quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

10 Discos de 2015


#10 Sleaford Mods: “Key Markets”

Imaginemos um cruzamento entre Jello Biafra, Paul Gascoigne, spoken word, hip-hop minimalista e electrónico, hardcore, um microfone, um computador. O resultado é, mais coisa menos coisa, os britânicos Sleaford Mods, uma dupla de Notthingham composta por Jameson Williamson (voz) e pelo “maestro” Andrew Fearn (programações). Rebeldes com causa, os Sleaford Mods são, mais do que uma banda, uma expressão urbana, um grito urgente e político e um fenómeno a ter em conta. Afinal, o punk continua vivo.

#9 Sleater-Kinney: “No Cities to Love”

Navegando por sons cujas ondas remetem para marés de vagas que misturam laivos de punk com salpicos de indie rock, as Sleater-Kinney, são um trio de “meninas” originárias de Olympia, Washington, composto pelas guitarristas Corin Tucker e Carrie Brownstein, e a baterista Janet Weiss. Formaram-se em 1994, lançaram entretanto oito álbuns, mas até hoje pautaram a carreira com alguns hiatos. Voltaram novamente ao activo no ano passado e, desse regresso, resultou “No Cities to Love”, um disco carregado de energia e que descarrega dez boas vibrações em pouco mais de meia hora.

#8 Courtney Barnett: “Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit”

Envolto de uma áurea de frescura e com um assumido – e cativante – olhar rock, este disco brilha como o sol de verão, uma brisa marítima fresca que dissipa um calor exagerado. As histórias são simples e “conhecidas”, a música escorreita, no tempo e proporções que queremos. Como aquelas paixões certeiras, ao primeiro olhar, o disco de estreia de Courtney Barnett é brilhante, cativante, memorável.

 #7 Sufjan Stevens: “Carrie & Lowell”

Registo perfeito de memórias e histórias, eis um dos álbuns mais intimistas, bonitos e reais do ano. Stevens abre o coração e revela o homem, o menino Sufjan, o seu crescimento, as suas dores e como a vida pode ser uma súmula de experiências que navegam entre o bom e o traumatizante. O resultado é uma imensa névoa melancólica, interior e muito bonita.

#6 Joanna Newsom: “Divers”

Através do disco mais curto da sua carreira, Newsom confirma a sua genialidade através de um trabalho que faz, como poucos, uma excelente mediação entre amor, perda, tempo, vida e morte. Mais do que canções, “Divers” oferece momentos de intimidade, de uma partilha segredada entre Joanna e os (seus) ouvintes, através de palavras e sons elaborados, de pura filigrana.

#5 Viet Cong: “Viet Cong”

Imbuído de um espírito industrial, e sob a influência de texturas de uns Throbbing Gristle ou Skinny Puppy, “Viet Cong” serve de elo de ligação entre um mundo pop e um satélite sónico repleto de baterias saturadas, opressivas, e um (des)encanto desarmante – e atrofiado -, com apontamentos experimentais.

#4 Grimes: “Art Angels”

Colhido na derradeira colheita musical do ano, “Art Angels”, o quarto disco da carreira da canadiana Claire Boucher, assume-se como uma espécie de ovni propulsionado a combustíveis melódicos vários e dançáveis. O resultado são mosaicos sintéticos, experimentais, electrónicos, descaradamente pop. Mais uma excelente aposta da 4AD.

#3 Low: “Ones and Sixes”

Tal como seria de esperar de um disco dos Low, “Ones and Sixes” é uma obra emocional que funde um sentido sónico com toques de beleza, escuridão e uma tensão agridoce, nas medidas certas e com um intenso brilhantismo no mais pequeno detalhe.

#2 Ólafur Arnalds & Nils Frahm: “Collaborative Works”

São dois discos mas poderiam ser os que Arnalds e Frahm quisessem. Tal como dois génios à solta, os compositores de “Collaborative Works” trabalham com um mesmo objectivo: a catarse. Os mais de 100 minutos destas maravilhosas peças neoclássicas, nascidas de uma estreita colaboração durante quatro anos, documentam o virtuosismo da música, da sua plenitude, do seu fascinante deslumbramento. Um disco essencial, intemporal e delicado.

