domingo, 20 de novembro de 2016

“Violência e Islão”
de Adonis

Do terror à luz


Foi recentemente apontado à vitória ao Prémio Nobel da Literatura e através de várias obras e análises deu a conhecer ao mundo uma atitude muito crítica face às «falsas interpretações e leituras do Corão», refletindo sobre os conceitos de identidade, religião, progresso e humanidade, alguns dos principais alicerces do processo de conhecimento do Islão e, por conseguinte, da conjuntura do mundo árabe.

Falamos do poeta sírio Adonis, pseudónimo de Ali Ahmad Saïd Esber, uma das vozes mais marcantes da atualidade face à constante ebulição política arábica. Exilado no Líbano desde a década de 1950, trabalhou na revista Shi’r, uma das mais influentes publicações literárias do mundo árabe, e fundou a igualmente prestigiada, Mawaqif.

“Violência e Islão” (Porto Editora, 2016) não é nada mais nada menos que um seguimento lógico desse caminho, mas também da «esperança num renascimento, na morte deste Islão-terror para dar lugar a um Islão-luz», e este fundamental e corajoso livro brotou na ressaca de uma sucessão de conversas entre Adonis e Houria Abdelouahed, professora na Universidade Paris Diderot, psicanalista e tradutora da obra de Adonis para a língua francesa.

Com um assinalável sentido crítico, onde nada é deixado ao acaso, Adonis e Abdelouahed falam-nos de um Islão como resultado de um ideal religioso e político mas que procura, a todo o custo, impor-se através da conquista e do controlo, algo que vai contra a ética individual apregoada no referido livro sagrado e que, nas suas palavras, castram a individualidade e criatividade.

Em algumas passagens, por exemplo, é feito a alusão ao Corão e à Hadith (conjunto de leis, lendas e histórias sobre a vida do profeta Maomé) para questionar as atitudes repressivas face ao universo feminino, declarando que essa mesma “filosofia” acabou por matar a própria subjetividade da existência. É essa perda também o motivo que leva as duas vozes de “Violência e Islão” a apelar à tolerância e refutando simultaneamente a ideia errónea de que todos os muçulmanos são hereges ou traidores apelando à elevação da cultura árabe, de forma evidente e definitivamente pacífica. Apela-se, portanto, o fim «do extremismo islâmico, no seu discurso e na sua ação», uma «bandeira em permanente agonia, que mantém os seus fiéis na escuridão e incute na sociedade árabe uma conduta de violência, analfabetismo, misoginia e ignorância. Um obscurantismo e uma barbárie que duram há quinze séculos e que hoje se fazem sentir um pouco por todo o mundo, de Palmyra a Paris.»

Traça-se ainda uma visão sobre as atuais tensões no território mas também se recua à génese do próprio Islão. Desde a morte do profeta Maomé, a “sua” religião tem sido usada como uma arma política e económica que tem explorado e reforçado as divisões locais, e tribais, com o único objetivo do poder.

Essa realidade leva Adonis a refletir sobre os eventos recentes no Médio Oriente, desde os insucessos da “Primavera Árabe” até à ascensão do Daesh, passando pela guerra na Síria, «dos quais o Ocidente não pode ser ilibado de culpas», e pelos ecos destruidores que se têm alastrado ao mundo e que negam qualquer possibilidade de uma crescente noção de pluralidade face a uma violência omnipresente. Consciente, Adonis apela a um espírito “inquisidor”, que resgate liberdades e faça evoluir as normais culturais e sociais.

O objetivo é, simultaneamente, «o combate ao silêncio e à hipocrisia que se instalaram tanto no Médio Oriente quanto no Ocidente» abrindo alas para a «necessidade urgente de uma releitura e debate livres no seio da sociedade árabe, um novo tempo que do passado apenas invoque a luta pelo direito à diversidade e que condene o confronto. Uma era de reconciliação».

A abrilhantar o livro está o estilo marcadamente poético, claro está, do seu discurso que aliado a uma abordagem mais psicanalítica tornam a leitura fluida, interessante e que tem como “bónus” o conhecimento da própria cultura árabe por via da referência a alguns dos seus mestres poetas.

