quarta-feira, 26 de novembro de 2014

“Do Holocausto à Salvação”
de Bernard Wasserstein


A irracionalidade de alguns actos (des)humanos continua a assombrar um dos mais negros períodos da história mundial. Por vezes, parece que a provação enfrentada pelo povo judeu durante o imperativo Nazi aconteceu numa galáxia distante. Como é possível conceber o extermínio de um povo e lidar com tal destino?

Por outro lado, a amplitude contrastante entre estar “marcado” para a exterminação e manter um perfil que era constantemente saudado entre as elites é um intenso mistério. Essa hesitação agoniante foi sentida por alguns que, inseridos em uma particular conjuntura se sentiram, enquanto judeus, uma minoria privilegiada que gozava do “luxo” do quase livre arbítrio, mas que usava esse poder para ajudar os seus semelhantes a fugir de uma realidade negra.

O grande objectivo era escapar à morte certa, julgamento esse decidido num tribunal unilateral e omnipotente. A fuga, entendida na forma de escape face à deportação para as fábricas de morte idealizadas pelo Terceiro Reich, colocou em cena indivíduos que ousaram desafiar o poder instituído numa Europa à mercê de um louco chamado Adolf Hitler.

É sobre uma dessas almas altruístas que recai “Do Holocausto à Salvação” (Vogais, 2014), uma obra da autoria de Bernard Wasserstein, historiador e professor de História Judaica Europeia Moderna na Universidade de Oxford, que também se dedica à História e Política de Israel. A par de nomes como Aristides de Sousa Mendes, Oskar Schindler ou Raoul Wallenberg, Gertrude van Tijn, uma judia alemã com nacionalidade holandesa e um dos principais membros do Conselho de Amesterdão, logrou lutar pela vida de milhares de pessoas cuja esperança fugia a cada segundo face à determinação das forças Nacional-Socialistas.

“Do Holocausto à Salvação” mostra o seu percurso diplomático no seio de uma das maiores convulsões mundiais, aproveitando Wasserstein para relembrar muito daquilo em que se centraram os debates judaicos realizados e propostos posteriormente por Hannah Arendt que enfatizava, pertinentemente, noções como a “cumplicidade” e a “culpabilidade”, esquecendo-se de entender a extraordinária coragem de activistas como van Tijn, que ousaram desafiar a autoridade Nazi assim como a – por vezes – amorfa intervenção dos Aliados, conceito entendido neste contexto como potencialmente amigáveis.

Ao longo das páginas deste muito interessante e acutilante livro, somos convidados a sentir os inacreditáveis algoritmos emocionais que pessoas como Gertrude van Tijn sentiam ao pensar os trabalhos diários de resgate e o constante recorrer à boa vontade alheia através de fundos e apoios supranacionais. A dilacerante dúvida entre quem escolher, o dilema da “opção” face à deportação mediante inevitáveis rivalidades e “traições”, assombrava a mente da holandesa.

Mas, sob outra perspectiva, “Do Holocausto à Salvação” evoca o poder da sustentação absolutamente vital da amizade, esse porto de abrigo que também salvou van Tijn da morte, principalmente quando a holandesa passou por períodos dramáticos em termos pessoais – nomeadamente nos anos 1930, quando se divorciou e viu alguns dos seus melhores amigos e vitais alicerces falecerem.

A tenacidade do espírito de van Tijn desafiou tudo e todos e, quando a Segunda Guerra Mundial atingiu o seu pico, Gertrude chegou a Portugal por forma a deixar para trás a sitiada Amesterdão. Na bagagem, mais que pertences, trazia uma missão especial: negociar o refúgio de milhares de judeus, de naturalidade alemã e holandesa, com a “estranha” permissão das autoridades nazis.

Desconfiadas, as autoridades portuguesas encaravam Gertrude van Tijn com um misto de respeito e confiança e foram muitas as teses criadas em volta da holandesa que, em tempos, optou pelo Sionismo. Teria sido ela um simples meio estratégico dos Nacional-Socialistas ou uma audaz heroína que pactuou com o inimigo para defender ao máximo o seu povo?

São alguns desses mistérios que “Do Holocausto à Salvação” pretende esclarecer, assumindo-se como um extraordinário documento que permite observar uma das mais obscuras fatias da cronologia mundial, ressalvando o papel que o território português – e principalmente a sua capital, descrita por alguns como “o ponto de estrangulamento da Europa” – desempenhou nesse período.

Dividido em doze capítulos, esta obra traça um magnífico perfil de uma mulher que teve de se reconstruir por forma a conseguir ajudar outros, que o “destino” declarou inferiores e indignos de uma existência normal. Wasserstein consegue transmitir ao leitor os dilemas de uma alma que lutava contra a própria consciência ao negociar com um dos mais pérfidos inimigos da humanidade.

In deusmelivro

terça-feira, 25 de novembro de 2014

“Longe de Veracruz”
de Enrique Vila-Matas

A melhor das viagens é feita através dos sentimentos


Uma das vozes mais proeminentes da literatura espanhola, o catalão Enrique Vila-Matas é dono de um universo que mescla ensaio, crónica jornalística e uma aproximação novelística assente em várias camadas surrealistas que, por vezes, surgem alicerçadas em fragmentos de algum ironia filtrados entre a realidade e uma particular ficção.

Desde que publicou o seu primeiro livro em 1977, “A Assassina Ilustrada”, Vila-Matas não mais parou de surpreender os amantes da literatura tendo sido através de “História Abreviada da Literatura” que, definitivamente, colocou o seu nome entre os mais reconhecidos autores contemporâneos.

A sua mais recente aventura em forma de livro é “Longe de Veracruz” (Assírio e Alvim, 2014), um relato deliciosamente “tóxico”, sinónimo de um constante estado de alerta intelectual dentro de uma galáxia onírica que desafia a fronteira entre a realidade e a aparente sensação ilusória.

