma história sobre amizade, família, sinos, o Pai Natal, duendes cantores, renas voadoras, música e magia. No fundo, uma descoberta dos desejos mais secretos com a esperança de conseguir transformar-se o impossível em algo real.

In Rua de Baixo

“Born to Run”
de Bruce Springsteen

Algumas luzes nunca se apagam


São raras as vezes que escrevo sobre um livro na primeira pessoa, mas trata-se de um caso especial.

Ouvi falar de Bruce Springsteen pela primeira vez nos finais de 1986.Tinha 13 anos e na minha cabeça ecoavam sons vários. As influências eram muitas, as novidades chegavam a reboque de conversas com amigos, na escola e fora dela, do que ouvia na rádio. Cultivava-se uma especial partilha e era vulgar carregar, vaidoso, as enormes rodelas de vinil debaixo do braço, para a “troca”, ou para serem tocados nas muitas tertúlias musicais que tinha por hábito participar.

Foi numa dessas sessões que ouvi pela primeira vez um tipo de voz rouca, carregada de alma, e logo ao primeiro impacto, senti um misto de explosão e empatia. A canção em particular era “Backstreets”, faixa que abria o lado A do segundo 33 rotações de “Live 1975-85” (a edição em vinil era composta por cinco discos), uma compilação de registos ao vivo de Springsteen e da (sua) E-Street Band.

Gravei uma cassete (de 90 minutos!) com algumas das 40 músicas que componham “Live 1975-85” e passaram a ser o meu mantra. Sempre que as ouvia, deixava o som entrar na minha circulação sanguínea, devorava as histórias contadas em género de “prefácio” e sabia (e, digo-o, com orgulho, ainda sei) todas as letras de cor. Dai até conhecer toda a discografia do Boss foi um pequeno passo (eternamente agradecido Hugo, grande abraço!). Hoje, passados trinta anos, continuo a sentir a mesma magia quando oiço “Rosalita”, “Hungry Heart”, “Because the Night”, “Born to Run” ou “Thunder Road”, esta última a canção da minha vida, e a qual já tive o privilégio de “ouver” no momento devido, com a pessoa certa, a minha “Jersey girl”.

Cresci com as canções de Springsteen, gravadas e cravadas na alma, mas sempre quis saber mais da vida do Boss. Sim, acompanhei (quase) todo o que o profeta de Jersey fez mas faltava sempre qualquer coisa, um contexto (histórico) geral, uma pitada de sal que tardava.

Até que, recentemente, surgiu “Born to Run” (Elsinore, 2016), a tão aguardada autobiografia de Bruce, que, reza a história, nasceu na sequência de um concerto realizado aquando da edição de 2009 do Super Bowl e que serviu de epifania para que Springsteen resolvesse, finalmente, contar toda a vida.

Recuando aos mais recônditos becos da sua memória, Bruce Springsteen, o inicialmente desajustado jovem descendente de uma família de origem italiana, resolveu revelar o seu lado mais privado com a mesma devoção, honestidade, fúria, humor e paixão com que sempre escreveu as suas canções.

À boleia de uma escrita confessional e emotiva, Bruce recorda as (suas) raízes católicas na fria Freehold, New Jersey, revela os primeiros contactos com a perigosa e efervescente premissa e poesia rock, passando pelos perigos de uma imaginação fértil alimentada pelo combustível da música negra, a reação provocada pela atuação de Elvis Presley no “The Ed Sullivan Show”, o impacto da arte dos The Beatles, os prematuros contactos com a indústria musical, o domínio dos The Castiles e Steel Mill (as duas primeiras bandas de Springsteen) dos circuito de bares da zona de Asbury Park, o conhecimento decisivo de personagens como o produtor John Landau ou os músicos Clarence Clemmons e Little Steven, ou da “sua” Patti, até à afirmação, a pulso, da E Street Band e do seu (merecido) sucesso mundial. Tudo sublinhado com as dúvidas e lutas interiores que servem de inspiração para toda a sua obra e nos levam também a conhecer melhor a génese de muitas das suas canções.

A beleza de “Born to Run”, um livro que se devora, de preferência, devagar, lenta e pausadamente, pois não queremos que acabe, reside no espírito das suas palavras (e imagens) e transcende o objeto livro. É uma forma de inspiração não só para quem é fã do Bruce cantor, artista, homem e poeta, mas também para aqueles que ousam conhecer melhor uma pessoa que lutou por aquilo que acreditava, desafiou destino e família, e abraçou dias de glória.

E é também o livro que sempre esperei, que ficará para sempre perto da minha almofada, a transcrição de uma lenda, de alguém, de carne e osso, com virtudes e defeitos, da pessoa que me transmitiu algumas das maiores lições de vida («aprendemos mais ao ouvir um disco que na escola»), do ser cujo legado gostaria que os meus filhos conhecessem, de uma luz que teima em indicar-nos o caminho.

In Rua de Baixo

domingo, 20 de novembro de 2016

“Violência e Islão”
de Adonis

Do terror à luz


Foi recentemente apontado à vitória ao Prémio Nobel da Literatura e através de várias obras e análises deu a conhecer ao mundo uma atitude muito crítica face às «falsas interpretações e leituras do Corão», refletindo sobre os conceitos de identidade, religião, progresso e humanidade, alguns dos principais alicerces do processo de conhecimento do Islão e, por conseguinte, da conjuntura do mundo árabe.

Falamos do poeta sírio Adonis, pseudónimo de Ali Ahmad Saïd Esber, uma das vozes mais marcantes da atualidade face à constante ebulição política arábica. Exilado no Líbano desde a década de 1950, trabalhou na revista Shi’r, uma das mais influentes publicações literárias do mundo árabe, e fundou a igualmente prestigiada, Mawaqif.

“Violência e Islão” (Porto Editora, 2016) não é nada mais nada menos que um seguimento lógico desse caminho, mas também da «esperança num renascimento, na morte deste Islão-terror para dar lugar a um Islão-luz», e este fundamental e corajoso livro brotou na ressaca de uma sucessão de conversas entre Adonis e Houria Abdelouahed, professora na Universidade Paris Diderot, psicanalista e tradutora da obra de Adonis para a língua francesa.

Com um assinalável sentido crítico, onde nada é deixado ao acaso, Adonis e Abdelouahed falam-nos de um Islão como resultado de um ideal religioso e político mas que procura, a todo o custo, impor-se através da conquista e do controlo, algo que vai contra a ética individual apregoada no referido livro sagrado e que, nas suas palavras, castram a individualidade e criatividade.

Em algumas passagens, por exemplo, é feito a alusão ao Corão e à Hadith (conjunto de leis, lendas e histórias sobre a vida do profeta Maomé) para questionar as atitudes repressivas face ao universo feminino, declarando que essa mesma “filosofia” acabou por matar a própria subjetividade da existência. É essa perda também o motivo que leva as duas vozes de “Violência e Islão” a apelar à tolerância e refutando simultaneamente a ideia errónea de que todos os muçulmanos são hereges ou traidores apelando à elevação da cultura árabe, de forma evidente e definitivamente pacífica. Apela-se, portanto, o fim «do extremismo islâmico, no seu discurso e na sua ação», uma «bandeira em permanente agonia, que mantém os seus fiéis na escuridão e incute na sociedade árabe uma conduta de violência, analfabetismo, misoginia e ignorância. Um obscurantismo e uma barbárie que duram há quinze séculos e que hoje se fazem sentir um pouco por todo o mundo, de Palmyra a Paris.»

Traça-se ainda uma visão sobre as atuais tensões no território mas também se recua à génese do próprio Islão. Desde a morte do profeta Maomé, a “sua” religião tem sido usada como uma arma política e económica que tem explorado e reforçado as divisões locais, e tribais, com o único objetivo do poder.

Essa realidade leva Adonis a refletir sobre os eventos recentes no Médio Oriente, desde os insucessos da “Primavera Árabe” até à ascensão do Daesh, passando pela guerra na Síria, «dos quais o Ocidente não pode ser ilibado de culpas», e pelos ecos destruidores que se têm alastrado ao mundo e que negam qualquer possibilidade de uma crescente noção de pluralidade face a uma violência omnipresente. Consciente, Adonis apela a um espírito “inquisidor”, que resgate liberdades e faça evoluir as normais culturais e sociais.

O objetivo é, simultaneamente, «o combate ao silêncio e à hipocrisia que se instalaram tanto no Médio Oriente quanto no Ocidente» abrindo alas para a «necessidade urgente de uma releitura e debate livres no seio da sociedade árabe, um novo tempo que do passado apenas invoque a luta pelo direito à diversidade e que condene o confronto. Uma era de reconciliação».