In Rua de Baixo

“A Gaivota”
de Sándor Márai

Cada ser humano é um planeta perdido


Será possível um homem apaixonar-se por uma mulher que já não se encontra no mundo dos vivos? O escritor húngaro Sándor Márai nem tem dúvidas e isso pode ser comprovado através da leitura de “A Gaivota” (D. Quixote, 2016), um livro que se alicerça numa deliberada indefinição entre o real e o imaginário, entre o verosímil e o fantástico.

No epicentro da trama está um alto funcionário ministerial, de nome incógnito, culto, solitário e seguro. Alguém que, em plena segunda guerra mundial, acaba de ordenar uma decisão que, numa questão de horas, afetará milhões de pessoas.

Apesar do peso que carrega, a sua serenidade, aparentemente imutável, desmorona-se com algo inesperado: uma lindíssima jovem finlandesa de poético nome (Aino Laine ou a «Única Onda, em finlandês) dona de uma notável semelhança com a única mulher que ele amou, morta há anos. Contrariando o que aconselha a prudência profissional e o decoro, arrisca convidar a desconhecida para o acompanhar à noite de ópera que tinha planeado para esse mesmo dia.

Inicia-se assim um diálogo íntimo e profundo onde sedução, paixão, nostalgia e destino combinam entre si e provocam uma perturbante transformação no sólido equilíbrio burguês do sensato homem. O hermetismo inicial da jovem acentua uma sensação de confusão mas é encarado como uma espécie de segunda oportunidade quando o cenário se assemelhava resignado à infelicidade. A sua anterior amante havia cometido suicídio depois de se ter envolvido numa conturbada embrulhada sentimental (e sexual) e ter colocado fim à vida, para, supostamente, parar uma dor que teimava em manter-se mas que, afinal, tornou-se ainda mais conflituosa, para outros, além da sua morte.

Escrito na terceira pessoa, “A Gaivota”, publicado pela primeira vez em 1943, carrega uma ambiguidade latente muito característica, por exemplo, nas grandes obras de suspense pois nada é muito claro, declarado. Não nos é possível discernir a fronteira entre sentimentos legítimos e elevadas doses de perversidade.

Mesmo no que toca aos protagonistas, o trio entre o homem e as duas mulheres, uma morta, outra viva, faz-se acompanhar por uma sombra ubíqua sob a forma da morte, servida por Márai como um personagem de “corpo inteiro”. Ficamos (as)sim entregues a uma narrativa assente em quatro vértices que desafiam essa extrema e estranha entidade que ousamos apelidar de condição humana, sempre sublinhada por um ceticismo cru que nos faz lembrar, a ferros, que, muitas vezes, desconhecemos o nosso verdadeiro íntimo sendo o corpo apenas uma evidência, uma matéria que se transcende. Esse descontrolo emocional, essa falência, percebe-se melhor pois estamos perante um escritor que sentiu na pele o fracasso das relações interpessoais.

Neste romance que se funde num misto de paixão, morte e onírico, Sándor Márai edificou uma narrativa requintada, reflexiva e profunda cujos personagens deambulam por e através das suas emoções na tentativa de as apreender, sendo, no fundo, figuras trágicas, fatalistas, que desafiam o destino.

O amor, na perspetiva de Márai – e porque não dizê-lo por forte influência do contexto bélico da Segunda Grande Guerra em que este livro se insere -, é uma miragem, uma ilusão insustentável, desumanizadora, que promove, tal como a própria guerra, a transformação da noção de pessoa cujo molde é formado por um misto de desencanto e ironia. Resta-nos, enquanto leitores, ou recetores de uma mensagem de código próprio, sentir a evocação de um tempo antigo, quando a literatura a arte e a paixão viviam numa reclusão tolerante onde era possível transformar o sofrimento em algo belo.

In Rua de Baixo

“Homens imprudentemente poéticos
de Valter Hugo Mãe

A humanização


Era uma vez um artesão que vazia leques e um oleiro que fazia taças. Era uma vez um Japão distante em que o amor se media pelo pensamento, a sensatez pela ausência de atos, a paixão pela distância e ausência das pessoas que se amam. Era uma vez Itaro, o artesão, e Saburo, o oleiro, que cultivavam uma perigosa animosidade fundada na irracionalidade da “saudável” convivência. Era uma vez dois homens em luta consigo próprios cujos sabres desbravam os seus pensamentos, as suas perdas, o seu caminho interrompido pela desgraça. Era uma vez a morte, presente ou ausente, de ser-se humano. Era uma vez uma imaginação feita, pensada, edificada, em jeito de parábola e que revela as fraquezas das gentes desenraizadas de sentido, feridas de morte pela vida.