#1 Sun Kil Moon: “Universal Themes”

Tal como Midas, Mark Kozelek tem um toque especial, um condão que transforma em ouro qualquer pedaço de voz e guitarra e, aquilo que faz com os Sun Kill Moon, não foge à regra. “Universal Themes” é um disco completo de simples estruturas musicais e notas líricas confessionais que nos envolvem ao longo de 70 minutos. Deliciosamente indie, o sétimo tomo do agora trio é um dos discos mais bonitos que Kozelek já gravou fora do universo dos Red House Painters.

In deusmelivro

“Mercado de Inverno”
de Philip Kerr

Remate ao ângulo ou penálti falhado?

 
É incontornável associar o nome do escocês Philip Kerr ao universo de Bernie Gunther, um dos personagens mais brilhantes (e negros) dos romances modernos ditos policiais.

Títulos como “As Violetas de Março” e “O Requiem Alemão”, ou o mais recentes “O Projeto Janus” ou “Se os Mortos não Ressuscitam”, revelam atmosferas densas, investigações particularmente brilhantes e um conjunto de tiques que evidenciam uma qualidade narrativa herdada de nomes como Dashiell Hammet ou Raymond Chandler.

No seu mais recente romance, o autor natural de Edimburgo leva-nos até ao epicentro de um dos mais espetaculares campeonatos de futebol do mundo: a inglesa Premier League. Em “Mercado de Inverno” (Porto Editora, 2015), somos assim transportados para dentro das quatro linhas e temos na figura de Scott Manson, ex-jogador de futebol e agora treinador adjunto do London City, o improvisado detetive de serviço.

Ao invés da grande maioria dos profissionais de futebol, Manson tem formação superior, é poliglota e muito bem-visto pelos seus pupilos assim como pelo sempre polémico João Zarco, o mister de origem portuguesa e que dirige todo o futebol do clube pertença do milionário ucraniano Viktor Sokolnikov, cuja fortuna parece ter nascido de uma série de negociatas pouco legais por alturas da dissolução da União Soviética.

 As paixões que movem o mundo do futebol leva a sentimentos exacerbados mas desta vez os limites são apenas uma linha a quebrar e, para espanto de alguns, João Zarco é encontrado morto no interior do estádio do London City. Por muitas razões, não sendo a polícia muito bem-vinda nas instalações do clube londrino, será Manson quem ficará encarregado de encontrar o assassino.

O que terá acontecido antes do jogo entre o London City e o West Ham e que coincidiu com o desaparecimento de Zarco? Quem teria interesse em matar o português, um homem que personalizava o futebol moderno, sempre impecavelmente vestido e de rosto fechado, fera dominante do balneário e conhecido pelas suas conferências de imprensa inflamadas, destroçando todos os que se intrometem entre a sua equipa e o sucesso?

Estas, e outras questões, colocam Zarco como uma apetecível vítima dentro do viperino mundo do futebol e resta a Manson resolver este quebra-cabeças, numa corrida desenfreada contra a própria polícia e assim vingar-se também ele de uma injustiça passada face às autoridades.

Para nos guiar neste thriller, Kerr treinou os seus conhecimentos sobre futebol, afinou a pontaria de remate dos acontecimentos que marcaram o chamado desporto-rei por terras britânicas nas últimas décadas, e acaba por conseguir um resultado que deixa tudo em aberto para uma qualquer desforra com Scott Manson como protagonista.

Com uma narrativa fluida e por vezes carregada de uma saudável ironia – que até permite fazer uma alusão a um ghost writer de “segunda” chamado Phil… Kerr – “Mercado de Inverno” é um policial competente mas está muito longe do ambiente de Bernie Gunther, algo que poderá colocar algumas dúvidas na qualidade final deste romance.

Não queremos com isto dizer que não se trate de um livro agradável, mas está longe da mestria de outros títulos do autor que parece ter concentrado mais atenção no acrescentar de conteúdos relacionados com a própria história do futebol do que em fazer uma trama mais ambiciosa.

Resta-nos esperar que, num próximo jogo do London City, Manson e seus pupilos revelam outra capacidade tática e que o resultado final não seja tanto uma vitória à tangente contra uma equipa de um escalão inferior mas sim uma goleada das antigas.

In Rua de Baixo

“As Flores de Lótus” de José Rodrigues dos Santos

História viva


Na lombada e na contracapa do livro, lê-se que estamos perante um romance. Não é propriamente uma novidade tratando-se de José Rodrigues dos Santos, mas desta vez o autor português quis ir mais longe.