A abrilhantar o livro está o estilo marcadamente poético, claro está, do seu discurso que aliado a uma abordagem mais psicanalítica tornam a leitura fluida, interessante e que tem como “bónus” o conhecimento da própria cultura árabe por via da referência a alguns dos seus mestres poetas.

In Rua de Baixo

“A Gaivota”
de Sándor Márai

Cada ser humano é um planeta perdido


Será possível um homem apaixonar-se por uma mulher que já não se encontra no mundo dos vivos? O escritor húngaro Sándor Márai nem tem dúvidas e isso pode ser comprovado através da leitura de “A Gaivota” (D. Quixote, 2016), um livro que se alicerça numa deliberada indefinição entre o real e o imaginário, entre o verosímil e o fantástico.

No epicentro da trama está um alto funcionário ministerial, de nome incógnito, culto, solitário e seguro. Alguém que, em plena segunda guerra mundial, acaba de ordenar uma decisão que, numa questão de horas, afetará milhões de pessoas.

Apesar do peso que carrega, a sua serenidade, aparentemente imutável, desmorona-se com algo inesperado: uma lindíssima jovem finlandesa de poético nome (Aino Laine ou a «Única Onda, em finlandês) dona de uma notável semelhança com a única mulher que ele amou, morta há anos. Contrariando o que aconselha a prudência profissional e o decoro, arrisca convidar a desconhecida para o acompanhar à noite de ópera que tinha planeado para esse mesmo dia.

Inicia-se assim um diálogo íntimo e profundo onde sedução, paixão, nostalgia e destino combinam entre si e provocam uma perturbante transformação no sólido equilíbrio burguês do sensato homem. O hermetismo inicial da jovem acentua uma sensação de confusão mas é encarado como uma espécie de segunda oportunidade quando o cenário se assemelhava resignado à infelicidade. A sua anterior amante havia cometido suicídio depois de se ter envolvido numa conturbada embrulhada sentimental (e sexual) e ter colocado fim à vida, para, supostamente, parar uma dor que teimava em manter-se mas que, afinal, tornou-se ainda mais conflituosa, para outros, além da sua morte.

Escrito na terceira pessoa, “A Gaivota”, publicado pela primeira vez em 1943, carrega uma ambiguidade latente muito característica, por exemplo, nas grandes obras de suspense pois nada é muito claro, declarado. Não nos é possível discernir a fronteira entre sentimentos legítimos e elevadas doses de perversidade.

Mesmo no que toca aos protagonistas, o trio entre o homem e as duas mulheres, uma morta, outra viva, faz-se acompanhar por uma sombra ubíqua sob a forma da morte, servida por Márai como um personagem de “corpo inteiro”. Ficamos (as)sim entregues a uma narrativa assente em quatro vértices que desafiam essa extrema e estranha entidade que ousamos apelidar de condição humana, sempre sublinhada por um ceticismo cru que nos faz lembrar, a ferros, que, muitas vezes, desconhecemos o nosso verdadeiro íntimo sendo o corpo apenas uma evidência, uma matéria que se transcende. Esse descontrolo emocional, essa falência, percebe-se melhor pois estamos perante um escritor que sentiu na pele o fracasso das relações interpessoais.

Neste romance que se funde num misto de paixão, morte e onírico, Sándor Márai edificou uma narrativa requintada, reflexiva e profunda cujos personagens deambulam por e através das suas emoções na tentativa de as apreender, sendo, no fundo, figuras trágicas, fatalistas, que desafiam o destino.

O amor, na perspetiva de Márai – e porque não dizê-lo por forte influência do contexto bélico da Segunda Grande Guerra em que este livro se insere -, é uma miragem, uma ilusão insustentável, desumanizadora, que promove, tal como a própria guerra, a transformação da noção de pessoa cujo molde é formado por um misto de desencanto e ironia. Resta-nos, enquanto leitores, ou recetores de uma mensagem de código próprio, sentir a evocação de um tempo antigo, quando a literatura a arte e a paixão viviam numa reclusão tolerante onde era possível transformar o sofrimento em algo belo.

In Rua de Baixo

“Homens imprudentemente poéticos
de Valter Hugo Mãe

A humanização


Era uma vez um artesão que vazia leques e um oleiro que fazia taças. Era uma vez um Japão distante em que o amor se media pelo pensamento, a sensatez pela ausência de atos, a paixão pela distância e ausência das pessoas que se amam. Era uma vez Itaro, o artesão, e Saburo, o oleiro, que cultivavam uma perigosa animosidade fundada na irracionalidade da “saudável” convivência. Era uma vez dois homens em luta consigo próprios cujos sabres desbravam os seus pensamentos, as suas perdas, o seu caminho interrompido pela desgraça. Era uma vez a morte, presente ou ausente, de ser-se humano. Era uma vez uma imaginação feita, pensada, edificada, em jeito de parábola e que revela as fraquezas das gentes desenraizadas de sentido, feridas de morte pela vida.

Não era uma vez, são todas as vezes. São todos os livros de Valter Hugo Mãe. Peças únicas de uma filigrana narrativa escrita com alma de poeta sem rimar, que procuram «a felicidade no detalhe» e levam o leitor a uma espécie de lugar recorrente, conhecido, próximo, íntimo. E que fazem entrar numa geografia particular, seja “aqui” ou na terra do sol nascente, este último lugar palco de “Homens imprudentemente poéticos” (Porto Editora, 2016).

Dividido em quatro partes, como se de uma encenação se tratasse, o mais recente livro do autor de “A máquina de fazer espanhóis” invade-nos sem pedir licença, de início timidamente, e, depois, quase sem dar-nos conta, já não conseguimos desta cela sair, amarrados à sua eternidade poética cujo expoente metafórico afigura-se numa lenda cujo poço nos permite agarrar o medo, sentir o seu bafo e a sua violência, mas que acaba por cauterizar o mais profundo dos desgostos.

O perfil dos protagonistas, fantasmas de si próprios cuja vizinhança apenas faz adivinhar a desarmonia, traça o caminho para a restante e restrita companhia. Se Itaro ainda se pode valer da companhia da irmã cega Matsu e da senhora Kame, «a mãe perto», a Saburo resta-lhe chorar a morte de Fuyu, sua mulher. Pelo meio existem sábios que aumentam ou minguam de tamanho de acordo com a ocasião, fantasmas paternais ou um espantalho de quimono (trans)vestido que serve de bandeira à saudade.

Como suporte global está a natureza. Seja ela da vida ou da morte, da dor alheia à vontade ou da procura do suicídio como um ato de expiação esgravatado numa floresta anónima, oca de vida, que serve de santuário à reflexão cujo vórtice apela ao mito de Ariadne, a essa procura do caminho certo, seguro, merecido.

Mais que um livro, “Homens imprudentemente poéticos” é uma ferida aberta, uma dor ora latejante ora suportável, sem analgésicos ou cura. É um pedaço da vida, de um «tempo mitológico» construído com uma escrita dinâmica, elástica e plástica, em que os Homens, desprovidos de qualquer sentido de visão, assumem essa condição ficando de costas voltadas para todos os lados.

In Rua de Baixo

domingo, 13 de novembro de 2016

“Doce Carícia”
de William Boyd


Conhecido por obras como “Viagem ao Fundo do Coração” ou “Inquietude”, o britânico William Boyd traçou um percurso literário marcado por um assinalável e muito competente conjunto de narrativas onde o amor, a paixão, é uma vincada imagem de – e que – marca.

O seu mais recente livro, “Doce Carícia” (D. Quixote, 2016), tem como figura central a fotógrafa Amory Clay, e conta-nos a sua vida desde 1908, data do seu nascimento, até 1977, altura em que, quase septuagenária, olha, narra e reflecte sobre a sua atribulada existência a partir do seu retiro de campo algures numa ilha ao largo da costa oeste da Escócia. A história evolui, sem respeitar a normal ordem do calendário, e onde presente e passado se confundem num puzzle emotivo e emocional que traz à tona a revelação de muitos segredos.

Armory Clay teve uma existência épica, num constante rebuliço, através de um século XX pejado de surpresas e que levou a nossa repórter a percorrer o globo e a derrubar fronteiras entre Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos da América, México, França, Escócia e Vietname. Com uma carreira pejada de aventura, Clay testemunhou – e registou – alguns dos maiores eventos da história recente, incluindo no seu currículo pedaços da Segunda Guerra Mundial que marcaram a vida de todos. E foi esse “fogo amigo” que cravou estilhaços na vida de alguns dos homens mais próximos de Armory (o seu pai, o irmão e o marido), deixando cicatrizes profundas na sua alma.

