domingo, 17 de julho de 2016

“Numa Floresta Muito Escura”
de Ruth Ware

Os Segredos da Casa de Vidro


Aquando da apresentação de “Numa Floresta Muito Escura” (Clube do Livro, 2016), a autora e escritora britânica Ruth Ware afirmou que ganhou inspiração para escrever este livro com universo de Agatha Christie e também com o filme “Scream”.

E é definitivamente essa a sensação que nos invade logo desde as primeiras páginas de um livro que se move num sentimento de suspense constante com laivos de terror, onde um grupo dinâmico de personagens, cujas intenções nos surpreendem e põem em causa, comandam todo o exercício narrativo.

Tudo começa quando Nora, uma escritora de policiais, recebe um inesperado apelo via email ao ser convidada para a despedida de solteira de Clare, uma amiga que o tempo acabou por separar. Ainda que a medo e mergulhada na surpresa, Nora, dona de um perfil pouco social, aceita o convite e decide integrar o grupo de seis pessoas convocadas para essa reunião marcada para uma casa isolada numa floresta recôndita, e essa decisão vai marcar a sua vida para sempre.

Nora vê-se assim forçada a um peculiar convívio no meio de estranhos, à exceção de Clare e Nina, ambas colegas de uma distante infância, e a sensação de que deveria ter recusado o convite ganha cada vez mais contornos, principalmente por ver-se obrigada a responder a questões ligadas a um período que, definitivamente, quer esquecer.

Cerca de quarenta e oito horas depois dessa estranha reunião, Nora acorda no hospital. Desorientada e ferida, não se recorda de nada mas sabe que algo muito grave aconteceu. Sente a morte de alguém, mas não sabe de quem. Pergunta-se o que terá acontecido naquela casa envidraçada perdida na muito escura floresta. Encarcerada num mundo de dúvidas, vai recuperando a memória e sente que o pesadelo está apenas a começar.

O enredo, claustrofóbico e tenso, de “Numa Floresta Muito Escura” prende eficazmente o leitor e o pequeno elenco envolve-nos à medida que segredos são revelados, ainda que à superfície não seja demonstrada toda a sua negra imensidão.

Outro dos trunfos deste livro é o desenho individual de cada personagem que se vai assumindo como essencial na globalidade da narrativa dando a sensação de uma intrincada relação global (bem) definida por Ruth Ware, e que serve de elemento contextualizador para as diferentes peças do cativante puzzle que é este livro.

Ainda que com alguns tiques algo previsíveis, Ruth Ware faz-nos chegar um thriller bem contado e construído que leva o leitor a mergulhar numa viagem extrema onde o medo e o perigo escondem-se atrás daquilo que de mais assustador existe: a mente humana.

In Rua de Baixo

“As Raparigas Esquecidas”
de Sara Blaedel

Floresta de Sombras

 
A chegada de mais um autor de romances policiais oriundo do Norte da Europa é sempre uma excelente notícia. Desta vez a honra cabe à dinamarquesa Sara Blaedel, uma ilustre desconhecida por terras lusas mas que tem uma acérrima horda de fãs espalhada por todos os países que já editaram os seus livros. A sua estreia em Portugal faz-se com “As Raparigas Esquecidas” (Topseller, 2016), sétimo volume da série Louise Rick e primeiro tomo da trilogia homónima.

No centro da trama está, obviamente, Louise Rick, agente policial recentemente transferida para o Departamento das Pessoas Desaparecidas e que fará parelha com Eik Nordstrom, um homem sempre trajado de negro, viciado em tabaco, à beira de um qualquer limite pessoal, que faz do bar local sua casa.
Apesar do início da parceria se revelar conturbado, Louise e Eik acabam por conseguir ultrapassar as diferenças e quando um terrível crime acontece, juntam forças. O caso é complicado e tudo começa quando uma mulher aparece morta numa floresta e o crime é revelado quando o guarda-florestal encontra o maltratado corpo.

Profundamente marcada por uma cicatriz que lhe envolve grande parte do rosto, a mulher morta parece ser facilmente reconhecível, mas essa tarefa revela-se mais complicada pois ninguém relatou o seu desaparecimento e dos registos não constam os seus dados.

Luise e Eik procuram pistas mas estas teimam em não existir. Na esperança que alguém identifique aquele rosto tão marcado, é publicada uma fotografia da mulher no jornal local e os resultados são quase imediatos. Louise recebe um telefonema de Agnete Eskildsen e fica a saber que o corpo pertence a Lismette, uma das «raparigas esquecidas» de Eliselund, antiga instituição estatal para doentes mentais onde Agnete trabalhara anos antes e cujas memórias assombram a sua vida desde então.