No epicentro do romance está Enrique, o mais novo dos três irmãos Tenorio, narrador deste fascinante livro que aposta na literatura como seu último refúgio. Aos 27 anos, Enrique, enquanto um jovem maneta derrotado pela vida, quer afastar um sentimento de ócio aburguesado através do ato da escrita cujo tema versa sobre o ódio face a Sant Gervasi, um edifício de três andares herança do seu falecido pai, assim como à incapacidade de amar e ser amado.

Enrique pensa um romance que reúne laivos de uma figuração moderna da desgraça tendo como pano de fundo o distante porto de Veracruz, polo inspirador e trágico de uma dramática tradição de espelhar a existência através do conveniente, lógico e apaixonado dom de escrever ainda que sob o espetro de um omnipresente pânico.

É sob esse sentimento mutilado que pretende ocupar o lugar deixado vago pelo seu irmão Antonio, um escritor de viagens que nunca viajou, decidindo ele sim palmilhar mundo e viver uma vida tomada de empréstimo. Repentinamente, Enrique molda a sua vida ao romance e interioriza um misto de segmentação temporal conjugada entre fatias de presente e passado na tentativa de resgatar algo (ir)recuperável.

Esse romance é o reflexo de uma relação amor-ódio com a vida, os seus irmãos e a figura (ausente) do seu pai. Para além disso, Enrique verbaliza um misto de frustração e descrença que apenas encontra antídoto no amor pelas terras distantes que conhece enquanto viaja e mesmo o pavor ao continente africano não ofusca o prazer de conhecer mundo.

É assim que vai construindo uma obra de perfil improvisado, arrancado a ferros, de semblante diário romanceado cujo herói é uma improvável figura quebrada pela impotência de se sentir um ser humano e finito face ao normal curso dos dias, um após outro.

Pelo meio há espaço para canções que passam na rádio como metáforas da vida, anotações em um caderno cuja capa anuncia um trio de tucanos, reflexões face à presença de um obeso anjo que decora uma tapeçaria, uma cantora de bolero assassina, um dentista entregue ao álcool, um cabeleireiro fascista, roubos de objetos pessoais em noites de desvario e um enorme rol de situações rocambolescas.

Tal como em outras obras de Vila-Matas, “Longe de Veracruz” é um típico e admirável exemplo da sua genialidade enquanto escritor. A narrativa obriga o leitor a entrar na trama e assumir um papel expectante face ao que vai acontecer na página seguinte, sem pressas. As palavras fluem dolentemente e as ideias viajam, literalmente, até à nossa mente através de um processo íntimo de cumplicidade pois a escrita de Enrique, que não Tenorio, é uma eterna lufada de ar fresco.

In Rua de Baixo

terça-feira, 18 de novembro de 2014

“Infiltrado”
de Jeff Abbott


Ao quarto tomo da saga de Sam Capra, um ex-espião da CIA, o norte-americano Jeff Abbott faz-nos chegar mais um excelente livro de acção que nos leva ao coração da quente Miami, cidade que serve de cenário para mais uma viagem ao meandro de um mundo que mistura legalidade com subterfúgios vários que se escondem por trás dos mais insuspeitos personagens.

Depois de “Adrenalina”, “O Último Minuto” e “Queda”, “Infiltrado” (Asa, 2014) tem a sua génese quando Steve Robles, um dos mais frequentes clientes de “Stormy’s” – bar propriedade de Capra que exibe posters dos Miami Dolphins misturados com fotos de gente como Hemingway – é assassinado. Tal acontece à porta do referido estabelecimento e apanha todos de surpresa.

Para além de lamentar a morte do seu amigo, Sam tem para com Steve uma divida de gratidão eterna e tudo fará para puder ajudar a resolver este crime. Se em tempos foi Robles que salvou Capra e a sua família em terras de África, hoje, em Miami, está na hora de retribuir favores.

Sam Capra está determinado em encontrar o assassino e fazer justiça, pelas suas próprias mãos e meios. Sem grandes suspeitas, Capra tem na mulher desconhecida que acompanhava Steve minutos antes da sua morte o ponto de partida para a sua investigação. Quem é ela? Que queria de Steve?

As perguntas são muitas e Sam quer encontrar respostas, a todo o custo. Para isso serve-se do seu antigo disfarce dos tempos de agente da CIA e faz renascer Sam Chevalier, personagem que vai infiltrar-se no seio dos Varela, uma das mais importantes e perigosas famílias de Miami.

As primeiras e espantosas revelações desta “missão” levam Sam a descobrir que a ligação entre Steve e Cordelia, o nome da misteriosa mulher que o acompanhou nas suas últimas horas de vida, teve o seu início quando a atraente mulher contratou Robles para um trabalho de segurança realizado em Porto Rico.

Sam evolve-se com Cordelia e consegue aceder ao coração da família Varela mas tal coloca o antigo agente da CIA em um perigoso jogo que pode significar a sua morte mediante o mais pequeno deslize. Quis o destino que, nos primeiros contatos com os Varela, Sam consiga salvar Rey Varela, o patriarca da família, tornando-se assim numa espécie de herói acidental, papel que não cai muito bem junto de Galo e Zhanna, os dois irmãos, ou meios-irmãos, de Cordelia.

Sempre no limite e com o amargo sabor a fel por perto, Sam Capra é completamente arrastado para um terrível drama familiar, cujo labirinto revela os fantasmas dos elementos da família Varela que são sinónimo de segredos assassinos.

Pai e filhos vivem sucessivas relações destroçadas e a autodestruição é um passo mais que esperado. Essa torrente de acontecimentos vai colocar em dúvida a operação levada a cabo por Sam que se depara com um segredo que pode significar a sua morte.