A sangria começa logo nas páginas iniciais do livro, com uma Armory, aos 19 anos, a sentir o fel do desamor quando se apaixona sem ser correspondida. Como um murro no estômago, depressa vai perceber que a vida é uma teia complicada de emoções, derrotas e vitórias e que convém ter noção de que ver apenas aquilo que se quer leva a erros irremediáveis.

Essas falhas, sub-reptícias ou mais evidentes, dominam todo o romance e, por conseguinte, a vida da protagonista. Existem também, claro está, observações casuais que podem alterar o âmago de qualquer relação, reflexões sobre a pertinência (ou não) da vida militar ou de complexas manobras profissionais que podem colocar em causa um profundo impacto financeiro.

Dada a estrutura e estilo narrativo de “Doce Carícia”, não resistimos a fazer uma quase inevitável comparação com o principal visado do já referido “Viagem ao Fundo do Coração”, pois as vidas de Armory Clay e Logan Mountstuart fazem uma admirável tangente e, em ambos os casos, Boyd faz o seu universo criativo girar em torno de uma interação entre figuras históricas reais e outras nascidas da ficção.

Neste tipo de abordagens existe sempre um risco (calculado ou não) de algumas perdas individuais e estruturais dos próprios personagens, mas “Doce Carícia” ultrapassa essa questão sem mácula e faz o leitor percorrer uma história rica e bem montada onde o tempo não pára e as emoções andam à solta, em desalinho. Esse dinamismo hábil e a sua construção cinematográfica deixam mesmo a ideia que não fará muito tempo para vermos a estória criada por Boyd no grande ecrã.

In deusmelivro

domingo, 6 de novembro de 2016

Mão cheia de livros
Semana # 44

As novidades editorais sucedem-se, felizmente, semana após semana. E como no Rua de Baixo queremos, e devemos, dar-vos conta daquilo que de melhor vai invadindo as prateleiras das livrarias, inauguramos um novo espaço. Chamamos-lhe “Mão cheia de livros” e será, essencialmente, um veículo de divulgação daquilo que as editoras fazem chegar ao mercado. Para esta semana, deixamos cinco sugestões.

Ainda com o espírito do Dia das Bruxas em eco, começamos por “Dr. Sono” (Bertrand Editora), a mais recente obra do mestre Stephen King a ser editada em Portugal e que nos remete para o universo da obra-prima “The Shinning” e assume-se como a sua sequela. No seu epicentro está a tribo Nó Verdadeiro que viaja à procura de sustento pelas autoestradas da América. Parecem inofensivos e são, sobretudo, velhos. Mas, afinal, são quase imortais e vivem do «vapor» produzido pelas crianças com o «brilho» quando são lentamente torturadas até à morte.



No campo do romance, no caso entre a ficção e a autobiografia, “Cheio de Vida” (Alfaguara), de John Fante leva o leitor a conhecer John Fante, o personagem, nas suas deambulações por Los Angeles. Neste livro reflete-se o quotidiano, a religião e as relações humanas através de uma mistura de comédia e drama.


Já “A verdadeira história das SS” (Casa das Letras), do historiador Robert Lewis Koehl, reflete a ascensão e queda da força militar e de segurança mais temida do século XX. Esta obra perturbadora revela não apenas a forma como estes soldados pretensamente superiores combateram ao lado da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial (tendo sofrido mais de um milhão de mortos), mas também como constituíram a principal força de ocupação em vários territórios conquistados, dirigiram o sistema de campos de concentração, atuaram no interior do Reich enquanto polícia secreta e eram os artífices de um projeto cultural sem precedentes que incluía desde escavações arqueológicas na Alemanha até expedições no Tibete.


Ainda no universo da história, ainda que neste caso ficcionada, destacamos “O Evangelho segundo Lázaro” (Porto Editora), de Richard Zimler, uma abordagem ao Novo Testamento, no Evangelho segundo São João, onde é narrado o episódio de ressurreição de Lázaro, um dos mais importantes milagres de Jesus. Agora, Zimler conta não só essa história como toda a vida de Lázaro e a sua relação de amizade com Jesus, num romance bem documentado que introduz o leitor na tradição mística judaica e na vida quotidiana da época.


Para o final deixamos uma sugestão que cruza a arte da leitura com a música. Falamos de “Mão verde” (Valentim de Carvalho), uma joint venture entre Capicua e Pedro Geraldes (músico dos Linda Martini). Na sua essência, este disco-livro ou livro-disco, sendo para crianças sem ser infantil tem lengalengas originais escritas e cantaroladas por Capicua e musicadas por Geraldes. As ilustrações são de Maria Herreros.

 
In Rua de Baixo

sábado, 8 de outubro de 2016

“Santuário”
de Andrew Michael Hurley

O gótico fica-lhe tão bem


O universo da literatura de contornos mais “escuros”, de tendências mais ou menos góticas, pode, tendencialmente, cair no espetro dos lugares-comuns, com “vícios” de certa forma esperados. Com milhares de livros do género a serem lançados todos os anos o perigo do produto final ser pouco (ou nada) atrativo é mais real e convincente do que alguns dos seus enredos.

Mas, felizmente, existem exceções e quando isso acontece o prazer da leitura é pleno. Um exemplo disso é “Santuário” (Bertrand, 2016), livro de estreia do inglês Andrew Michael Hurley que aquando da sua primeira edição em 2014, num lançamento limitado de 300 exemplares, deixou leitores e crítica rendidos, logrando mesmo alcançar o Costa Book Award 2015 na categoria de romance de estreia, assim como o British Book Award 2016 enquanto melhor obra debutante e melhor livro do ano.

O mérito esteve, está, na boa gestão de um perfil que mistura ambientes de terror com sopros góticos, casas em ruínas com ambientes húmidos e escuros, viaturas avariadas com propositados dilúvios, a voracidade da Natureza com a mutilação de animais, padres, bruxaria, religião e muita, muita superstição. Mas o principal trunfo de Michael Hurley é conseguir tornar Loney, uma zona costeira a noroeste de Inglaterra que servia de santuário para tantos desejados milagres e o espaço onde decorre a ação de “Santuário”, no protagonista.

É ai que Smith, o narrador, regressa amiúde durante todo o livro e nos oferece fragmentos do seu passado na companhia de Hanny, o seu pequeno e protegido irmão mudo, os seus pais, o velho casal Belderboss e os párocos Wilfred, primeiro, e Bernanrd, e como primeira revelação, sabemos da descoberta de um cadáver de uma criança em Coldbarrow, na costa de Loney.

Algo de terrível parece ter acontecido e o resultado dessa tragédia são os restos encontrados na lama. Smith e Hanny, agora adultos, são forçados a recuar no tempo e a angústia entretanto esquecida regressa traiçoeira e assustadora. Ao leitor, resta envolver-se neste jogo bidimensional e ser embalado por uma juventude sublinhada pelas fortes vagas da costa de Loney e sentir o fel de outrora.

Ainda que longe fiquem os tempos em que os pais partiam em peregrinação pascal para o referido desalentado local, para pedir ajudada divina para o silêncio votada ao pequeno Hanny, as memórias continuam assustadoras.

Através de uma escrita inteligente e sedutoramente simples, “Santuário” envolve-nos na sua tenebrosa atmosfera e cada virar de página é um momento de ansiedade e incerteza, que assombra. E mais do que aquilo que está escrito, é o que é induzido, sugerido, que mais sufoca, estilo esse que nos remete para, por exemplo, o fantástico universo de “Nosferatu” de F.W. Mournau.

Estamos perante um exercício que deixa a imaginação correr livre através de uma fundamentada descrição que torna o ranger de uma porta, a avaria de um automóvel, uma singela rapariga numa cadeira de rodas ou um simples acenar num episódio opressivo construído à base de diálogos longe de estilos supérfluos e diretos ao âmago da trama.

Existe ainda tempo para colocar o dedo na ferida de algum misticismo associado à religião, ao exagerado espírito devoto que pode cegar em nome de uma fé gasta, perra e que teima em fugir do seu propósito, forçando a já ténue linha entre racionalidade e inverosímil e a esticar ao limite que pode mesmo significar a morte da crença.

A narrativa, construída à base de um isolamento físico e mental, é cozinhada numa espécie de limbo entre o supernatural e o estranho, onde o simples ato beato pode ser o princípio e o fim de uma qualquer certeza divina e que o não ingresso ao excesso de momentos movidos a sangue e horror apenas sublinham a mestria do seu escriba pois o gótico não pode ser confundido apenas com muita hemoglobina mas sim definido por um fino recorte de denso conteúdo.