A trama de “As Flores de Lótus” (Gradiva, 2015) leva-nos numa viagem entre Portugal e Ásia, sob o cenário do final do século XIX e a aurora do XX, período conturbado que tinha como fio condutor um forte pendor revolucionário que fazia cair alguns regimes e ideais em favor de outros, que se revelariam mais complexos e polémicos.

Mas o epicentro da narrativa centra-se, principalmente, nas primeiras décadas do 1900 e da total descredibilização da democracia, não só em Portugal mas nos quatros cantos do planeta, e como consequência direta eclodiram pensamentos autoritários e totalitários.

O português Artur Teixeira, à época já capitão, um dos principais personagens de “As Flores de Lótus”, chega mesmo a conhecer António Salazar, e vive, em primeira mão, o drama em que o sistema político nacional se encontrava, com o descrédito completo dos partidos que se tinham tornado numa espécie de concubinado clientelista, assistindo, na primeira fila, ao edifício do Estado Novo, e tem nas suas mãos a tarefa de convencer o homem nascido em Santa Comba Dão a assumir as rédeas do país.

Mas a revolução também assola o território asiático. No Japão, Satake Fukui entristece com um país cuja ferida faz dividir as suas gentes entre a tradição e a modernidade. No seu âmago, cresce a vontade de mudar e envolve-se num magnânimo braço de ferro com Sawa desde os tempos de escola, confrontando-se assim entre uma crescente vontade modernista e o pensamento tradicional militarista.

Na China, o nascimento da pequena Lian-hua trazia um aviso: os seus invulgares e serenos olhos azuis serviam como uma espécie de veredicto para a tempestade que ameaçava o colossal território. No coração da tempestade estava o eterno confronto entre nacionalistas, comunistas e japoneses. Para complicar o cenário, Lian-hua é raptada por um emergente radical comunista, de seu nome Mao Tse-tung.

Para completar quadro, na Sibéria, os bolcheviques invadem a pequena propriedade do clã Skuratov e falam dos feitos de um certo Estaline. A impressionável Nadeszheda vê-se assim no meio de um ciclo de sofrimento onde o medo e a fome eram locais comuns.

Estas quatro histórias, que no fundo são uma só, mostram os destinos de quatro famílias e formam o primeiro tomo de uma saga que promete encantar os fãs da escrita do autor de livros como “A Chave de Salomão”. As suas três partes revelam um ritmo elevado mas que pode gerar, principalmente nas passagens de maior contextualização histórica, alguma sensação de relato apressado dos acontecimentos mas, ainda assim, bem estruturado.

O discurso de Rodrigues dos Santos é muito visual, cinematográfico até, mas, por vezes, perde-se no “excesso” de informação dos já referidos relatos verídicos. Ao leitor pede-se alguma paciência e, em alguns momentos, sente-se uma espécie de interlúdio narrativo e somos transportados para o interior de uma sala de aula de História, principalmente quando as páginas são ocupadas pelos longos diálogos entre Artur e Teófilo Baptista, professor de Moral e Religião e de Philosophia.

Tal como na maioria dos seus livros, o conhecido jornalista da RTP, e o autor que mais vende livros em Portugal, exibe um elevado grau de investigação sendo esse o mais interessante trunfo deste livro, tornando os principais personagens das quatro estórias numa espécie de veículos da mais alva pureza intelectual e que encontram acertada metáfora na referida flor de lótus.

Mas esta obra é também sinónimo da paixão que José Rodrigues dos Santos tem pela própria História e da sua vontade, e capacidade, de recriar uma época, nas palavras do própria autor «tentando tornar a História viva». Esse jogo de recuar na memória é um dos alicerces deste livro ambicioso que nas últimas páginas anuncia “O Pavilhão Púrpura”, o próximo episódio desta saga pois, como se escreve no final de “As Flores de Lótus”: «o mais interessante ainda está para vir».

In Rua de Baixo

Livros para o Natal


O livro é, sem dúvida, uma das melhores prendas de Natal. O difícil será escolher que título oferecer tal é a crescente oferta do mercado editorial. Para ajudar nesta complicada tarefa, o Rua de Baixo deixa algumas sugestões, para o menino e para a menina.