Com uma narrativa na linha de autores como James Patterson ou Janet Evanovich, Abbott cria uma trama muito ao estilo dos filmes de acção made in Hollywood, onde a dinâmica e a adrenalina dos acontecimentos leva o leitor a devorar as páginas de “Infiltrado” num ápice, livro cuja fórmula de sucesso está alicerçada numa portentosa amálgama entre momentos de puro dramatismo, suspense e uma carga fortemente emotiva.

Escrito e relatado na perspectiva de Sam Capra, o mais recente livro do autor que já venceu o International Thriller Writers Award e foi nomeado três vezes para o Edgar Award, é um elogio ao (bom) entretenimento e faz jus aos restantes episódios da saga Capra, desta vez através de uma viagem ao outro lado do poder onde as jogadas de bastidores, o contrabando, a tortura e os abusos de poder justificam todos os meios, nem que o acto assassino seja uma das armas utilizadas.

Mesmo para quem nunca leu nenhum dos outros livros que Jeff Abbott dedicou a Sam Capra, “Infiltrado” foi construído de forma a ser bem compreendido pelos leigos da saga, sendo frequentes as contextualizações sobre o passado do personagem principal, sem dúvida um dos mais interessantes nomes do universo dos thrillers e policiais contemporâneos.

In deusmelivro

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ben Howard
"I Forget Where We Were"

Música para gente graúda


Em “End of the Affair”, oitava faixa de “I Forget Where We Were” e primeiro single do segundo longa-duração do britânico Ben Howard, a música atinge a sua plenitude. Howard, sob uma paleta sonora espartana, funde sons e silêncio com palavras que vão do sussurro ao grito. Ao longo de mais de sete minutos, a música invade-nos a mente de uma forma apaixonada, quente. Canta-se o amor, a perda, os novos começos, com guitarras, bateria e baixo a voarem livres.

Três anos depois de “Every Kingdom”, disco que teve honras de ser nomeado para o Mercury Prize, Ben Howard surge mais maduro. “I Forget Where We Were” é um excelente exemplo de uma sonoridade que mescla um folk de características mais indie com laivos de um pop doce, mas não em doses excessivas, que lembra, em parte, e por exemplo, alguns dos melhores momentos de Damien Rice.

A produção de “I Forget Where We Were” esteve a cargo de Chris Bond, baterista que acompanha regularmente Ben Howard, e o resultado final é um maravilhoso disco, composto por duas mãos cheias de canções que ousam ultrapassar, com frequência, os quatro minutos de duração, e que se afastam, e muito, da banalidade.

A coragem e confiança no seu trabalho levou mesmo Howard a destacar como primeira amostra do álbum o já referido “End of an Affair”, um tour de force encantador e intenso cujo clímax se assume como um espanta-espíritos face aos mais pessimistas que não acreditariam nas qualidades do jovem cantautor.

No seu todo, “I Forget Where We Were” é um disco de guitarras, mas ousa navegar por densos territórios repletos de uma profundidade rítmica assinalável, que explora uma dicotomia de opostos onde sons oníricos se fundem com camadas de uma pop que se transfigura entre momentos mais intimistas e outros mais aguerridos - algo que se declara como um corte face ao que Ben Howard fez em “Every Kingdom”.

Ouvir este disco é um exercício refrescante e arrebatador, e nas entrelinhas das palavras e sons que derivam das canções de Howard conseguimos sentir a magia assertiva de quem sabe que está a fazer um trabalho repleto de sentido. Tal pode ser comprovado nos primeiros acordes de “Small Things”, a faixa que inicia o álbum e cujo perfil nos remete para um math-rock açucarado, ou em momentos mais soltos como “Rivers in Your Mouth” ou “Time is Dancing”.

Já “In Dreams”, onde o folk se sente amiúde nas cordas das guitarras e nos lamentos que derivam do violoncelo, revela-se uma sentida canção que explora os sentimentos díspares entre reflexões mais depressivas, que vão desaguar num mar de confusões existenciais e em algum sentido de desajustada existência que, ainda assim, se dissipa em “She Treats Me Well”, um hino à “esperança”, onde o amanhã é encarado com tranquilidade e sob a forma de uma presença feminina.

Com uma clara veia experimentalista, Ben Howard não tem pejo em fazer canções como a lindíssima e melancólica “Evergreen” ou a despretensiosa “Conrad”, composição envolta numa simplicidade tal, que os seus acordes elétricos são como o resultado de um normal e regular batimento cardíaco, pois é o coração do ouvinte o maior destinatário das (grandes) canções de “I Forget Where We Were” - um exercício sonoro que é sinónimo de uma rara espécie de filigrana musical e um dos mais inesperados melhores discos de 2014.

Alinhamento:

1. Small Things
2. Rivers In Your Mouth
3. I Forget Where We Were
4. In Dreams
5. She Treats Me Well
6. Time Is Dancing
7. Evergreen
8. End Of The Affair
9. Conrad
10. All Is Now Harmed

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

sábado, 15 de novembro de 2014

“Dois dias, Uma Noite”
de Jean-Pierre e Luc Dardenne

A Provação de Sandra



O sol, lá fora, ainda brilha. Sandra descansa, o telefone toca, insistentemente. Sandra, renitente, levanta-se e atende. Entretanto o forno dá sinal e a tarte está pronta. O dia corre normalmente até que se contrariam as lágrimas, em vão. A vida pode mudar a cada segundo, sem qualquer tipo de aviso. Resta lutar com as (poucas) forças que restam.

É desta forma crua que os veteranos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne filmaram a primeira cena de “Dois Dias, Uma Noite”, um fantástico e tocante drama que tem como figura principal (a belíssima) Marion Cotillard no papel de Sandra, uma mulher casada e com dois filhos que tenta salvar o seu emprego depois de os seus colegas terem optado por receber um bónus de mil euros em detrimento do lugar do seu posto de trabalho na Solwal, uma empresa de painéis solares.