In Rua de Baixo

“O Meu Nome é Lucy Barton”
de Elizabeth Strout

Anatomia urbana da solidão


 
Alguns livros revelam-se absolutamente irresistíveis logo após as primeiras páginas e a sensação de estarmos perante uma estória memorável tem efeito imediato. Essa premissa aplica-se, na perfeição, a “O Meu Nome é Lucy Barton” (Alfaguara, 2016), o mais recente livro de Elizabeth Strout que chegou recentemente às livrarias portuguesas e que tem tudo para ser uma das obras mais marcantes na rentrée.

Através de uma simplicidade narrativa absolutamente desarmante, Stout – autora que já arrecadou o Pulitzer, os prémios Los Angeles Times Art Seidenbaum Award e Chicago Tribune Heartland Prize, tendo sido também finalista do PEN/Faulkner e Orange Prize, em Inglaterra – volta ao universo do conto, no caso versão xl, e apresenta-nos um pouco da vida de Lucy Barton, uma mulher comum mas cujo extraordinário caráter e dúvidas existenciais nos remetem para um dos recantos mais íntimos do ser humano: a (sua) solidão.

Obra breve, “O Meu Nome é Lucy Barton” revela a existência de, claro está, Lucy, uma autora de contos, “agora”, bem-sucedida que na sequência a uma rotineira intervenção ao apêndice se vê na iminência de passar algumas semanas numa cama de um hospital. Como consolo, além de uma janela com vista para o edifício Chrysler e dos sons da cidade que nunca dorme, Lucy recebe a inesperada visita da mãe depois de muitos anos sem se verem, algo que vem atenuar as muitas saudades da família.E ao longo de cinco noites, mãe e filha têm aquilo que nunca tiveram, tempo e espaço para dedicar à outra.

Entre as entradas e saídas do pessoal médico, Lucy e a mãe exorcizam um passado marcado por várias formas de ausência e embrenham-se em mais ou menos longas discussões onde as relações humanas, e alguma coscuvilhice, brotam uma espécie de reconciliação verbal e, de certa forma, emocional.

Fazendo recurso de um intrincado estimulante exercício de memória, Lucy, no papel de narradora, cauteriza alguns dos acontecimentos mais marcantes da sua vida, como o isolamento e o sentimento de pobreza vividos na infância, a ausência de uma estrutura afetiva (e) familiar, a luta para se tornar escritora, o(s) matrimónio(s) e maternidade e, essencialmente, a relação conturbada com os seus pais, algo que desperta sentimentos prosaicos, dolorosos e reveladores de um amor distante.

Ao longo do livro há também lugar para uma amarga sensação por aquilo que foi uma infância dura em Amgash, Illinois, em que as principais memórias resvalam para a miséria humana onde os abusos, principalmente os emocionais, abriram feridas que nunca se fecham por completo. Esse retorno ao passado é um dos fios condutores de “O Meu Nome é Lucy Barton” e é com o seu progresso, por vezes cronológico, que somos presenteados com episódios avulso de uma vida que teima em não deixar que Lucy consiga, real e incondicionalmente, amar e amar-se, ainda que os sentimentos que nutre pelas filhas seja quase a única esperança para que tal aconteça.

Quase como se de um puzzle emocional se tratasse, Lucy revela, em forma de desabafo e desafiando passado, presente e futuro, por exemplo, como conheceu uma escritora numa loja de roupa, e que mais tarde seria uma das suas musas; a paixão pela comunidade índia e a injustiça e violência que fora alvo; a homossexualidade reprimida do seu irmão; uma inesperada paixão alheia pela figura de Elvis Presley; o quotidiano hospitalar que segrega os portadores de SIDA; os conselhos de uma médica que tem a fórmula para que não se torne parecida com a própria mãe; como é fácil a paixão por quem trata e se interessa por nós; estranhos unidos pela inteligência e perceção da condição humana.

Unem esses relatos uma infinita ternura e gentileza enraizada nas palavras de Lucy (ou Stout) que fazem chegar ao leitor uma tensão emocional que rapidamente contagia a veracidade com que se lê e faz com que um livro com pouco mais de 170 páginas se torne numa verdadeira enciclopédia sobre a vida real.

In Rua de Baixo

“O Silêncio do Mar”
de Yrsa Sigurðardóttir

Perfume (d)a morte


Alguns dos melhores enredos narrativos não precisam de muita complexidade bastando simples linhas de sóbria contextualização. É essa a filosofia que fez nascer “O Silêncio do Mar” (Quetzal, 2016), o mais recente livro da islandesa Yrsa Sigurðardóttir.

Tudo começa, ou termina, quando um iate de luxo de nome “Lady K” embate contra o cais do porto de Reiquiavique. Da tripulação inicialmente composta por sete passageiros, e que partiu de Lisboa decidida a enfrentar o frio mar invernoso a caminho da Islândia, não resta vivalma.

Sem esperança de resolver este mistério, e de encontrar o paradeiro dos que vinham a bordo, os pais de um dos passageiros desaparecidos contratam a advogada Thóra Gudmundsdóttir na esperança de ainda conseguirem acionar o seguro de vida do filho e assim conseguir assegurar o sustento da neta, único membro de uma família de cinco que não embarcou nesta viagem devido à sua tenra idade.

O desespero invadiu o casal idoso e o desconhecimento que o desaparecimento de Aegir, seu filho, assim como da nora e das netas gémeas Arna e Bylgja, provocou uma série de dúvidas sobre o paradeiro dos familiares.

Estão assim lançados os dados para um dos livros mais negros da rentrée cuja narrativa se divide entre capítulos que narram a própria viagem e o presente, e vai manter o leitor completamente agarrado a um obra construída à base de um misto de medo, mistério e uma interessante leitura do estado da economia vivida na Islândia.

E foi essa instabilidade financeira que fez com que o “Lady K” tenha mudado de donos e Aegir entre em cena depois de um dos membros da tripulação ter partido uma perna não podendo assim assegurar os serviços a bordo. A viagem que deveria ser agradável e uma extensão das férias da família de Aegir – cinco dias a bordo de um iate de luxo é um privilégio de poucos – transforma-se num pesadelo para quem teve por destino fazer este malfadado percurso.

Gudmundsdóttir utiliza a sua habitual mestria narrativa para transformar a leitura de “O Silêncio do Mar” numa espécie de exercício pendular entre passado e presente com Aegir e Gudmundsdóttir a assumirem o papel de narrador em cada uma dessas dimensões.

Se, por um lado, vamos sabendo mais pormenores sobre a própria viagem, por outro surgem dados nascidos da investigação da advogada que contextualizam o todo. Outro dos trunfos deste livro é a atmosfera arrepiante que brota a cada página e que é muito bem sublinhada pela sinistra tripulação do iate assim como, e principalmente, pela presença das gémeas.

Dizem que o iate está perseguido por uma espécie de maldição desde a sua construção, ainda que alguns recusem tal destino, e o cenário de tragédia à sua volta não deixa ninguém indiferente, assim como o clima claustrofóbico que vai crescendo ao longo dos episódios ocorridos a bordo que jogam na perfeição com a gradual descoberta dos personagens. E nesse particular Aegir ocupa plano de destaque devido a uma personalidade dúbia mergulhada em incerteza, medo, culpa, tristeza e, finalmente, desespero.

A escrita honesta e por vezes visceral de Yrsa Sigurðardóttir torna ainda tudo mais assustador, adensando a gravidade das tempestades vividas em alto mar, os percalços com o equipamento do iate e o isolamento que cresce na alma de todos. Ninguém está a salvo a bordo do “Lady K” e a diferença entre heróis e vilões é cada vez mais ténue a cada capítulo e a morte assume-se como uma esperada certeza, enredo que lembra, assustadoramente, “As Dez Figuras Negras”, um clássico intemporal da mestre dos policiais Agatha Christie, e este é, sem dúvida, o maior elogio que se pode fazer a este livro que vai deixar abismados os fãs de um bom thriller.

In Rua de Baixo

terça-feira, 20 de setembro de 2016

“A Viúva”
de Fiona Barton

Segredos e mentiras


Com décadas de experiencia enquanto jornalista no Daily Mail, Daily Telegraph e The Mail on Sunday, a britânica Fiona Barton acompanhou inúmeros casos de polícia e entre eles aqueles que mais a fascinavam, pela sua complexidade e sentimento de descontrolo humano, estavam os crimes de sangue.

Hoje, afastada do jornalismo ativo, e a viver em França desde 2009, dá formação a jornalistas africanos e asiáticos, via internet, e tem na literatura a sua nova grande paixão.