Não era uma vez, são todas as vezes. São todos os livros de Valter Hugo Mãe. Peças únicas de uma filigrana narrativa escrita com alma de poeta sem rimar, que procuram «a felicidade no detalhe» e levam o leitor a uma espécie de lugar recorrente, conhecido, próximo, íntimo. E que fazem entrar numa geografia particular, seja “aqui” ou na terra do sol nascente, este último lugar palco de “Homens imprudentemente poéticos” (Porto Editora, 2016).

Dividido em quatro partes, como se de uma encenação se tratasse, o mais recente livro do autor de “A máquina de fazer espanhóis” invade-nos sem pedir licença, de início timidamente, e, depois, quase sem dar-nos conta, já não conseguimos desta cela sair, amarrados à sua eternidade poética cujo expoente metafórico afigura-se numa lenda cujo poço nos permite agarrar o medo, sentir o seu bafo e a sua violência, mas que acaba por cauterizar o mais profundo dos desgostos.

O perfil dos protagonistas, fantasmas de si próprios cuja vizinhança apenas faz adivinhar a desarmonia, traça o caminho para a restante e restrita companhia. Se Itaro ainda se pode valer da companhia da irmã cega Matsu e da senhora Kame, «a mãe perto», a Saburo resta-lhe chorar a morte de Fuyu, sua mulher. Pelo meio existem sábios que aumentam ou minguam de tamanho de acordo com a ocasião, fantasmas paternais ou um espantalho de quimono (trans)vestido que serve de bandeira à saudade.

Como suporte global está a natureza. Seja ela da vida ou da morte, da dor alheia à vontade ou da procura do suicídio como um ato de expiação esgravatado numa floresta anónima, oca de vida, que serve de santuário à reflexão cujo vórtice apela ao mito de Ariadne, a essa procura do caminho certo, seguro, merecido.

Mais que um livro, “Homens imprudentemente poéticos” é uma ferida aberta, uma dor ora latejante ora suportável, sem analgésicos ou cura. É um pedaço da vida, de um «tempo mitológico» construído com uma escrita dinâmica, elástica e plástica, em que os Homens, desprovidos de qualquer sentido de visão, assumem essa condição ficando de costas voltadas para todos os lados.

In Rua de Baixo

domingo, 13 de novembro de 2016

“Doce Carícia”
de William Boyd


Conhecido por obras como “Viagem ao Fundo do Coração” ou “Inquietude”, o britânico William Boyd traçou um percurso literário marcado por um assinalável e muito competente conjunto de narrativas onde o amor, a paixão, é uma vincada imagem de – e que – marca.

O seu mais recente livro, “Doce Carícia” (D. Quixote, 2016), tem como figura central a fotógrafa Amory Clay, e conta-nos a sua vida desde 1908, data do seu nascimento, até 1977, altura em que, quase septuagenária, olha, narra e reflecte sobre a sua atribulada existência a partir do seu retiro de campo algures numa ilha ao largo da costa oeste da Escócia. A história evolui, sem respeitar a normal ordem do calendário, e onde presente e passado se confundem num puzzle emotivo e emocional que traz à tona a revelação de muitos segredos.

Armory Clay teve uma existência épica, num constante rebuliço, através de um século XX pejado de surpresas e que levou a nossa repórter a percorrer o globo e a derrubar fronteiras entre Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos da América, México, França, Escócia e Vietname. Com uma carreira pejada de aventura, Clay testemunhou – e registou – alguns dos maiores eventos da história recente, incluindo no seu currículo pedaços da Segunda Guerra Mundial que marcaram a vida de todos. E foi esse “fogo amigo” que cravou estilhaços na vida de alguns dos homens mais próximos de Armory (o seu pai, o irmão e o marido), deixando cicatrizes profundas na sua alma.

A sangria começa logo nas páginas iniciais do livro, com uma Armory, aos 19 anos, a sentir o fel do desamor quando se apaixona sem ser correspondida. Como um murro no estômago, depressa vai perceber que a vida é uma teia complicada de emoções, derrotas e vitórias e que convém ter noção de que ver apenas aquilo que se quer leva a erros irremediáveis.