A descoberta leva a dupla do Departamento de Pessoas Esquecidas a investigar os arquivos da instituição e acabam por descobrir terríveis segredos que colocam toda a comunidade em cheque, e choque. A desconfiança cresce à medida que mais se sabe sobre o caso e as mortes continuam a acontecer na floresta…

Sara Blaedel consegue construir uma narrativa envolvente, emocional e emotiva, misteriosa, com alguns requintes de malvadez e cenas onde o ódio e a violência desafiam os limites da mente humana. A par da investigação policial, existe espaço, e cuidado, para uma breve apresentação do elenco com particular destaque para o personagem de Louise, uma mulher encurralada num passado tortuoso onde os maiores fantasma assumem a forma do suicídio de Klaus, seu antigo namorado, e a relação fugidia com a sua família, exceção feita a Jonas, seu filho, e Melvin, seu paternal vizinho. Também Camilla, uma das melhores amigas de Louise, e a braços com uma situação pessoal instável, tem uma presença determinante na trama, principalmente a partir do momento que decide investigar o estranho caso das raparigas desaparecidas, mortas ou violadas que assombram a comunidade.

“As Raparigas Esquecidas” é, no seu todo, um bom livro, cru e com boas doses de suspense, reviravoltas e um assassino cuja forma de atuação nos faz devorar as páginas com voracidade deixando a dúvida sobre a sua identidade até aos suspiros finais, mas que, a espaços peca por deixar o leitor um pouco perdido face ao natural desconhecimento do passado de alguns personagens.

Este livro revela ainda uma outra dimensão, levando-nos para um território que transcende o próprio cenário ficcionado e que remete para as situações de maus tratos em instituições para pessoas com deficiências e os abandonos, forçados ou não, que são alvo e que demonstra que a sociedade, infelizmente, ainda está muito longe da plenitude solidaria e humana que tanto se apregoa, e espera, e que muitas vezes é moldado por dramas pessoais.

 In Rua de Baixo

NOS Alive 16: Dia 3
Em dia de festa, cantam milhares de almas


Mais um dia, mais uma grande viagem, à volta do mundo. O terceiro e último dia da edição do NOS Alive deste ano foi muito intenso e foi possível sentir o habitual ecletismo sonoro. A abrir sentimos o calor mariachi dos Calexico, depois serpenteamos com uma dupla Jibóia, saltámos a galope dos Band of Horses e acabámos a noite com uma beleza em tons de branco e prata com a prestação estrelada dos Arcade Fire. Pelo meio ficamos a saber que a edição do próximo ano já tem data marcada e a busca pelo «melhor cartaz de sempre» já começou.

18.55 – Calexico – Palco Heineken

Quem chegou à tenda Heineken minutos antes do início do espetáculo podia ver o palco já cheio de gente. Ensaiavam-se guitarras, trompetes e bateria. Bem no centro, destaca-se um senhor de camisa vermelha que coordenava as operações. Cá em baixo, no imenso tapete verde, enquanto a música não tomava conta do recinto, havia tempo para conversar, descansar, que isto de andar três dias a viver maratonas sonoras não mata mas mói, e saltar uns gritos por Portugal. O palco teimava em manter-se sobrelotado e, ainda com a “música” ambiente a emanar dos écrans que ladeiam o palco, ouvem-se os primeiros acordes de “Frontera/Trigger”, a faixa que tem aberto os concertos recentes dos Calexico.

Num ápice, o ar é invadido por uma envolvência mariachi e Joey Burns, o tipo da camisa escarlate, John Convertino, Scott Colberg, Jacob Valenzuela, Martin Wenk, Sergio Mendoza e Jairo Zavala, quais sete magníficos, fazem-nos entrar num “filme” cujo argumento remete para os caminhos quentes da Tucson natal da banda que, por quase uma hora, nos fizeram sentir tudo menos os últimos homens (e mulheres) do planeta.

Com a evidente empatia conseguida logo nos primeiros instantes entre banda e público, Burns solta um «Bom dia» com um sotaque quase perfeito, e ataca “Falling From the Sky”, um dos exercícios mais pop do veterano coletivo. Mas a festa atingia sempre um especial pico com a aventura por territórios de ritmo mexicali e "Cumbia de Donde" fez dançar e aplaudir. Um dos momentos mais intensos da atuação, com Burns a assumir o papel de o contador de serviço, foi a dramática “Maybe on Monday”, o mesmo acontecendo com a lindíssima “Black Heart”.

Os corpos voltaram a agitar-se com “Soledad (Cumbia en la Mar)", uma versão do colombiano Enrique Bonfante, e “Inspiración”, com o microfone a ser assumido por Jacob Valenzuela que ainda assim não abandonou por completo o trompete.