O dilema fora colocado pelos responsáveis da empresa que depois do afastamento de Sandra devido a uma depressão de origem nervosa constataram que o volume de trabalho pode ser assegurando sem um dos colaboradores, ainda que com esforço acrescido de cada qual. Essa decisão coloca os colegas de Sandra no difícil lugar de “escolher” entre o bónus e Sandra, que finalmente se sente em condições psicológicas de regressar ao trabalho.

Esse forte revés é-lhe comunicado por Juliette (Catherine Salée) e resta a Sandra tentar durante o fim de semana convencer os colegas a mudarem de opinião, depois de conseguir a concordância do gerente da empresa para se realizar outra votação.

Desesperada, Sandra tenta salvar o seu posto de trabalho e enceta uma terrível demanda. Do seu lado está o marido Manu (Fabrizio Rongione) que encoraja a muito fragilizada esposa a falar com os colegas. São necessários nove votos para Sandra manter o trabalho mas o que a ainda funcionária da Solwal tem para oferecer “em troca” aos seus colegas é apenas a sua angústia e ansiedade.

Essa terrível situação leva Sandra a voltar a sentir sintomas depressivos e sente constrições na garganta chegando a perder a capacidade de falar, hiperventila e a única “salvação” assume a forma de um conhecido antidepressivo. Não é apenas o emprego de Sandra que está em jogo, é o seu casamento, a sua vida.
A dificuldade de Sandra é acrescida pois durante o fim de semana é mais difícil encontrar os camaradas e suas famílias. Alguns dos seus colegas aproveitam os dias de descanso para conseguirem mais dinheiro pois a vida é complicada. O desemprego assola algumas destas famílias que têm nos mil euros de bónus um precioso aliado para colmatar as crescentes necessidades. Conseguirá Sandra o seu objetivo?

Com uma simplicidade desarmante, os irmãos Dardenne transformam “Dois Dias, Uma Noite” em um dos mais emblemáticos filmes deste ano e a sua participação na mais recente edição do Festival de Cannes pode ser sinónimo de grande sucesso não só pelo filme em si como através do magnífico trabalho de Cotillard.

Anteriormente galardoados com a Palma de Ouro com “Rosetta” (1999) e “A Criança” (2005), Jean-Pierre e Luc Dardenne oferecem ao espetador uma brilhante estória de cariz realista e social que se assume como uma tensa narrativa que vem mais uma vez revelar a mestria da sua capacidade de filmar pessoas “comuns” em situações “comuns”.

É com essa ímpar arte – que nos remete para, por exemplo, alguns dos momentos mais brilhantes do britânico Ken Loach, – que os Dardenne conseguem transformar “Dois Dias, Uma Noite”, em um filme que espelha a ténue linha que separa a solidariedade do ato (desesperado) da necessidade, trabalhando um personagem no seu limite emocional que tenta esconder o seu desabar face a uma intensão de resgatar uma maioria democrática que resulta de uma votação manipulada e suja que coloca em rota de colisão colegas de trabalho, familiares chegados, famílias à beira da rutura.

A simplicidade (e extrema competência) da trama encontra um poderoso aliado na câmara de Jean-Pierre e Luc Dardenne que acompanha Sandra na sua provação derivando de planos estáticos para outros cuja ligeiríssima oscilação faz sentir o espetador como parte do drama sentido a partilha de uma realidade filtrada pelo grande ecrã.

Para além disso, nunca é demais referir, outro dos grandes pilares da consistência de “Dois Dias, Uma Noite” é a extraordinária entrega de Marion Cotillard que a encaixa na perfeição em um dos mais austeros e difíceis papéis criados pela dupla belga. Sandra mistura traços de uma dignidade e contenção assombrosas e a sua técnica de atuação é deslumbrante – a cena em que está ao telefone com um dos primeiros colegas (no caso, Kader) com que tenta tornar seu aliado na votação é de um dramatismo extraordinário pela forma como a atriz se entrega e trabalha a ação, os silêncios, as pausas, a concentração. O seu rosto espelha a amargura, convence e comove, tal como um filme em si que figurará, seguramente, nas listas dos melhores do ano.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

“O PINTASSILGO”
DE DONNA TARTT

Um livro grande ou um grande livro?



Um dos maiores fenómenos dos últimos anos no que toca ao universo literário, “O Pintassilgo” (Presença, 2014) da norte-americana Donna Tartt – considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes no mundo – chega-nos envolto de uma embalagem de sucesso e qualidade cujo expoente foi o arrebatar o Prémio Pulitzer em termos de ficção no ano de 2013.

Depois de “A História Secreta” e “O Pequeno Amigo”, Tartt aposta num livro de toadas épicas que nos leva a percorrer a história recente dos Estados Unidos da América, um país onde o medo do terrorismo e a dicotomia constante entre espaço público e privado estão na ordem das discussões quotidianas.

Ao longo das quase novecentas (!) páginas de “O Pintassilgo”, ficamos a conhecer fatias da existência de Theo Decker, um rapaz de 13 anos que vê a sua vida explodir, no sentido literal da palavra. Depois de ver um pai ausente abandonar definitivamente o lar, Theo vive os normais dramas de um adolescente, mas um dia a sua mãe é chamada à escola pelo seu mau comportamento e tudo não voltará a ser igual.

A caminho da escola, Theo e sua mãe, depois de uma viagem de táxi algo atribulada, decidem visitar o Metropolitan Museum of Art, em pleno coração da nova-iorquina Quinta Avenida. Depois de uma curta visita, enquanto a mãe de Theo ruma à loja de recordações, o rapaz deixa-se enfeitiçar pela magia que emana do olhar de Pippa, uma ruiva intrigante.