Porque dizem que as crianças são o melhor do mundo, começamos por algumas obras que assentam que nem uma luva no sapatinho da criançada. Para um soninho descansado, “10 Histórias Para Adormecer Sem Medos Nem Birras”, (Manuscrito Editora), de Filipa Sommerfeldt Fernandes e Pedro Benvindo é um poderoso aliado de pais e educadores enquanto “O principezinho para os Mais Pequeninos”, de Antoine de Saint-Exupéry (Presença) é uma visão mais pueril de uma das mais encantadoras fábulas da literatura moderna. Noutro registo, “Feliz Natal Lobo Mau” (Livros Horizonte), de Clara Cunha e Natalina Cóias, vai reunir a família à volta da lareira. Por fim, “Um Ano Inteiro – Agenda para Explorar a Natureza” (Planeta Tangerina), de Isabel Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho, deixa um ano inteiro de propostas, passeios e observações, os mais indicados para cada época e selecionados de acordo com o calendário do nosso país e as espécies que o habitam.

Quanto aos livros para gente graúda, são muitos os títulos que assentam que nem uma luva na noite de consoada. Se José Luís Peixoto deambula sobre os milagres de Fátima em “Em Teu Ventre” (Quetzal), Afonso Cruz conta uma deliciosa história repleta de memórias em “Flores” (Companhia das Letras) e José Rodrigues dos Santos revela “As Flores de Lótus” (Gradiva), mais um livro que vai deixar contentes os seus muitos fãs. E porque falamos em duas vozes da nova e genial geração de escritores portugueses ficam mais duas boas prendas: “Contos de Cães e Maus Lobos” (Porto Editora) de Valter Hugo Mãe”, e “O Coro dos Defuntos” (Leya), de António Tavares.

Quanto a autores estrangeiros, o mais complicado é fazer a “triagem”. Mas vamos por partes. Visionário e dono de uma escrita inteligente e provocante, J. G. Ballard traz-nos “Arranha-Céus” (Elsinore). Para quem procura uma leitura mais descontraída, e em especial se é amante de futebol, recomendamos “O Drible”, de Sérgio Rodrigues, (Companhia das Letras) e, num contexto policial, “Mercado de Inverno” (Porto Editora), de Philip Kerr.

E por falar em policiais, crime será não oferecer alguns dos muitos títulos que, felizmente, preenchem as livrarias. “Hereges” (Porto Editora), de Leonardo Padura, é sinónimo do regresso do mestre cubano, enquanto “O Fantasma”, de Jo Nesbo, (D. Quixote) e “O Bicho-da-Seda”,de Robert Galbright (Presença), trazem novas aventuras de Harry Hole e Cormoran Strike respetivamente. Outras excelentes sugestões são “Alguém para Tomar Conta de Mim” de Yrsa Sigurdardottir (Quetzal) e “A Rapariga Apanhada na Teia de Aranha”, de David Lagercrantz, thriller que é sinónimo do quatro tomo da saga Millennium e mata saudades de Lisbeth Salander.

Além destes autores mais clássicos, temos algumas grandes novidades. Da Suécia, “Segredos Obscuros” (Suma de Letras), de Michael Hjorth e Hans Rosenfeldt, é um dos títulos mais interessantes do género policial de 2015, assim como “Peregrino” (Topseller), de Terry Hays, e “A Rapariga no Comboio” (Topseller), de Paula Hawkins.

Para os mais saudosistas, existem dois livros que não podem deixar de fazer parte das suas wishlists: “Star Wars – Guia Visual Definitivo” (Planeta) e “Lembras-te Disto?” (Esfera dos Livros) de Luís Alegre e Pedro Marta Santos.

In Rua de Baixo

sábado, 5 de dezembro de 2015

Arranha-céus
de J.G. Ballard

Câmara subjetiva


Robert Laing, professor de medicina, é um dos dois mil inquilinos de um imponente edifício de quarenta andares situado nos arrabaldes de Londres e que prima por uma arquitetura arrojada de coração modernista, fruto de uma visionária cultura de meados da década de 1970.

Dentro das muitas paredes do edifício os luxos são muitos e a sua facilidade de acesso, via elevador, faz com que não seja necessário sair para a rua para usufruir de ginásio, piscina ou supermercado.

As rotinas aburguesaram os inquilinos mas o ambiente está longe de ser normal e, aos poucos, as situações caricatas e anormais tendem a ameaçar a tranquilidade aparente desta sociedade vertical. Os primeiros sinais de rutura surgem quando os automóveis são alvos de violência, depois os próprios moradores. Como um autêntico efeito baralho de cartas, os incidentes sucedem-se e surgem as primeiras vítimas.