O ambiente estava ao rubro e ninguém resistia a abanar corpo e alma. A fiesta seguiu-se com o clássico de coração destroçado que é “Alone Again”e o hino à redenção de nome “All Systems Red”, cujo pujante e brilhante final arrancou uma merecida ovação.

Também ele rendido, Joey Burns, confessava que se sentia na sua Arizona natal e agradecia a paciência que tínhamos em estar ali. Modéstias e simpatias à parte, a melhor recompensa que todos sentimos ao assistir a tudo isto assumia a forma de uma música sem fronteiras, feita e pensada numa espécie de crossover de todo o continente americano. As derradeiras balas sonoras disparadas pelos pistoleiros Calexico atingiram-nos em cheio no coração (derretido) e “Bullets & Rocks”, “Crystal Frontier”, vénia dividida para Burns e Convertino, e “Guero Canelo”, um original de Manu Chao, fecharam uma prestação que dificilmente se esquecerá. E porque isto do amor com o mesmo se paga, Burns despediu-se com um voto especial: «amanhã, vamos fazer força por Portugal na final do Euro!». A bola já rola?

Serpentes ecléticas e novidades, das boas

Ainda com os sons da latina América na cabeça, seguimos para outras latitudes sonoras. Ali mesmo à beira do palco Heineken, o espaço Raw Coreto estava muito bem composto e o ar, era invadido por sons que nos remetem para o Médio Oriente. Voamos até lá e ao descer do tapete aterramos no concerto de Jibóia, projeto português da dupla Óscar Silva (guitarras, eletrónicas e beat) e Ricardo Martins (bateria). O concerto teve como ponto de partida (e chegada) “Massala”, o recente álbum da banda que é, nas palavras de Óscar Silva, «uma mistura de especiarias», e nele se amalgamam sons da América do Sul, África, Europa e Ásia.

A internacionalização musical dos Jibóia, também apanágio de um festival como cada vez mais se assume o Alive, serviu como uma espécie de ponte para aquilo que foi dito por Álvaro Covões, diretor da Everything is New, numa conferência de imprensa em forma de balanço e que contou ainda com a presença de Paulo Vistas, presidente da Câmara de Oeiras, e Rita Torres Baptista, diretora de marketing da NOS. Numa breve e agradável conversa, salientou-se a segurança de um festival que tem tido o mérito de conquistar considerável reputação por esse mundo fora, integrando mesmo a lista dos 10 melhores festivais do planeta difundida pela insuspeita cadeia de televisão norte-americana CNN. Entre sorrisos e sentimentos de dever cumprido, ficamos a saber que esta edição do Alive contou com festivaleiros de 88 nações diferentes, num total de quase 32 mil almas de outros quadrantes, e que foram acreditados perto de 500 jornalistas, dos quais uma centena eram estrangeiros. No final, somos também informados que a edição do NOS Alive 17 já está em marcha e tem data marcada: 6, 7 e 8 julho.

21.00 – Band of Horses – Palco NOS

Na memória de quem esteve no Passeio Marítimo de Algés na edição do Alive de 2013, então ainda Optimus, e teve a sorte de estar no palco Heineken a assistir ao concerto dos Band of Horses, estão recordações de um excelente espetáculo da banda liderada por Bred Bridwell. Passados três anos, e face ao crescimento, a pulso, da banda, os Band of Horses subiram de divisão e estão agora entre os eleitos que pisam o palco NOS já sem a luz do sol.

Na ressaca da estreia de “Why Are You Ok?”, o quinteto de Seatlle tinha a difícil tarefa de subir a palco antes dos muito esperados Arcade Fire e sofreram um pouco a ansiedade que espelhava a cara dos milhares que tinham à sua frente. Independentemente disso, os Band of Horses estavam decididos a entreter os convivas e o começo do concerto deu-se com a fantástica “Is there a Ghost” que, noutros tempos, seria escolha mais que esperada para fechar a prestação. “Casual Party”, com um assumido perfil radiofrendly, foi o primeiro mergulho no refrescante rio que é “Why Are You Ok?”, bem secundado pela etérea e melancólica “The Snow Fall”, pérola retirada de “Everything All the Time”, registo de estreia da banda.

Seguiram-se “The Great Salt Lake”, a luminosa “Solemn Oath” e “In A Drawer”, as duas últimas safra do registo de 2016. A receção do público alternava entre a momentânea excitação e um aparente alheamento e as razões, dizemos nós, estariam associadas a algum desconhecimento em relação às novas canções e ao aproximar da presença dos Arcade Fire. Ainda assim, o jogo de guitarras de “Laredo” não deixou ninguém indiferente e o espírito texano da nova “Throw My Mess” fez abanar alguns esqueletos, enquanto a doce e aveludada “Hag” aqueceu e protegeu muitos corações do vento.