Mas não é só o coração de Theo que estreme. Instantes volvidos, uma bomba rebenta na galeria do museu e Theo é um dos poucos sobreviventes. Na ressaca do acidente, o adolescente carrega uma pintura datada de 1654 intitulada “O Pintassilgo”. A referida obra de arte foi-lhe “oferecida” por um velho cujo último suspiro foi dado na presença de Theo.

Mais tarde, Theo conhece Hobie, um restaurador de arte que se torna num confidente e uma espécie de refúgio perante a constante dor de Theo face a uma vida sublinhada pela perda da mãe e a ausência do pai e que encontra no álcool e outras substâncias um ponto de fuga que deriva em um comportamento autodestrutivo.

Egoísta e admiravelmente desagradável, Theo assume as funções de narrador e personagem principal e, através da hábil narrativa de Donna Tarrt, consegue transmitir um sentimento de decência, apesar de tudo. Já Hobie é um personagem mais maduro enquanto Boris, outro dos comparsas de Theo, é o reverso da medalha e não esconde a sua faceta desonesta, despreocupada e arrogante, sem qualquer pejo.

Com excelentes criticas um pouco em todo o mundo, “O Pintassilgo” deixou boquiabertos grandes mestres da literatura entre os quais Stephen King, que afirma que a obra de Tartt é: “um daqueles livros raros que aparecem meia dúzia de vezes por década” e cuja narrativa “resulta em um magnífico romance literário capaz de tocar tanto o coração como a mente”. Já outros referem a vertente dickensiana e algum virtuosismo vitoriano de “O Pintassilgo”, mas ao folhear a obra de Donna Tartt aquilo que fica é uma sensação controversa.

Se, por um lado, “O Pintassilgo” tem momentos de grande brilhantismo onde a capacidade de detalhe e dinâmica de Tarrt é assinalável, noutras passagens o leitor mergulha em um lento e desencorajador relato (por exemplo, as passagens que versam sobre Theo a ingerir substancias proibidas são um verdadeiro teste de resistência ao leitor, assim como o inicial relato da explosão do museu. Ambos os “episódios” prolongam-se por 50 ou mais páginas…) que leva à (quase) exaustão enquanto folheia este thriller. Será este registo bipolar que torna o livro em um fenómeno à escala mundial?

Outras das questões menos positivas da trama prende-se com o uso recorrente de clichés, sobretudo na pessoa da personagem de Theo, uma alma perseguida e assombrada por fantasmas do passado que impedem o seu amadurecimento, algo que assume alguns contornos de “banalidade”.

O próprio romance não se refugia de um eterno mar de coincidências que formam o evoluir da narrativa. Correndo o risco das próximas linhas serem uma espécie de spoiler, como entender que o senhor idoso que está no museu aquando da explosão peça a Theo para furtar a já referida pintura? Porque será que toda a gente que rodeia Theo está, mais ou menos, associada à arte? Será apenas sorte ou Theo conhece sempre a pessoa certa no momento certo, para mais numa metrópole como Nova Iorque? Estas são algumas das pontas soltas que podem ser identificadas em “O Pintassilgo”.

Somando virtudes e “defeitos”, entende-se porque “O Pintassilgo” tem sido alvo de tanto atenção apesar de, como referimos, a estatuto de obra-prima nos parecer exagerado, tal como o elevado e injustificado número de páginas. No entanto, é compreensivelmente difícil resistir à tentação de pegar em um livro cujo rasto seja sinónimo de um incomensurável sucesso mundial e tal, per si, pode justificar a sua pertinência.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Apresentação de “LittleBigPlanet 3”
@ Lisbon Games Week

Jogar, criar, partilhar e cooperar 



Cinco anos depois da Media Molecule ter lançado as primeiras aventuras de Sackboy, eis que foi hoje apresentado na Lisbon Games Week, “LittleBigPlanet 3”, versão PS4, que conta com muitas e boas novidades.

Na demonstração estiveram presentes David Dino, game designer da Sumo Digital e o responsável pelo desenvolvimento do jogo, assim como Sarah Wellock e Tom O’Connor, membros da equipa Sony XDev.

Dono de uma inovadora noção de profundidade graças ao novo motor gráfico, “LittleBigPlanet 3” traz muitas novidades, principalmente ao nível dos personagens. Se Oddsock é um rápido canino capaz de escalar paredes, Swoop é uma ave especial que voa livremente pelo gameplay e consegue apanhar pequenos objetos assim como resgatar os seus companheiros de aventura quando estes se encontram em apuros. Já Toggle, é um amigo de peso que utiliza o seu robusto perfil para derrubar obstáculos ou plataformas. Para além disso, Toggle também pode reduzir o seu porte e transformar-se em um pequeno e rápido personagem que consegue passar pelo buraco da agulha ou caminhar à superfície da água.

Também Sackboy apresenta um novo manancial de truques e habilidades e agora consegue, com destreza, subir objetos como cordas ou similares, pois toda a ajuda é necessária no planeta Bunkum depois de uma tripla de malvados Titãs serem libertados e com a ajuda do cáustico Newton têm como fim destruir o paraíso criativo deste pequeno grande planeta.

Daquilo que podemos ver (e jogar!) de “LittleBigPlanet 3”, esperam-se momentos muito interessantes e divertidos que fazem apanágio às premissas das aventuras de Sackboy e comparsas: jogar, criar, partilhar e cooperar.

É sabido que a saga “LittleBigPlanet” permite personalizar os níveis do gameplay – o novo “termómetro dinâmico” a par de uma maior capacidade do disco permite uma maior liberdade na criação de níveis – e a narrativa deste episódio possibilita ainda jogar níveis (assim como roupas e objetos conquistados) de episódios anteriores. Outra curiosidade, na versão PS4, as texturas exibem uma resolução 1080p (na versão PS3, a resolução fica-se pelos 720p), graças ao novo motor gráfico da mais recente consola da Sony.