Essas falhas, sub-reptícias ou mais evidentes, dominam todo o romance e, por conseguinte, a vida da protagonista. Existem também, claro está, observações casuais que podem alterar o âmago de qualquer relação, reflexões sobre a pertinência (ou não) da vida militar ou de complexas manobras profissionais que podem colocar em causa um profundo impacto financeiro.

Dada a estrutura e estilo narrativo de “Doce Carícia”, não resistimos a fazer uma quase inevitável comparação com o principal visado do já referido “Viagem ao Fundo do Coração”, pois as vidas de Armory Clay e Logan Mountstuart fazem uma admirável tangente e, em ambos os casos, Boyd faz o seu universo criativo girar em torno de uma interação entre figuras históricas reais e outras nascidas da ficção.

Neste tipo de abordagens existe sempre um risco (calculado ou não) de algumas perdas individuais e estruturais dos próprios personagens, mas “Doce Carícia” ultrapassa essa questão sem mácula e faz o leitor percorrer uma história rica e bem montada onde o tempo não pára e as emoções andam à solta, em desalinho. Esse dinamismo hábil e a sua construção cinematográfica deixam mesmo a ideia que não fará muito tempo para vermos a estória criada por Boyd no grande ecrã.

In deusmelivro

domingo, 6 de novembro de 2016

Mão cheia de livros
Semana # 44

As novidades editorais sucedem-se, felizmente, semana após semana. E como no Rua de Baixo queremos, e devemos, dar-vos conta daquilo que de melhor vai invadindo as prateleiras das livrarias, inauguramos um novo espaço. Chamamos-lhe “Mão cheia de livros” e será, essencialmente, um veículo de divulgação daquilo que as editoras fazem chegar ao mercado. Para esta semana, deixamos cinco sugestões.

Ainda com o espírito do Dia das Bruxas em eco, começamos por “Dr. Sono” (Bertrand Editora), a mais recente obra do mestre Stephen King a ser editada em Portugal e que nos remete para o universo da obra-prima “The Shinning” e assume-se como a sua sequela. No seu epicentro está a tribo Nó Verdadeiro que viaja à procura de sustento pelas autoestradas da América. Parecem inofensivos e são, sobretudo, velhos. Mas, afinal, são quase imortais e vivem do «vapor» produzido pelas crianças com o «brilho» quando são lentamente torturadas até à morte.



No campo do romance, no caso entre a ficção e a autobiografia, “Cheio de Vida” (Alfaguara), de John Fante leva o leitor a conhecer John Fante, o personagem, nas suas deambulações por Los Angeles. Neste livro reflete-se o quotidiano, a religião e as relações humanas através de uma mistura de comédia e drama.


Já “A verdadeira história das SS” (Casa das Letras), do historiador Robert Lewis Koehl, reflete a ascensão e queda da força militar e de segurança mais temida do século XX. Esta obra perturbadora revela não apenas a forma como estes soldados pretensamente superiores combateram ao lado da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial (tendo sofrido mais de um milhão de mortos), mas também como constituíram a principal força de ocupação em vários territórios conquistados, dirigiram o sistema de campos de concentração, atuaram no interior do Reich enquanto polícia secreta e eram os artífices de um projeto cultural sem precedentes que incluía desde escavações arqueológicas na Alemanha até expedições no Tibete.


Ainda no universo da história, ainda que neste caso ficcionada, destacamos “O Evangelho segundo Lázaro” (Porto Editora), de Richard Zimler, uma abordagem ao Novo Testamento, no Evangelho segundo São João, onde é narrado o episódio de ressurreição de Lázaro, um dos mais importantes milagres de Jesus. Agora, Zimler conta não só essa história como toda a vida de Lázaro e a sua relação de amizade com Jesus, num romance bem documentado que introduz o leitor na tradição mística judaica e na vida quotidiana da época.


Para o final deixamos uma sugestão que cruza a arte da leitura com a música. Falamos de “Mão verde” (Valentim de Carvalho), uma joint venture entre Capicua e Pedro Geraldes (músico dos Linda Martini). Na sua essência, este disco-livro ou livro-disco, sendo para crianças sem ser infantil tem lengalengas originais escritas e cantaroladas por Capicua e musicadas por Geraldes. As ilustrações são de Maria Herreros.

 
In Rua de Baixo