Perto do final, a emocionada declaração “No One's Gonna Love You” provocou muitos beijos no perímetro e “Cigarettes, Wedding Bands” abriu caminho para a música que todos esperavam e “Funeral” fez, pela primeira vez, todos olharem o palco.

Ainda que tivéssemos assistido a um bom concerto, os Band of Horses acabaram por ser “vítimas” dos senhores que se seguiam e, objetivamente, o coletivo liderado por Bridwell merece mais atenção e um espaço mais íntimo aumenta o sentido à sua música.

22.45 – Arcade Fire – Palco NOS

Que atire a primeira pedra quem tinha bilhete para o derradeiro dia de Alive e não sonhava com o concerto da banda do casal Win Butler e Regine Chassagne. À medida que o dia avançava a pergunta mais frequente era quanto tempo faltava para começar o concerto de Arcade Fire. Muita coisa mudou desde o lançamento de “Funeral”, em 2004, e, hoje, a banda canadiana atingiu um estatuto maior do que aquele que certamente esperariam. Cada disco do sexteto, que em palco se transforma numa espécie de plantel futeboleiro tal a quantidade de craques em campo, é uma esperada obra-prima cujas epifanias agradam uns e fazem outros questionar as direções tomadas.

Com um palco cuidado, digno de um estrelato que, literalmente, marcava esse espaço, os Arcade Fire entraram com o jogo ganho à partida mas cuja mestria tinha de ser provada, e ao longo de mais de hora e meia deixaram sangue, prateado, suor e provocaram algumas lágrimas, das boas.

“Ready to Start” abriu o caminho de uma estrada cujo destino nos fez chegar a uns deliciosos “The Suburbs. A viagem fazia-se ao ritmo de um passeio agradável. Ao volante, Butler, vestido de branco, mostrava-nos as direções e alguma dúvida sobre o trajeto facilmente era esclarecido por uma Regine, prateada, e que chegou mesmo a assumir o papel de decidida cheerleader.

Com o depósito cheio de um inesgotável combustível, subimos a um céu repleto de estrelas com “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”, num ritmo naife e psicadélico, e ousamos não ofuscar pelo brilho de “Reflektor” e dos espelhos que invadiam o palco. Desafiando a gravidade e não podendo deixar de sentir, ao longe, os saudosos New Order, saltamos com “Afterlife”, e para não perder o ritmo, recebemos, de braços e ouvidos abertos, “We Exist” e a rockeira “Normal Person”.

Com a congregação rendida ao seu pastor, ainda que sem bíblias de néons, as palmas sublinhavam o andamento de “Keep the Car Running”, havendo condições para dar seguimento à liturgia de “Intervencion”(com uma breve revisitação aos Sex Pistols no final), com direito ao exorcismo negro que é “My Body is a Cage”. De novo à conta de uma luz nascida nos subúrbios, “We Used to Wait” empurra aos almas até ao céu, faz Win Butler correr desenfreadamente pelas laterais do palco, e não é de estranhar que cheguemos a um sítio como “No Cars Go”, um dos momentos mais bonitos da noite.

A celebração não parava, ainda que por vezes fosse necessário reduzir o andamento e “Ocean of Noise” conseguiu recuperar o fôlego para chegar a um bons portos de abrigo como são “Neighborhood #1 (Tunnels)”, cujo riff inicial desperta qualquer coração, e “Neighborhood #3 (Power out)”, que nos fizeram recuar até ao disco de estreia da banda. Mas se “Rebellion” nos manteve em “Funeral”, “Here Comes The Night Time” teve o condão de nos avançar no tempo e transportar para outras reflexões com o palco a ser invadido não por aliens mas pelos cabeçudos que ficaram conhecidos no videoclip de “Reflektor”, obra do mestre Anton Cornijn. O final do concerto, depois de Butler se aventurar junto do público, entretanto premiado com uma chuva de confetti, e receber como recompensa um cachecol de Portugal, fez-se ao som do esperado “Wake Up”, canção que faz disparar uma espécie de orgasmo auditivo e leva-nos a entoar a canção durante, minutos, horas, dias. De alma cheia, resta-nos, portanto, dizer obrigado, pois, bolas, valeu mesmo a pena!

Fotografia: João Lambelho

NOS Alive 16 - Dia 2
Gente comum, pregadores e sacanas à procura do paraíso



A corrida aos bilhetes para o segundo dia desta edição de Alive fez com que o mesmo esgotasse rapidamente. Olhando para o cartaz, diríamos que essa sofreguidão se deveria aos Radiohead mas o dia de ontem teve muito muito para oferecer, especialmente no universo mais indie. Logo nas primeiras horas, a australiana Courtney Barnett chegou, viu, tocou e venceu. O mesmo pode dizer-se de Josh Tillman, aka, Father John Misty que deixou a assistência rendida ao primeiro round e os Radiohead deram um concerto maravilhoso. Pelo meio ainda espreitamos a loucura ora psicadélica, ora stooner, dos Tame Impala e sentimos um breve cheirinho a Foals.