O lançamento do jogo está agendado para o dia 26 de novembro e “LittleBigPlanet 3” vai poder ser jogado em ambiente PS4, PS3 e PSVita.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

“Agatha Christie – Os Crimes do Monograma”
de Sophie Hannah


Muito daquilo que o romance policial é enquanto expressão literária por excelência, deve-o ao talento da britânica Agatha Christie, autora de mais de oito dezenas de livros que conquistaram fãs em todo o mundo e deram vida a fantásticos personagens como Miss Marple e, acima de tudo, Hercule Poirot.

Desde a edição de “O Misterioso Caso de Styles”, em 1920, o primeiro livro de Christie que tinha Poirot, Hastings e Japp nos papéis principais, até “Um Crime Adormecido”, derradeiro suspiro literário da Rainha do Crime editado na década de 1970, ficaram gravadas nas mentes dos leitores de todo o mundo milhares de páginas onde o crime e a sua solução andavam de mãos dadas.

Ainda que hoje, e sempre, o legado de Agatha Christie perdure como um dos mais representativos espólios da literatura do século XX, fica a sensação de um vazio. Saber que não vamos acompanhar mais aventuras de Marple e Poirot é sinónimo de angústia, de perda.

Felizmente, tudo mudou. “Os Crimes do Monograma” (Asa, 2014), escrito pela também britânica Sophie Hannah, traz de volta o universo ímpar de Christie e Poirot. Os fãs podem ficar descansados: a autora, que já foi finalista do Prémio T.S. Eliot, fez um maravilhoso trabalho enquanto herdeira do espólio da Rainha do Crime.

Neste mais recente tomo da atribulada vida de Poirot, agora a gozar da merecida reforma, o nosso belga vai ter de investigar um dos seus mais intricados e bizarros crimes. Estamos no final da década de 1920 e tudo começa quando Poirot é surpreendido por uma jovem mulher que surge no Pleasant, o seu café preferido, durante um dos seus habituais jantares de quinta-feira.

O nome da aparição feminina é Jennie Hobbs e afirma estar prestes a ser assassinada. A curiosidade e perplexidade de Poirot aumenta quando Jennie suplica para que não se investigue a sua merecida morte. Mas, tão repentinamente quanto apareceu, Jennie mistura-se na noite sem deixar rasto, algo que leva o nosso investigador a magicar com as suas “celulazinhas cinzentas”.

Simultaneamente, no luxuoso Hotel Bloxham acontecem três assassinatos e Harriet Sippel, Richard Negus e Ida Grabnsbury dão o último suspiro. Semelhante entre si, este triplo homicídio revela um perfil uno: os corpos estão direitos, os braços paralelos ao tronco e as palmas das mãos viradas para baixo. Mas a assinatura do criminoso tem o seu expoente no facto de, dentro das bocas das vítimas, terem sido colocados botões de punho com um monograma similar: PIJ.

Intrigado e empenhadíssimo em descobrir toda esta intrincada trama, Poirot junta a sua sapiência e implacável e racional metodologia à inexperiência do seu amigo Catchpool, detetive da Scotland Yard.

As dúvidas surgem a cada nova pista. Os crimes terão o mesmo autor? Será que Jennie estará relacionada com este mistério? Os dados estão lançados para mais um maravilhoso livro que vai fazer as delícias de todos os que gostam de um policial com cabeça, tronco e membros.

Sophie Hannah consegue, com distinção, “recriar” o ambiente típico de Agatha Cristhie e, através do relato de Catchpool, o leitor fica a saber todos os pormenores de uma narrativa que mistura astúcia, um excelente enredo e a sempre cativante arrogância de Hercule Poirot.

Fazendo jus à escrita de Christie, Sophie Hannah apresenta uma estória coerente e intrigante, com a acção a variar entre o rebuliço de Londres e a pacatez provinciana de Great Holling, cujos personagens rejeitam qualquer apêndice de futilidade e se revelam essenciais para a resolução de um conjunto de quebra-cabeças, que vai possibilitar desvendar o mistério de “Os Crimes do Monograma” – que não seria entendido no seu todo sem a valiosa participação de intérpretes como Margaret Ernst, Nancy Ducane, Ambrose Flowerday ou Samuel Kidd, nomes que rejeitam ficar retidos face a um eventual perfil secundário em toda a trama.

Catchpool, por exemplo, é um personagem bem construído (ainda que, por enquanto, uns furos abaixo da pertinência de Hastings) e, apesar da sua falta de confiança, assume o papel de precioso aliado de Poirot que tem, como sabemos, uma incrível capacidade de dedução graças às suas férteis “celulazinhas cinzentas”.

Também as notas de humor que povoam o texto tornam o mesmo mais interessante e acutilante, havendo espaço para uma certa sátira social que tem, no snobismo e na extrema devoção religiosa, alguns dos seus pontos de contacto, que são também sinónimo de poderosas armas que levam a um rol de execuções (por vezes) consentidas. Mas também há espaço para o assumir de culpas, erros e, acima de tudo, várias formas de redenção.

In deusmelivro

Zola Jesus
"Taiga"

Pop, com substância



Nativa de um espaço sideral musical próprio, a norte-americana Nika Rosa Danilova, aka Zola Jesus, amalgama na sua música pitadas de eletrónica, pop e devaneios clássicos que interagem com laivos de um sentido retirado da dark wave e de uma faceta mais limada do som industrial.

Apesar de rol concetual anteriormente referido, o perfil de “Taiga”, o mais recente trabalho de Zola Jesus, encontra a definição perfeita nas palavras da própria artista. Para a antiga estudante de filosofia e autora de discos como “Stridulum II” e “Conatus”, o som deste disco reúne “a frieza de uma montanha e a brutalidade da sua rudeza, mas é, no fundo, um lugar que, quando bem explorado, exibe traços de uma clara sensibilidade”.