O primeiro fruto desse amor chama-se “A Viúva” (Planeta, 2016), um thriller psicológico que traz a palco uma visão multidimensional de um crime horrível que coloca no papel de narradores a viúva (Jean Taylor), a jornalista (Kate Waters), a mãe (Dawn Elliot) e o detetive (Bob Sparkles).

A narrativa, repleta de flashbacks e assertivas contextualizações, mergulha o leitor no desaparecimento de Bella, uma menina que foi vista pela última vez em casa de sua mãe e cujo paradeiro é incerto.

Apontado como principal suspeito, e culpado, está Glen Taylor, o bom marido da submissa cabeleireira Jean. Os jornais chamam-lhe um monstro capaz do mais hediondo dos crimes mas as provas tardam em chegar pois os anos passam e Bella continua desaparecida e o acusado mantém provas da sua inocência.

Mas, entretanto, Glen morre, vítima de acidente. Jean continua agarrada à inocência do seu príncipe encantado mas Kate e Bob não desistem. Mais que uma corrida pela verdade, luta-se pela própria sanidade, pela elevação da verdade e por um caso que pode abalar a vida de todos os seus intervenientes.
Com uma dinâmica que agarra o leitor logo desde as primeiras páginas, “A Viúva” relata-nos todos os lados de uma investigação que espalha sofrimento e dúvida, assim como o crescimento dos protagonistas enquanto peças fundamentais de toda a história.

Através de uma narrativa acessível e muito bem estruturada, Barton revela o lado escondido de um casamento entre um manipulador e uma mulher que se deixa esmagar pela presença do marido, explorando a papel da mulher dentro das próprias relações, mostra a obsessão de um polícia que vê a verdade escapar-lhe a cada movimento e expõe uma jornalista que quer uma história que venda, a qualquer preço.
As pistas surgem a cada capítulo e as dúvidas quanto ao que terá acontecido fazem com que o leitor mantenha um constante estado de alerta e não tome nada como garantido.

Num jogo circular entre a perfidez do poder que cresce dentro das relações humanas, o envenenado anonimato da Internet e as táticas jornalistas para conseguir a tão desejada “cacha”, a obra de estreia de Fiona Barton tem tudo para se tornar num dos maiores êxitos deste ano no que aos thrillers diz respeito.

In Rua de Baixo

“O Domador de Leões”
de Camilla Lackberg

Raparigas desaparecidas


Foi em tempos apelidada de “Agatha Christie que vem do frio” e, ao longo dos anos, e dos livros publicados, a sueca Camilla Lackberg tem-se afirmado como um dos nomes mais fortes do universo dos policiais/thrillers nórdicos (e não só) não descurando tal título e responsabilidade.

Longe vão os tempos da (boa) surpresa que foi “A Princesa de Gelo”, obra de estreia da escritora, quando Erica Falk e Patrick Patrik Hedström não passavam de uma dupla unida pelas circunstâncias da investigação da morte de Alex, amiga de Erica, e hoje os romances escritos por Lackberg são uma espécie de muito aguardado tomo com edição no verão.

“O Domador de Leões” (D. Quixote, 2016), nono “episódio” da série e que têm como protagonistas o agora casal Erica/Patrick, não foge à regra e assume-se como um dos mais arrepiantes, negros e trágicos livros da autora nascida na entretanto “célebre” pequena cidade de Fjällbacka, urbe natal de Camilla Lackberg e palco habitual dos seus romances.

Tudo começa num gélido janeiro em, claro está, Fjällbacka. Uma adolescente, de vestes rasgadas, sai do coração de um bosque a cambalear e visivelmente maltratada. Apanhado de surpresa, um condutor que circula na entrada circundante não consegue evitar o embate e atropela a jovem.

Quando a polícia local toma conta da ocorrência já se conhecia a identidade da vítima. Tratava-se de Victoria Hallberg, desaparecida há cerca de quatro meses. A última vez que tinha sido vista regressava a casa depois de uma aula de equitação.

Ainda que trágico, o acidente revelou-se como uma espécie de libertação para Victoria pois o estado em que o seu corpo se encontrava indiciava que a adolescente tinha vivido uma experiência macabra que levava a crer que o mal não tem limites. Esta revelação deixa Fjällbacka em choque e a comunidade sente que a triste sina de Victoria não foi um caso isolado.

Enquanto Patrick e restante equipa se ocupam do assustador caso da rapariga desaparecida, Erika investiga o tortuoso passado de uma família ligado ao mundo do circo para escrever mais um livro. Para isso, Erica tem por hábito visitar Laila, uma mulher que foi acusada de matar o marido e que está encerrada num estabelecimento prisional psiquiátrico. Apesar da constante pesquisa e insistência, Erica não consegue arrancar a história de Laila que guarda dentro de si, no sítio mais recôndito e negro da sua alma, o paradeiro dos seus dois filhos.

Com uma dinâmica narrativa que joga em dois planos temporais distintos (o presente e laivos das décadas de 1960, 1970 e 1980 que vão conferindo unidade estrutural a toda a estória), “O Domador de Leões” é, à semelhança de outros livros da autora e série, um veículo em que o leitor é convidado a entrar num enredo de características “familiares” tal é o grau de conhecimento que Camilla Lackberg nos tem passado de personagens como, por exemplo, Annika, irmã de Erica, cuja relação com Dan é neste livro alvo de muita instabilidade, Martin, camarada de Patrick e ainda a tentar ultrapassar a morte da sua mulher Pia, Gosta, polícia veterano que revela um pouco mais da sua personalidade, ou Berti Mellberg, o sui generis chefe de Patrick cuja “chica-espertice” eleva os momentos de humor deste romance.

O enredo, bem intrincado, vai-se revelando contagiante e ainda que sem o ritmo de outros livros de Lackberg, somos, paulatinamente, convidados a mergulhar no mar revolto da vida do inválido e amargo Einar, pai de Jonas, o veterinário local, assim como de Marta, sua esposa e monitora da escola de equitação. Noutro plano estão a já referida Laila e o seu falecido marido Vladek, ex-estrela circense.

Com momentos verdadeiramente claustrofóbicos, onde a maldade é uma fronteira pronta a ser ultrapassada pelo mais insuspeito dos seres, “O Domador de Leões” é um tour de force cujo final de cada capítulo deixa uma pista que logo nas linhas do capítulo seguinte é colocada em causa. Com isso ganha o suspense, a emotividade, a dúvida e o leitor, pois se é fã de policiais não ver querer perder o mais recente livro de Camilla Lackberg.

In Rua de Baixo

domingo, 14 de agosto de 2016

“O Pavilhão Púrpura”
de José Rodrigues dos Santos

O mundo à beira do abismo


O projeto de escrever uma saga, algo inédito no universo literário nacional, revelava-se envolto de contornos ambiciosos logo à partida. Avesso a controvérsias e dificuldades, José Rodrigues dos Santos comprometeu-se com essa tarefa hercúlea e começou a “desenhar” uma trilogia que tem em “O Pavilhão Púrpura” (Gradiva, 2016) o seu segundo e muito aguardado tomo.

Pegando nas (muitas) pontas soltas de “As Flores de Lótus”, Rodrigues dos Santos faz-nos regressar às deambulações de Fukui, Artur, Lian-hua e Nadija, quatro «pessoas ordinárias que se viram em situações extraordinárias e que, pela forma como as souberam superar, se tornaram elas próprias extraordinárias».

Se no primeiro volume da trilogia o leitor era convidado a entrar num filme cujo fio condutor tinha por base o forte pendor revolucionário que se sentia no final do século XIX e inícios dos anos 1900, e que fazia cair alguns regimes e ideais em favor de outros, em “O Pavilhão Púrpura” o epicentro da estória centra-se no «voraz capitalismo» e nas marcas que esta nova visão económica cravou nas democracias, principalmente pelo cataclismo que se revelaria a Grande Quebra de Wall Street, conjunto de acontecimentos que não deixam de encontrar um paralelismo com aquilo que hoje vivemos.

Rodrigues dos Santos faz-nos entrar na máquina do tempo e revela os vendavais sociais vividos em Portugal, Japão, China e União Soviética. Assim, Artur, agora major, torna-se numa espécie de braço direito de Salazar e vive na primeira pessoa as estratégias que o ambicioso ministro das finanças, cujo rigor orçamental provocou o desespero entre os militares abrindo assim alas para um descontentamento crescente.

Enquanto isso, no Japão, o jovem Fukui vê-se no seio de uma dupla revolução. Se, por um lado, tem o coração divido entre a desafiante, bela e quente Harumi e a doce Ren, por outro centra as suas atenções nas mudanças políticas e culturais dos japoneses que começam a abraçar os ensinamentos chegados do ocidente em detrimento das tradições xintoístas e confucionistas. A terrível depressão vivida na Manchúria e os conflitos com a China estão também na ordem do dia.