19.20 – Courtney Barnett – Palco Heineken

Ainda longe das 55 mil almas que assistiram ao concerto de Thom Yorke e comparsas, foi com um espaço do NOS Alive ainda respirável que tivemos a honra de ver os primeiros passos da australiana Courtney Barnett por terras lusas. Sem grandes pressões e com uma entrega do tamanho das suas (grandes) canções, Barnett, entre a timidez e o descaramento de carregar e espalhar riffs diretos ao coração de quem a ouve, deu um excelente concerto demonstrando como o quotidiano, dirão alguns, banal, pode ser a inspiração para contar histórias sonoras.

Notava-se que a grande maioria do público que encheu a tenda do palco Heineken não estava lá por acaso. As letras das músicas estavam na ponta da língua e alguns fãs (não é exagero, acredite-se) exibiam cartazes com frases, ou adaptações, das letras da autora de “Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit”, o muito bom álbum de estreia.

“Dead Fox” abriu o concerto de forma tranquila e decidida que subiu alguns degraus na intensidade com “Debbie Dower”, depois de Courtney afinar a guitarra e deixar-nos a salivar por mais das suas confissões suburbanas.

“An Illustration of Loneliness (Sleepless in New York)” foi a senhora que se seguiu e o ritmo algo dolente deu lugar a uma micro jam session que mostra que a miúda de Melbourne, com um estilo entre o (sacrilégio!) grunge e o garage sabe da poda. Já “Small Poppies”, um tour de force sensual com lampejos sónicos, transcende o habitual formato canção da australiana, reclama, «olho por olho, dente por dente», e faz-nos entrar, mais uma vez, numa história, banal, crua, pessoal, à conta de uma bateria, um baixo e uma guitarra que destilam acordes espartanos.

O cortejo foi celebrado com um tímido “Hey, how are you doing?” e respondido com um poderoso aplauso. A comunhão entre quem estava em cima do palco e a assistência atingiu o pico com “Depreston” e “Pedestrian at Best” e os muitos curiosos que passavam junto da tenda do Heineken assentavam arraiais. Seguiram-se “Elevator Operator”, gingona e com direito a momentos de crowd surf, “Avant Gardener” com Barnett a explorar um solo delicioso e, já a apontar para o final da prestação, “Lance Jr.”, uma das faixas mais antigas e solenes da australiana, fez o elogio à subestimação pessoal. O derradeiro suspiro do concerto chegou com a mensagem algo contraditória de “Nobody Really Cares If You Don't Go To The Party” pois todos os que assistiram à prestação de Courtney Barnett sentiram tudo menos indiferença e podem sentir-se felizes por terem decidido sair de casa e ficar ancorados neste mundo privado sublinhado com eletricidade (e paixão) e dedicação à causa “rock”.

Vento, psicadelismo e alguns tropeções

Com sete espaços culturais distintos, o NOS Alive cresceu e esta, que é a sua décima edição, prova que o evento pode, orgulhosamente, ombrear com os maiores festivais do mundo. A organização estimava a presença de mais de 30 mil estrangeiros durante os três dias de festival e isso é facilmente comprovado a cada “esquina”. Enquanto se passeia, olha para o cardápio e se escolhe o próximo concerto, empurrados pelo já habitual vento que teima em visitar o Passeio Marítimo de Algés todos os anos, os choques culturais rasgam-nos o sorriso e ao pedido de um esclarecimento vindo de terras de Sua Majestade paramos junto ao Raw Coreto. Na altura atuavam os The Loafing Heroes, uma aventura joint venture internacional que junta um irlandês, uma italiana, um norte-americana e um português (não, não é o começo de uma anedota…) cujo ambiente se situa entre o hippie e o folk, e ficamos à conversa com um casal de Manchester, adeptos do City, que nos confidenciava que o NOS Alive estava ao nível de, por exemplo, Coachella.

Feitas as despedidas, e quando os Foals faziam ecoar “Inhaler” e se preparavam para despedir da multidão que se tinha juntado no palco NOS, tivemos ainda tempo para assistir a um par de quedas que deixariam muitos futebolistas roídos de inveja mas que dificilmente arrancariam uma grande penalidade. A culpa não é do árbitro mas sim dos enormes tapetes verdes, sem linhas, que já começam a enrolar nas pontas e a apanhar os mais distraídos.