Ao quinto álbum, Zola Jesus apresenta um disco descaradamente pop, ainda que longe da sua vulgar terminologia. A interdisciplinaridade da norte-americana de ascendência russa levou-a, nos últimos tempos, a colaborar com vários nomes da música, entre os quais se salientam as parcerias com Jamie Stewart, líder dos Xiu Xiu, Orbital e M83.

O crescimento de Zola Jesus enquanto pessoa e artista tem sido patente na evolução e transformação do seu som. Se na era “Stridulum” eram as ambiências industriais que se destacavam, “Versions” ousava exibir uma faceta mais melancólica. Assim, como síntese dessa evolução, “Taiga” reflete essa bipolaridade sonora e apresenta temas que navegam em oceanos com diferentes ondulações, e “Hunger” é um dos maiores exemplos dessa simbiose. Já “Go (Blank Sea)” revela um som mais atmosférico, que nos leva até aos finais da década de 1990, onde o post-rave era uma realidade emergente. Ainda que diferentes, estes dois temas têm em comum uma excelente capacidade dramática, sentimento esse que, felizmente, se faz sentir ao longo de todo o disco.

Misto entre luz e escuridão, som e silêncio, “Taiga” apresenta algumas composições que nos conquistam na primeira audição. “Dangerous Days” é uma desses exemplos e o seu perfil descaradamente dançável acelera a libido musical de forma instantânea. Ainda que sob uma atmosfera mais tímida, “It’s Not Over” é outra das grandes canções de “Taiga”, e o seu carácter (semi)épico faz lembrar prestações de gente como Lana del Rey e Sia aquando da banda sonora do filme “The Great Gatsby”. Também “Hollow”, de inspiração house, se salienta em “Taiga” e merece o devido destaque.

Ao contrário de discos anteriores, Zola Jesus não recuperou nenhum antiga composição, apresentando-a com outras roupagens (“Sea Talk" surge em três trabalhos ainda que com perfis dispares), e isso pode ser assumido com um corte para com o passado. “Taiga” é, também por isso, um disco que reflete toda a influência musical de Zola Jesus, que não tem qualquer problema em combinar influências de bandas como os Joy Division com a musicalidade mais “casta” de Kate Bush, e compor o cenário com pitadas R&B e resquícios industriais, ainda que pouco abrasivos.

Sob uma batuta pop, “Taiga” é o álbum mais maduro de Zola Jesus e também a sua primeira parceria com Dean Hurley na produção, nome associado ao universo mais cinematográfico de David Lynch, e resume aquilo que esperamos de um grande disco: inspiração, ambientes diversos e excelente música.

Alinhamento:

1. "Taia"
2. "Dangerous Days"
3. "Dust"
4. "Hunger"
5. "Go (Blank Sea)"
6. "Ego"
7. "Lawless"
8. "Nail"
9. "Long Way Down"
10. "Hollow"
11. "It’s Not Over"

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

“CounterSpy”
PS3, PS4, PSVita

Contraespionagem ao ritmo do Jazz



A Guerra Fria foi um dos períodos mais tensos da história recente. De costas voltadas e assumidamente as maiores potências bélicas do Mundo, Estados Unidos da América e a ex-União Soviética atemorizaram o globo entre o pós-Segunda Guerra Mundial e a aurora dos anos 1990.

É, em grande parte, esse o cenário de “CounterSpy”, um dos mais recentes jogos da norte-americana Dynamighty que combina um perfil assumida e encantadoramente indie com uma funcionalidade cross-save (e também cross-buy…) entre as várias plataformas Sony. Para além disso, é possível jogar “CounterSpy” em ambientes Android e iOs.

A jogabilidade sidescroller remete-nos para um ambiente 2.5 D que leva o nosso (anti)herói a percorrer uma miríade de salas onde o perigo, e o humor de características negras, surge ao virar de cada esquina e recanto.

Mas vamos à narrativa de CounterSpy. Estamos na década de 1970 e as conspirações são frequentes. Espiões lutam em favor de duas das mais poderosas superpotências jamais conhecidas. Os Estados Imperialistas e a República Socialista esgrimam argumentos atómicos e os mísseis estão prontos a dizimar o inimigo e a ser o dono da autoria do primeiro ataque nuclear à Lua.

A missão de C.O.U.N.T.E.R, ou seja, a nossa demanda, é evitar que tal aconteça e para tal temos de travar uma batalha bipolar. O plano é a invasão dos quartéis-generais dos dois países e conseguir resgatar as ideias científicas (fórmulas e planos secretos) de ambos assim como as suas principais armas. Mas tão importante quanto o arsenal utilizado é a descrição da ação em si assim como as capacidades entretanto adquiridas nas salas de jogo que vão desde o aumento da resistência em combate, da habilidade de persuadir o inimigo até à mestria em termos de disfarce e precisão de disparo ou perícia informática. E claro, quando mais imprudente for o assalto, maior será o nível DEFCON (de 1 a 5, sendo 1 o mais elevado) acionado e o inimigo não perdoa.

Com uma excelente banda-sonora jazzy, somos convidados a percorrer salas e espaços onde a natureza stop-and-go de “CounterSpy” alterna entre a extrema facilidade e uma aguda dificuldade. Um dos segredos é estar muito atento, memorizar os movimentos adequados para cada ação e seguir ao risco as indicações caras a todos os jogos stealth. Os combates são fluidos e a espionagem está ao rubro.