Também por terras do Oriente, a pequena Lian-hua consegue escapar às garras de Mao Tse-tung e vai para Peiping, entretanto declarada capital, território que sente a invasão japonesa da Manchúria e torna-se num local perigoso para todos. Pesadelo similar vive Nadija na sua União Soviética, principalmente depois de Estaline ter decidido que a vanguarda do pensamento está intrinsecamente aliada à superioridade do comunismo e das consequentes coletivizações, cujo preço se traduz em fome, miséria e uma servidão sem limites em nome de um “ideal”. Para tornar ainda tudo mais complicado, da Alemanha surgem os primeiros ecos da eugenia e higiene racial, propulsionados por uma política nascida da mente de um certo Adolf Hitler.

Com um começo algo morno, “O Pavilhão Púrpura” segue todos os predicados da escrita de José Rodrigues dos Santos, com a ação a dar lugar a uma maior contextualização inicial. Mais uma vez, nota-se um claro domínio do autor na dialética histórica mas a evolução da narrativa revela um menor investimento emocional nos personagens (talvez com a exceção de Fukui) para se focar nos já habituais diálogos académicos repletos de (supérflua) informação que chega, a espaços, a tornar-se contraproducente face ao dinamismo coletivo do romance. Essa questão é ainda mais relevante quando nos deparamos com a riqueza que o narrador pode oferecer à globalidade da trama, esse sim, um “personagem” emocionalmente bem construído, e frágil, cujo sofrimento apenas é denunciado, mais efusivamente, nas derradeiras páginas deste livro.

É também nos últimos suspiros deste romance que a narrativa se revela mais acutilante, principalmente com a trágica peripécia vivida por Nadija, aguçando a curiosidade face ao culminar da trilogia que nos chegará através de “O Reino do Meio”, a ser editado no próximo ano.

In Rua de Baixo

“Um Copo de Cólera”
de Raduan Nassar

Manual de instruções para relações marginais 


Não sendo um autor muito prolífero, o brasileiro Raduan Nassar conseguiu a proeza de marcar a literatura de língua portuguesa através de duas obras fundamentais como “Lavoura Arcaica” e este “Um Copo de Cólera” (Companhia das Letras, 2016), títulos que valeram recentemente ao autor paulista o devido reconhecimento através do Prémio Camões 2016.

Polémico em toda a sua amplitude, “Um Copo de Cólera” foi escrito em 1970, em plena repressão da ditadura militar no Brasil, e apenas viu a luz do dia cerca de oito anos depois. Um livro descrito por muitos como «difícil», é uma novela pós-modernista que versa, e extravasa, a simples ideia de humanidade.

No epicentro de toda a convulsão que é este livro está um casal, uma dupla de amantes que entra num decisivo confronto cujo final parece ser a aniquilação alheia. E como em guerra quase todas as armas são válidas, nas páginas deste (pequeno) livro são vulgares os insultos, a crueldade, o (próprio) sexo ou a vontade de dominar ou ser dominado.

Os espaços de confronto são a cama, a banheira ou a mesa onde se come o pequeno-almoço e é neles, e através deles, que se libertam egos, se oprime o adversário e se diaboliza sobre a própria sociedade e os seus limites, pois não é a catarse que Nassar procura mas sim um puro e deleitoso exorcismo recheado de falsos moralismos.

Além de uma guerra (sexual) sem quartel, os sete capítulos de “Um Copo de Cólera” – escritos de um só pulsar onde apenas existe um parágrafo e o ponto final adquire a forma de preciosa e contextualizadora pausa – cauterizam através de citações, opressões, contradições desabafos, por via de uma linguagem ora poética, ora teatral, mesclando o absurdo com o surreal.

Sem o recurso a perfis de vencedores ou vencidos, Raduan Nassar apela a um desalinho romântico nascido no coração de uma ditadura que marcou não apenas social e politicamente mas também o coletivo emocional de um povo constantemente oprimido, e só através de uma linguagem nua e sem qualquer traço de censura pode chegar-se a um patamar onde o marginal pode desafiar o absolutismo bacoco.

Mais que uma tensa narrativa que se lê num fôlego sobre um arrogante e rude homem mais velho e uma liberal mulher mais nova, este livro, metafórico, mostra a rutura, a raiva, as fronteiras das relações humanas, do próprio machismo ou do maternalismo estéril, de classe e género, através de uma intensidade física, desgastante e complexa.

In Rua de Baixo

“A Rapariga da Banda” de Kim Gordon | “M Train” de Patti Smith

O rock e a vida

Numa altura em que os festivais de música atingem o seu auge por terras lusas, a música transcende a sua forma auditiva e pode assumir o formato livro, nomeadamente através da fusão entre o género biográfico e a crónica.

Dois exemplos disso são “A Rapariga da Banda”, de Kim Gordon (Bertrand, 2016), e “M Train”, de Patti Smith (Quetzal, 2016), livros recentemente editados e que mostram um pouco mais da vida da ex-baixista dos Sonic Youth e da mítica cantora e poeta Patti Smith.

Em ambos os casos, a emoção é o fio condutor para confissões, mais ou menos filosóficas e urbanas, ou pedaços biográficos de uma vida que colocou estas mulheres entre a elite da história do Rock.

Sem índices ou resumos capitulares, onde a forma de compreensão assume-se por via de um crescente sentimento dos números que abrem os seus pensamentos, “A Rapariga da Banda” é um exercício deveras interessante, e muitas vezes emotivo, com Kim Gordon a vestir o fato de (auto)biografa mas que curiosamente inicia as páginas deste livro com um fim, no caso, o último concerto dos Sonic Youth e o processo de luta interior que isso a conduziu.

Pelo meio, conhecemos várias etapas do seu crescimento, a história da sua família, as aventuras nas artes visuais, a sua mudança para Nova Iorque, os homens que lhe assaltaram as emoções, a relação com Coco Hayley, sua filha e, claro está, a música e o seu casamento e divórcio com Thurston Moore e os Sonic Youth.

Esta viagem em forma de livro leva-nos a destinos mais ou menos caros a Gordon, alguns deles quase em piloto-automático. Existem pontas soltas, memórias boas, outras nem tanto, mas no centro de tudo está uma mulher que sabe o que quer, emocional e criativamente, e tem noção das suas escolhas e faz um excelente relato daquilo que é o amor de estar em palco e tocar música.


 Já “M Train” de Patti Smith rege-se por uma abordagem mais experimental, com a autora a definir este livro como «um mapa de estradas» da sua vida cuja narrativa parte do presente, nomeadamente através dos exercícios reflexivos que nascem no “Greenwich Village”, um pequeno café que serve de poiso reflexivo da autora de discos como “Radio Ethiopia” e do nascimento da estética punk.

As 19 estórias, ou estações como lhe chama Patti Smith, fluem entre o onírico e o real, sem uma linha cronológica assinalável mas com o lado mais criativo sempre em destaque, seja o motivo da escrita o simples ato de beber café, assistir a séries policiais ou visitar túmulos de gente conhecida das artes.

O prazer de ler Patti Smith, ou de contemplar os seus retratos polaroid, reside do mais puro sentido nostálgico, e por vezes minimalista, onde se exploram, e dilaceram, obsessões literárias, gostos boémios, viagens quixotescas ou moleskines. Tudo motivos essenciais para uma mulher que confessa não gostar de «nada supérfluo», definindo assim uma rara estética pessoal e (in)transmissível.


In Rua de Baixo

domingo, 17 de julho de 2016

“Numa Floresta Muito Escura”
de Ruth Ware

Os Segredos da Casa de Vidro


Aquando da apresentação de “Numa Floresta Muito Escura” (Clube do Livro, 2016), a autora e escritora britânica Ruth Ware afirmou que ganhou inspiração para escrever este livro com universo de Agatha Christie e também com o filme “Scream”.

E é definitivamente essa a sensação que nos invade logo desde as primeiras páginas de um livro que se move num sentimento de suspense constante com laivos de terror, onde um grupo dinâmico de personagens, cujas intenções nos surpreendem e põem em causa, comandam todo o exercício narrativo.

Tudo começa quando Nora, uma escritora de policiais, recebe um inesperado apelo via email ao ser convidada para a despedida de solteira de Clare, uma amiga que o tempo acabou por separar. Ainda que a medo e mergulhada na surpresa, Nora, dona de um perfil pouco social, aceita o convite e decide integrar o grupo de seis pessoas convocadas para essa reunião marcada para uma casa isolada numa floresta recôndita, e essa decisão vai marcar a sua vida para sempre.