Felizmente que as lesões não foram impeditivas de continuar em jogo e podemos mesmo afiançar a forma destes jogadores pois quem os viu a saltar, cantar e vibrar com os Tame Impala nem sequer se lembraria de tais acidentes. Os australianos foram mesmo como uma espécie de analgésico pois o seu psicadelismo sintético, cruzado com momentos stooner, encheu de euforia os muitos milhares que tiveram oportunidade de assistir a canções como “Let It Happen”, com direito a uma primeira chuva de papelinhos coloridos, “The Moment”, a proporcionar um incauto strip feminino, ou “Elephant”. O ambiente estava bom, o público delirante e entregue, mas tínhamos um compromisso “litúrgico” e o mestre de cerimónias é merecedor de ver a sua congregação reunida a horas.

21.40 – Father John Misty – Palco Heineken

Com a tenda do Palco Heineken muito vazia, situação rara e da qual a prestação dos Tame Impala parecia ser a principal responsável, aguardávamos a prestação de Father John Misty, o mais recente alter-ego de Joshua Tillman, que já nos havia visitado no mesmo espaço, em 2011, mas no papel de baterista dos (grandes) Fleet Foxes. O palco, preparado com uma cortina em tom escarlate, rapidamente se encheu com a presença do esguio Tillman que, sem demoras e desde o primeiro momento do concerto, agarrou o público e o seduziu com mestria e como bem o quis.

Qual pregador, Tillman, de fato trajado, dono de uma voz que vagueia entre o doce e o “gutural”, agarrou-se a “Hollywood Forever Cemetery Sings” como se fosse a última prestação da sua vida, tal a notória dedicação. Dramático e num mundo só dele, mas no qual tivemos a honra de entrar, o norte-americano parte a loiça toda com “When You're Smiling and Astride Me”, tema do álbum “I Love You Heneybear” e do qual foi retirada a maioria das canções da noite. Tal como diz o poema cantado, vemos Tillman como ele é, uma alma apaixonada, que dança, seduz, e se ajoelha perante a música e o público. Uma toada calma ajuda o artista a entrar no papel de crooner e “Only Son of the Ladiesman” leva-nos para ambientes mais indie folk a lembrar uma certas raposas enquanto “Nothing Good Ever Happens at the Goddamn Thirsty Crow” molda a atmosfera com pinceladas mais blusy.

De coração partido, e com o público rendido total e incondicionalmente a um grande concerto, “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)” volta a trazer fantasmas dos Fleet Foxes e a seguir, apenas na companhia de um piano, “Bored in the Usa” é responsável por um dos momentos de maior partilha entre público e banda através de um coro “certinho”. Entretanto, a tenda vazia deu espaço a uma bem composta assistência ainda que alguns olhassem para o relógio, pois os Radiohead tocavam daqui a pouco.

Mas a coisa estava tão boa que abandoná-la seria, lá está, um pecado capital. Indiferente a essa hesitação, e confessando a sua pouca habilidade para comunicar com o público, Joshua Tillman destilava ódios e deceções com “Holy Shit” e, depois, “True Affection”, de arranque levemente eletrónico, demostraria uma faceta mais pop coroada com uma descida do homem, cujo espírito lembra aqui e ali Nick Cave, não ao inferno mais sim perto de um público que o agarrou, abraçou e agradeceu. O final do concerto aproximava-se e em ritmo country afolkalhado “I'm Writing a Novel” abriu caminho para o dramático “I Love You, Honeybear”. O final do espetáculo fez-se com a mais agitada “The Ideal Husband”, e podemos dizer que muitos corações femininos não desdenhariam esposar o rapaz Tillman, espelho do desalinho barbudo, responsável por um dos momentos mais intensos do segundo dia do festival.

22.45 – Radiohead – Palco NOS

A recente edição de “A Moon Shaped Pool” deixou muitos dos fãs dos Radiohead surpreendidos. Ainda que a banda de Thom Yorke, Jonny Greenwood, Colin Greenwood, Ed O'Brien e Philip Selway nos tenha habituado a surpresas e a algumas manobras de mercado que ousam desafiar os seus normais cânones, é sempre com muita ansiedade que se recebe um disco criado pelo quinteto que assinou alguns dos trabalhos mais importantes das últimas décadas e que ousam desafiar e reconstruir o seu som destruindo barreias e fronteiras (sabiamente) por si criadas.

De forma apaixonada, por vezes até matemática mas nunca alvo de facilitismo, os Radiohead construíram uma história especial e lograram reunir um séquito de seguidores acérrimos, e foi isso que se sentiu ao longo de mais de duas horas de um extraordinário concerto cujo palco transformado e decorado com espírito cinematográfico seria poiso de um dos melhores filmes da história de todas as edições do festival Alive.