A tática a aplicar resulta de uma mescla entre precisão de tiro e a capacidade de abater um inimigo (ou destruir câmaras de vigilância) que teima em enervar-nos. Mas atenção, é de evitar tirar a vida a oficiais (identificados com uma farda diferente) pois a rendição dos mesmos é sinónimo de, por exemplo, a redução do nível DEFCON.

A liberdade em termos de jogabilidade não sendo “ilimitada” é simpática e as missões variam entre cenários inovadores e algumas doses repetitivas, uma das pechas desde jogo ainda que, paradoxalmente, os níveis nunca são iguais, sendo gerados de forma aleatória. Ainda assim quase tudo é perdoável perante a excelência gráfica de entoação indie.

A simplicidade é também uma das mais-valias de “CounterSpy”. Ao contrário de outros jogos, que nos obrigam a complicados e complexos movimentos, aqui as missões fluem entre ritmo side-scrolling e apenas temos de saltar plataformas e balear inimigos. Ainda assim, não confundamos simplicidade com facilidade pois qualquer descuido pode ser a desgraça de C.O.U.N.T.E.R..

Por vezes, “CounterSpy” assume um perfil perto da filosofia de um shooter na terceira pessoa e os tiros à distância (e a sua mecânica) dão uma interessante profundidade ao jogo. E quando as balas não fazem o serviço pretendido, a solução é estrangular ou esmurrar o inimigo. Afinal de contas, guerra é guerra…
Ao longo da aventura é possível desbloquear novas armas, mediante um justo “pagamento” mas é necessário estar atento a gastos excessivos que, ainda assim, podem ser reajustados mediante uma astuta exploração dos espaços suplementares. No fundo, pede-se ao nosso espião inteligência e uma boa gestão do gameplay face ao ambiente cinzento da Cortina de Ferro.

Mesmo que na sua globalidade “CounterSpy” seja um jogo muito interessante denota momentos de desequilíbrio. É, de facto, entusiasmante fazer “parte” do gameplay, principalmente devido há já referida música ambiente e ao evoluir da narrativa, por vezes hilariante – foi clara a aposta no humor ao longo de todo o jogo e o seu sucesso expressa-se em pormenores como, por exemplo, nos cartazes espalhados pelas salas ou na legenda que nos situa a cada inicio de nível – mas a mesma revela-se curtíssima e quando pensamos que a dificuldade pode aumentar de qualquer forma inesperada, resta-nos, simplesmente, “repetir” toda a missão. Apesar do perfil aleatório da génese dos níveis, o fator novidade cifra-se unicamente nessa questão.

Ao tentar não seguir fórmulas já batidas, ainda que bem-sucedidas, “CounterSpy” perde um pouco da sua acutilância e esse estatuto de orgulhosamente diferente é uma das pechas desta aventura. Por outro lado, recomendamos vivamente a aventura interativa de jogar contra outros camaradas através da funcionalidade PSN que é altamente competitiva e exigente.

Em género de montanha-russa, “CounterSpy” mistura características muito positivas (não nos casamos de elogiar a mestria do seu design) com elementos a roçar a normalidade (ainda que não banalidade), algo que deixa muito a desejar pois este jogo tinha tudo para ser um sucesso maior mas tal não acontece por, dizemos nós, alguma falta de ambição por parte da Dynamight que pode, e deve, fazer muito melhor no futuro.

In Rua de Baixo

terça-feira, 4 de novembro de 2014

“Literatura de Cordel, Uma Antologia”
de José Viale Moutinho



A maior herança que pode ser transmitida entre gerações é a cultura, esse saber intemporal que está na génese do perfil de cada povo. Nesse campo particular, Portugal foi abençoado pelos deuses e, em termos de literatura, o espólio é quase interminável e a sua pertinência inquestionável.

Nesse sentido nasceu a coleção Obras Escolhidas da Literatura Tradicional Portuguesa (Círculo de Leitores, 2014), um conjunto de quatro livros da responsabilidade de José Viales Moutinho, homem das artes cujo nome está associado à poesia, ensaio, ficção e peças de cariz dramático e que, tem no humor, uma das suas maiores armas.

Assim, Obras Escolhidas da Literatura Tradicional Portuguesa junta-se à extensa obra já publicada por Viales Moutinho, da qual destacamos “Portugal Lendário”, uma obra que valeu ao funchalense arrecadar o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco/ APE e o Prémio Rosália de Castro. “Literatura de Cordel – Uma Antologia” é o primeiro tomo de um conjunto de livros que vai apresentar histórias, aventuras, segredos e saberes de um povo, assumindo-se como um documento atual, valioso e imperdível.

Ao longo de mais de cinco centenas de páginas, José Viales Moutinho apresenta 21 capítulos que misturam deliciosas estórias de cordel, provérbios, adágios e anexins com fábulas de autores nacionais e textos cuja génese nos remete para o folclore religioso, tudo publicado ao longo de dois séculos – entre 1750 e 1935.

Dedicado «à memória de um corcundinha sem idade, olhar alucinado, com extrema miopia», assim como a todos, sem sectarismos, “Literatura de Cordel – Uma Antologia” conta histórias de princesas, imperatrizes e navegadores, relata crimes horrorosos, episódios de veracidade inquestionável (ou não), despedidas ou relembra heróis populares como o mítico José do Telhado, servindo-se de fantásticas ilustrações para compor o ramalhete.

Assim, deliciados, ousamos regressar ao tempo em que as histórias eram publicadas em capítulos cuja impressão assumia o formato de cadernos suspensos de um cordel, e a sua comercialização tinha como espaço privilegiado as feiras e ruas de todo o Portugal.

O resto desta coleção, que resgata a tradição da arte de bem relatar e ouvir, é composta por mais três volumes: um dedicado às fábulas (“Livro Português das Fábulas – Uma Antologia”) e dois que se debruçam afincadamente sobre a intemporal sabedoria popular (“À Lareira – Volumes I e II”).

In deusmelivro