Nora vê-se assim forçada a um peculiar convívio no meio de estranhos, à exceção de Clare e Nina, ambas colegas de uma distante infância, e a sensação de que deveria ter recusado o convite ganha cada vez mais contornos, principalmente por ver-se obrigada a responder a questões ligadas a um período que, definitivamente, quer esquecer.

Cerca de quarenta e oito horas depois dessa estranha reunião, Nora acorda no hospital. Desorientada e ferida, não se recorda de nada mas sabe que algo muito grave aconteceu. Sente a morte de alguém, mas não sabe de quem. Pergunta-se o que terá acontecido naquela casa envidraçada perdida na muito escura floresta. Encarcerada num mundo de dúvidas, vai recuperando a memória e sente que o pesadelo está apenas a começar.

O enredo, claustrofóbico e tenso, de “Numa Floresta Muito Escura” prende eficazmente o leitor e o pequeno elenco envolve-nos à medida que segredos são revelados, ainda que à superfície não seja demonstrada toda a sua negra imensidão.

Outro dos trunfos deste livro é o desenho individual de cada personagem que se vai assumindo como essencial na globalidade da narrativa dando a sensação de uma intrincada relação global (bem) definida por Ruth Ware, e que serve de elemento contextualizador para as diferentes peças do cativante puzzle que é este livro.

Ainda que com alguns tiques algo previsíveis, Ruth Ware faz-nos chegar um thriller bem contado e construído que leva o leitor a mergulhar numa viagem extrema onde o medo e o perigo escondem-se atrás daquilo que de mais assustador existe: a mente humana.

In Rua de Baixo

“As Raparigas Esquecidas”
de Sara Blaedel

Floresta de Sombras

 
A chegada de mais um autor de romances policiais oriundo do Norte da Europa é sempre uma excelente notícia. Desta vez a honra cabe à dinamarquesa Sara Blaedel, uma ilustre desconhecida por terras lusas mas que tem uma acérrima horda de fãs espalhada por todos os países que já editaram os seus livros. A sua estreia em Portugal faz-se com “As Raparigas Esquecidas” (Topseller, 2016), sétimo volume da série Louise Rick e primeiro tomo da trilogia homónima.

No centro da trama está, obviamente, Louise Rick, agente policial recentemente transferida para o Departamento das Pessoas Desaparecidas e que fará parelha com Eik Nordstrom, um homem sempre trajado de negro, viciado em tabaco, à beira de um qualquer limite pessoal, que faz do bar local sua casa.
Apesar do início da parceria se revelar conturbado, Louise e Eik acabam por conseguir ultrapassar as diferenças e quando um terrível crime acontece, juntam forças. O caso é complicado e tudo começa quando uma mulher aparece morta numa floresta e o crime é revelado quando o guarda-florestal encontra o maltratado corpo.

Profundamente marcada por uma cicatriz que lhe envolve grande parte do rosto, a mulher morta parece ser facilmente reconhecível, mas essa tarefa revela-se mais complicada pois ninguém relatou o seu desaparecimento e dos registos não constam os seus dados.

Luise e Eik procuram pistas mas estas teimam em não existir. Na esperança que alguém identifique aquele rosto tão marcado, é publicada uma fotografia da mulher no jornal local e os resultados são quase imediatos. Louise recebe um telefonema de Agnete Eskildsen e fica a saber que o corpo pertence a Lismette, uma das «raparigas esquecidas» de Eliselund, antiga instituição estatal para doentes mentais onde Agnete trabalhara anos antes e cujas memórias assombram a sua vida desde então.

A descoberta leva a dupla do Departamento de Pessoas Esquecidas a investigar os arquivos da instituição e acabam por descobrir terríveis segredos que colocam toda a comunidade em cheque, e choque. A desconfiança cresce à medida que mais se sabe sobre o caso e as mortes continuam a acontecer na floresta…

Sara Blaedel consegue construir uma narrativa envolvente, emocional e emotiva, misteriosa, com alguns requintes de malvadez e cenas onde o ódio e a violência desafiam os limites da mente humana. A par da investigação policial, existe espaço, e cuidado, para uma breve apresentação do elenco com particular destaque para o personagem de Louise, uma mulher encurralada num passado tortuoso onde os maiores fantasma assumem a forma do suicídio de Klaus, seu antigo namorado, e a relação fugidia com a sua família, exceção feita a Jonas, seu filho, e Melvin, seu paternal vizinho. Também Camilla, uma das melhores amigas de Louise, e a braços com uma situação pessoal instável, tem uma presença determinante na trama, principalmente a partir do momento que decide investigar o estranho caso das raparigas desaparecidas, mortas ou violadas que assombram a comunidade.

“As Raparigas Esquecidas” é, no seu todo, um bom livro, cru e com boas doses de suspense, reviravoltas e um assassino cuja forma de atuação nos faz devorar as páginas com voracidade deixando a dúvida sobre a sua identidade até aos suspiros finais, mas que, a espaços peca por deixar o leitor um pouco perdido face ao natural desconhecimento do passado de alguns personagens.

Este livro revela ainda uma outra dimensão, levando-nos para um território que transcende o próprio cenário ficcionado e que remete para as situações de maus tratos em instituições para pessoas com deficiências e os abandonos, forçados ou não, que são alvo e que demonstra que a sociedade, infelizmente, ainda está muito longe da plenitude solidaria e humana que tanto se apregoa, e espera, e que muitas vezes é moldado por dramas pessoais.

 In Rua de Baixo

NOS Alive 16: Dia 3
Em dia de festa, cantam milhares de almas


Mais um dia, mais uma grande viagem, à volta do mundo. O terceiro e último dia da edição do NOS Alive deste ano foi muito intenso e foi possível sentir o habitual ecletismo sonoro. A abrir sentimos o calor mariachi dos Calexico, depois serpenteamos com uma dupla Jibóia, saltámos a galope dos Band of Horses e acabámos a noite com uma beleza em tons de branco e prata com a prestação estrelada dos Arcade Fire. Pelo meio ficamos a saber que a edição do próximo ano já tem data marcada e a busca pelo «melhor cartaz de sempre» já começou.

18.55 – Calexico – Palco Heineken

Quem chegou à tenda Heineken minutos antes do início do espetáculo podia ver o palco já cheio de gente. Ensaiavam-se guitarras, trompetes e bateria. Bem no centro, destaca-se um senhor de camisa vermelha que coordenava as operações. Cá em baixo, no imenso tapete verde, enquanto a música não tomava conta do recinto, havia tempo para conversar, descansar, que isto de andar três dias a viver maratonas sonoras não mata mas mói, e saltar uns gritos por Portugal. O palco teimava em manter-se sobrelotado e, ainda com a “música” ambiente a emanar dos écrans que ladeiam o palco, ouvem-se os primeiros acordes de “Frontera/Trigger”, a faixa que tem aberto os concertos recentes dos Calexico.

Num ápice, o ar é invadido por uma envolvência mariachi e Joey Burns, o tipo da camisa escarlate, John Convertino, Scott Colberg, Jacob Valenzuela, Martin Wenk, Sergio Mendoza e Jairo Zavala, quais sete magníficos, fazem-nos entrar num “filme” cujo argumento remete para os caminhos quentes da Tucson natal da banda que, por quase uma hora, nos fizeram sentir tudo menos os últimos homens (e mulheres) do planeta.

Com a evidente empatia conseguida logo nos primeiros instantes entre banda e público, Burns solta um «Bom dia» com um sotaque quase perfeito, e ataca “Falling From the Sky”, um dos exercícios mais pop do veterano coletivo. Mas a festa atingia sempre um especial pico com a aventura por territórios de ritmo mexicali e "Cumbia de Donde" fez dançar e aplaudir. Um dos momentos mais intensos da atuação, com Burns a assumir o papel de o contador de serviço, foi a dramática “Maybe on Monday”, o mesmo acontecendo com a lindíssima “Black Heart”.

Os corpos voltaram a agitar-se com “Soledad (Cumbia en la Mar)", uma versão do colombiano Enrique Bonfante, e “Inspiración”, com o microfone a ser assumido por Jacob Valenzuela que ainda assim não abandonou por completo o trompete.

O ambiente estava ao rubro e ninguém resistia a abanar corpo e alma. A fiesta seguiu-se com o clássico de coração destroçado que é “Alone Again”e o hino à redenção de nome “All Systems Red”, cujo pujante e brilhante final arrancou uma merecida ovação.