A viagem começou inteiramente dedicada ao já referido “A Moon Shaped Pool” com a banda a respeitar inclusive a ordem de apresentação do disco. Assim, a pujante “Burn the Witch”, e as seminais “Daydreaming” e “Decks Dark” faziam crescer uma entrega e comunhão entre banda e público que nunca se desfez, e logrou mesmo momentos de puro êxtase lá mais para o final da atuação. A colheita do álbum de 2016 continuou com o puro exorcismo que é “Desert Island Disk”, numa apresentação acústica a apelar a momentos de acalmia anterior a fazer a nossa mente recuar até aos momentos mais reflexivos de Jim Morrison e companhia. “Full Stop” continuaria essa demanda mas agora com sinais mais sónicos a mostrar que o caminho da evolução se faz com quebras e ruturas evitando assim o marasmo da monotonia.

Em territórios mais pop, “My Iron Lung” fez despertar sentimentos mais letárgicos e recuou até aos momentos mais próximos de casamento perfeito de que as guitarras já foram sinónimo quando falamos de Radiohead. “Talk Show Host” faz regressar um certo sentimento quebrante e ligeiramente swingante carregando de batidas que aliam na perfeição baixo, bateria e elementos eletrónicos, situação semelhante acontecendo com a muito bem acolhida “LotusFlower”, retirada de “The King of Limbs”.

A música soa límpida, direta ao coração, e para isso é decisiva a entrega dos músicos e especialmente do frontman Yorke, hoje a personificação de um comunicador bem na sua pele, que ousa “dançar” e desafiar o público com algumas interjeições em detrimento de uma qualquer tentativa de diálogo.

Alvo de muitas versões mix, “The Gloaming”, safra de “Hail to the Thief”, traz uma tensão crescente carregada de dub que se viu atenuada com “Exit Music (To a Film)”, uma das pérolas de “Ok Computador”. O público agradeceu, fez silêncio e cantou de si para si, o mesmo acontecendo com “The Numbers” e “Identikit”, novas entradas em “A Moon Shaped Pool” e dois dos seus exemplos mais doces, ternos e cheios de alma. “Reckoner” traz “In Rainbows” à praça pública e “Everything in its Right Places”, recebida em delírio, anuncia “Kid A” e “Idioteque” que fazem os corações disparar. Canta-se, grita-se, vibra-se, chora-se. A música entra em nós e fica. E porque não saltar ainda mais alto? É isso que se faz à conta de “Bodysnatchers”. Antes da primeira paragem para abastecer energias, “Street Spirit (Fade Out)” faz-nos ir a um baú chamado “The Bends” que voltaria a ser aberto um pouco depois.

Sob uma estrondosa ovação, a banda sai de palco para entrar pouco depois. Tínhamos direito a encore, coisa rara nestes dias de Alive. O regresso foi sinónimo da ensimesmada e eletrónica “Bloom” - que algures no meio do público motivou um especial pedido de casamento com direito a anel -, logo seguido de “Paranoid Android”, “Nude”, da errónea soma de “2 + 2 = 5” e “There There”, ambas de “Hail to the Thief”.

Depois de duas horas de concerto, os Radiohead saíram mas voltariam com duas enormíssimas surpresas. Se se dissesse que se ouviria “Creep” e “Karma Police” na noite de ontem poucos acreditariam, principalmente Sharon, a inglesa que ao nosso lado, emocionada, afirmava que já tinha visto os Radiohead uma mão-cheia de vezes e nunca tinha ouvido o tema retirado de “Pablo Honey”. Estes dois últimos momentos, cantados apenas e a uma só voz, figuras angelicais incluídas, arrepiam, marcam e deixam sequelas, das boas, pois todos, mas todos os que assistiram a este concerto, pertenciam ou partilharam um mesmo lugar: o paraíso.

Fotografia: João Lambelho

In Palco Principal

NOS Alive 16
Dia 1 Há química entre nós


Quando no início da semana as informações meteorológicas avançavam com a possibilidade de chuvas e trovoada para o dia que abria a 10ª edição do Festival NOS Alive, tememos que os deuses estariam de costas voltadas para com as dezenas de milhar de almas que invadiram o espaço, renovado e agora em tons verdes, do Passeio Marítimo de Algés. Mas não, o sol tomou conta do dia e, à boleia do astro-rei, vivemos mais um dia memorável no que a concertos diz respeito.

A única tempestade sentida foi a da emoção pura com a energia rock dos Biffy Clyro, a abordagem ora intimista ora eletrónica de John Grant, a boa surpresa em tons teen dos Wolf Alice, a habitual e despachada mestria dos Pixies, e a festa em forma de rave dos The Chemical Brothers. Tivemos ainda tempo para ver sósias geek de Cristiano Ronaldo, elementos de uma boémia claque belga, alguns alemães cabisbaixos e a amizade crescente entre o Wally e uma galinha. Afinal, tudo, ou quase, pode acontecer no NOS Alive.