De forma a entender e registar os bizarros e inesperados acontecimentos, Richard Wilder, realizador de comentários, avança no meio do caos, de câmara em riste, e grava um inexplicável avolumar de violência e destruição cujo único responsável é o indivíduo movido por um sentimento de sobrevivência egoísta, duas das mais inatas características à raça humana.

Num misto de anarquia e alucinação, e assumindo-se como um dos maiores herdeiros da narrativa de H. G. Wells, o mítico J. G. Ballard, reconhecido autor de obras controversas como “Crash” ou “Noites de Cocaína”, lança um interessante desafio ao leitor com “Arranha-Céus” (Elsinore, 2015) e leva-nos a colocar em causa a filosofia das sociedades modernas que, apesar de viver no “conforto” de tal opta por demonstrar uma vivência primitiva.

E é, talvez, por este conjunto de incongruente aceções que constatamos que “Arranha-céus” não é um livro fácil de catalogar. Ainda que com alguns tiques de ficção científica, a ação remete para meados da década de 1970 de uma Londres envolta de ambiente distópico e o autor aposta numa reflexão do comportamento humano que a psicologia dificilmente conseguirá contextualizar.

Para, e por tal, Ballard opta por isolar o Homem de qualquer laivo de humanidade, remetendo-o trancado numa jaula emotiva e emocional, e sujeito a avalanches de stresse que o empurram para intrincadas estruturas sociais onde a moral comunitária e do próprio indivíduo colapsa. A seleção e separação que o ser humano é vetado neste livro criam uma comunidade de cerca de duas mil almas com algumas afinidades profissionais e que mais tarde reforçam essa identidade por via de uma traumática experiência a que estão sujeitos.

Pelo meio da narrativa, por vezes matematicamente factual, surgem dúvidas, momentos de alguma perplexidade, mas tudo nasce do exercício psicológico que o autor faz da calendarização evolutiva dos acontecimentos, desde dos tempos de pacata normalidade até aos primeiros sinais de caos. Os dogmas são colocados em causa e a própria infraestrutura que pensamos inata, e que é sinónimo de um certo conforto, pode ser um alerta em forma de uma rebeldia dos elementos (des)funcionais (os elevadores param entre andares, a eletricidade regista falhas, os canais de envio de lixo estão encerrados, o ar condicionado funciona mal, os lugares de estacionamento são quase inacessíveis…).

Por outro lado, a inicial homogeneidade social, e mesmo burguesa ou aristocrática, dos inquilinos quebra ao menor sinal de tensão e reside na verticalidade do próprio edifício, e na distribuição dos andares, algumas das maiores metáforas de “Arranha-céus” pois à medida que as páginas são folheadas a noção que estamos perante uma efabulação da vida moderna explode, colocando a olho nu uma exacerbação egoísta da própria noção de comunidade. No fundo, e apesar de viverem em conjunto, é a solidão que mais “une” as partes humanas no prédio onde o código moral há muito foi colocado em causa.

Profundo exercício intelectual sobre a premissa da urbanidade e dos limites da liberdade individual e coletiva, “Arranha-céus” coloca ainda em causa as noção de isolamento, emancipação social, identificação de classes e estratos, a ténue linha entre a racionalidade e o espírito animal (selvagem) de sobrevivência, e a noção de crise e de todos os impulsos que dela resultam e que levam a maioria a espezinhar a “oposição”, mesmo que a mesma seja lógica e pertinente.

Também importante é a coagitação feita à ação e meandros da prevalência subconsciente de quem age por influência de uma gratificação e hierarquização dos problemas quotidianos e pode, na fronteira do bom senso, levar a uma alienação gratuita da moderno quotidiano por via de uma “simples” câmara de vídeo que transforma um minuto real em momentos dignos de um reality show sem regras que se alimenta de tragédias, desastres, crimes e acidentes.

E é também nesse limbo entre real e ficção que se movem os personagens desta intrigante obra de Ballard, principalmente por parte de Wilder que tem a ideia de criar um documentário repulsivo mas atraente do ponto de vista sociológico ou do arquiteto que idealizou o edifício e vive no topo do mesmo (e porque não dizê-lo da pirâmide social) e que assume um privilegiado papel de salivante espetador.

In Rua de Baixo