Também ele rendido, Joey Burns, confessava que se sentia na sua Arizona natal e agradecia a paciência que tínhamos em estar ali. Modéstias e simpatias à parte, a melhor recompensa que todos sentimos ao assistir a tudo isto assumia a forma de uma música sem fronteiras, feita e pensada numa espécie de crossover de todo o continente americano. As derradeiras balas sonoras disparadas pelos pistoleiros Calexico atingiram-nos em cheio no coração (derretido) e “Bullets & Rocks”, “Crystal Frontier”, vénia dividida para Burns e Convertino, e “Guero Canelo”, um original de Manu Chao, fecharam uma prestação que dificilmente se esquecerá. E porque isto do amor com o mesmo se paga, Burns despediu-se com um voto especial: «amanhã, vamos fazer força por Portugal na final do Euro!». A bola já rola?

Serpentes ecléticas e novidades, das boas

Ainda com os sons da latina América na cabeça, seguimos para outras latitudes sonoras. Ali mesmo à beira do palco Heineken, o espaço Raw Coreto estava muito bem composto e o ar, era invadido por sons que nos remetem para o Médio Oriente. Voamos até lá e ao descer do tapete aterramos no concerto de Jibóia, projeto português da dupla Óscar Silva (guitarras, eletrónicas e beat) e Ricardo Martins (bateria). O concerto teve como ponto de partida (e chegada) “Massala”, o recente álbum da banda que é, nas palavras de Óscar Silva, «uma mistura de especiarias», e nele se amalgamam sons da América do Sul, África, Europa e Ásia.

A internacionalização musical dos Jibóia, também apanágio de um festival como cada vez mais se assume o Alive, serviu como uma espécie de ponte para aquilo que foi dito por Álvaro Covões, diretor da Everything is New, numa conferência de imprensa em forma de balanço e que contou ainda com a presença de Paulo Vistas, presidente da Câmara de Oeiras, e Rita Torres Baptista, diretora de marketing da NOS. Numa breve e agradável conversa, salientou-se a segurança de um festival que tem tido o mérito de conquistar considerável reputação por esse mundo fora, integrando mesmo a lista dos 10 melhores festivais do planeta difundida pela insuspeita cadeia de televisão norte-americana CNN. Entre sorrisos e sentimentos de dever cumprido, ficamos a saber que esta edição do Alive contou com festivaleiros de 88 nações diferentes, num total de quase 32 mil almas de outros quadrantes, e que foram acreditados perto de 500 jornalistas, dos quais uma centena eram estrangeiros. No final, somos também informados que a edição do NOS Alive 17 já está em marcha e tem data marcada: 6, 7 e 8 julho.

21.00 – Band of Horses – Palco NOS

Na memória de quem esteve no Passeio Marítimo de Algés na edição do Alive de 2013, então ainda Optimus, e teve a sorte de estar no palco Heineken a assistir ao concerto dos Band of Horses, estão recordações de um excelente espetáculo da banda liderada por Bred Bridwell. Passados três anos, e face ao crescimento, a pulso, da banda, os Band of Horses subiram de divisão e estão agora entre os eleitos que pisam o palco NOS já sem a luz do sol.

Na ressaca da estreia de “Why Are You Ok?”, o quinteto de Seatlle tinha a difícil tarefa de subir a palco antes dos muito esperados Arcade Fire e sofreram um pouco a ansiedade que espelhava a cara dos milhares que tinham à sua frente. Independentemente disso, os Band of Horses estavam decididos a entreter os convivas e o começo do concerto deu-se com a fantástica “Is there a Ghost” que, noutros tempos, seria escolha mais que esperada para fechar a prestação. “Casual Party”, com um assumido perfil radiofrendly, foi o primeiro mergulho no refrescante rio que é “Why Are You Ok?”, bem secundado pela etérea e melancólica “The Snow Fall”, pérola retirada de “Everything All the Time”, registo de estreia da banda.

Seguiram-se “The Great Salt Lake”, a luminosa “Solemn Oath” e “In A Drawer”, as duas últimas safra do registo de 2016. A receção do público alternava entre a momentânea excitação e um aparente alheamento e as razões, dizemos nós, estariam associadas a algum desconhecimento em relação às novas canções e ao aproximar da presença dos Arcade Fire. Ainda assim, o jogo de guitarras de “Laredo” não deixou ninguém indiferente e o espírito texano da nova “Throw My Mess” fez abanar alguns esqueletos, enquanto a doce e aveludada “Hag” aqueceu e protegeu muitos corações do vento.

Perto do final, a emocionada declaração “No One's Gonna Love You” provocou muitos beijos no perímetro e “Cigarettes, Wedding Bands” abriu caminho para a música que todos esperavam e “Funeral” fez, pela primeira vez, todos olharem o palco.

Ainda que tivéssemos assistido a um bom concerto, os Band of Horses acabaram por ser “vítimas” dos senhores que se seguiam e, objetivamente, o coletivo liderado por Bridwell merece mais atenção e um espaço mais íntimo aumenta o sentido à sua música.

22.45 – Arcade Fire – Palco NOS

Que atire a primeira pedra quem tinha bilhete para o derradeiro dia de Alive e não sonhava com o concerto da banda do casal Win Butler e Regine Chassagne. À medida que o dia avançava a pergunta mais frequente era quanto tempo faltava para começar o concerto de Arcade Fire. Muita coisa mudou desde o lançamento de “Funeral”, em 2004, e, hoje, a banda canadiana atingiu um estatuto maior do que aquele que certamente esperariam. Cada disco do sexteto, que em palco se transforma numa espécie de plantel futeboleiro tal a quantidade de craques em campo, é uma esperada obra-prima cujas epifanias agradam uns e fazem outros questionar as direções tomadas.

Com um palco cuidado, digno de um estrelato que, literalmente, marcava esse espaço, os Arcade Fire entraram com o jogo ganho à partida mas cuja mestria tinha de ser provada, e ao longo de mais de hora e meia deixaram sangue, prateado, suor e provocaram algumas lágrimas, das boas.

“Ready to Start” abriu o caminho de uma estrada cujo destino nos fez chegar a uns deliciosos “The Suburbs. A viagem fazia-se ao ritmo de um passeio agradável. Ao volante, Butler, vestido de branco, mostrava-nos as direções e alguma dúvida sobre o trajeto facilmente era esclarecido por uma Regine, prateada, e que chegou mesmo a assumir o papel de decidida cheerleader.

Com o depósito cheio de um inesgotável combustível, subimos a um céu repleto de estrelas com “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”, num ritmo naife e psicadélico, e ousamos não ofuscar pelo brilho de “Reflektor” e dos espelhos que invadiam o palco. Desafiando a gravidade e não podendo deixar de sentir, ao longe, os saudosos New Order, saltamos com “Afterlife”, e para não perder o ritmo, recebemos, de braços e ouvidos abertos, “We Exist” e a rockeira “Normal Person”.

Com a congregação rendida ao seu pastor, ainda que sem bíblias de néons, as palmas sublinhavam o andamento de “Keep the Car Running”, havendo condições para dar seguimento à liturgia de “Intervencion”(com uma breve revisitação aos Sex Pistols no final), com direito ao exorcismo negro que é “My Body is a Cage”. De novo à conta de uma luz nascida nos subúrbios, “We Used to Wait” empurra aos almas até ao céu, faz Win Butler correr desenfreadamente pelas laterais do palco, e não é de estranhar que cheguemos a um sítio como “No Cars Go”, um dos momentos mais bonitos da noite.

A celebração não parava, ainda que por vezes fosse necessário reduzir o andamento e “Ocean of Noise” conseguiu recuperar o fôlego para chegar a um bons portos de abrigo como são “Neighborhood #1 (Tunnels)”, cujo riff inicial desperta qualquer coração, e “Neighborhood #3 (Power out)”, que nos fizeram recuar até ao disco de estreia da banda. Mas se “Rebellion” nos manteve em “Funeral”, “Here Comes The Night Time” teve o condão de nos avançar no tempo e transportar para outras reflexões com o palco a ser invadido não por aliens mas pelos cabeçudos que ficaram conhecidos no videoclip de “Reflektor”, obra do mestre Anton Cornijn. O final do concerto, depois de Butler se aventurar junto do público, entretanto premiado com uma chuva de confetti, e receber como recompensa um cachecol de Portugal, fez-se ao som do esperado “Wake Up”, canção que faz disparar uma espécie de orgasmo auditivo e leva-nos a entoar a canção durante, minutos, horas, dias. De alma cheia, resta-nos, portanto, dizer obrigado, pois, bolas, valeu mesmo a pena!

Fotografia: João Lambelho