19.25 – Biffy Clyro – Palco NOS

Na véspera de estrearem “Ellipsis”, o seu sétimo álbum, o trio escocês Biffy Clyro deu um (esperado) bom concerto, misturando aceleradas doses de um rock rasgadinho com momentos mais calmos, havendo espaço para reviver “velhos” clássicos e mergulhar de caras em novas canções. E foi mesmo com o primeiro single de “Ellipsis”, “Wolves of Winter”, que Simon Neil, James Johnston e Ben Johnston abriram um espetáculo que durou pouco mais de uma hora. Como habitualmente, Neil, exibindo um tronco nu e coberto de tatuagens, puxava por um público ainda contagiado pela luz do dia e algo contido, e mostrava como três velhos amigos podem fazer um bom rock and roll.

Aos poucos a energia da guitarra, baixo e bateria foi afastando a letargia que se vivia no enorme tapete verde instalado à frente do palco NOS com canções como “Victory Over the Sun”, retirado de “Opposites”, ou o clássico “Bubbles”, de “Only Revolutions”. Explorando, e bem, toda a sua discografia, os Biffy Clyro lançaram-se às feras com momentos de acalmia como “Mountains” ou a mais operática e orelhuda “The Captain”. A sintonia e simpatia que emanava no palco encontrava eco na multidão que se avolumava em frente ao palco e não foi com espanto que se cantaram, em uníssono, temas como “Black Chandelier”, “Machines” ou “Living is a Problem Because Everythings Dies”, e já no final do concerto, “Sounds Like Ballons” ou “Many of Honour”. Não que tivessem de o provar, os Biffy Clyro são um trio coeso, fundado na amizade mútua e no prazer de tocar e dar concertos e deixar a sua marca, não sendo por isso de estranhar que Simon Neil, orgulhoso, tenha acabado o espetáculo a agradecer e a gritar bem alto: «We are Biffy fucking Clyro!»

20.45 – John Grant – Palco Heineken

Ainda com os riffs dos Biffy Clyro na corrente sanguínea, corremos até a um Palco Heineken muito bem preenchido, e não foi preciso esperar muito para ver John Grant a assumir os comandos da tenda com o seu som misto de batidas eletrónicas com momentos mais introspetivos e baladeiros. De calções e t-shirt, foi um descontraído e bem-disposto Grant que “atacou” o público com um agitado “You and Me” para, logo de seguida, acalmar o ritmo, mas não a emoção, com duas canções mais negras como o são “Sigourney Weaver”, a dedicatória sentida à atriz que protagonizou a saga “Alien”, tema retirado de “Queen of Denmark”, e “Grey Tickles, Black Pressure” do disco homónimo lançado em 2015.

Já num ritmo mais próximo daquilo que David Bowie fazia nos anos 90, misturando beats eletrónicos com um rock espacial e algum espírito funk, “Voodoll Doll” devolvia a agitação ao palco Heineken. A sempre épica e doce “Glacier” encheu o público de uma emoção transbordante, o mesmo acontecendo, já perto do final da prestação do norte-americano, com “GMF”, de “Pale Green Ghosts”. A atuação terminaria com o público a dançar ao som de “Disappointing”, sem Tracy Thorn, infelizmente, mas cheio de alma, ou devemos dizer soul?

Escolhas e algum descanso

Como se de uma prova de obstáculos de tratasse, um festival exige sacrifícios e opções. Seguimos um caminho longo ou procuramos um atalho? Independentemente do trilho precisamos de algum tempo para recuperar forças. Foi isso que fizemos entre os concertos de John Grant e Pixies e, felizmente, tivemos o bom senso, e a sorte, de assistir aos momentos iniciais do concerto dos Wolf Alice que genuinamente surpresos com tamanha e calorosa receção não perderam tempo e dispararam “Your Love’s Whore” e “You’re a Germ”, dois exercícios pejados de guitarras bem secundadas por um coeso duo entre bateria e baixo e uma voz deliciosamente frágil.

Com pena nossa já só ouvimos os primeiros acordes de “Bros”, pois já estávamos a caminho do palco NOS mas fica a promessa que a próxima visita dos Wolf Alice terá honras de especial atenção.

22.45 – Pixies – Palco NOS

Entretanto era tempo de ver, mais uma vez, o regresso dos Pixies a terras Lusas. Longe vão os tempos da sua fantástica e esperada estreia no Coliseu dos Recreios no raiar da década de 90, mas é sempre um prazer sentir a energia do quarteto agora formado por Black Francis, Joey Santiago, David Lovering e, por enquanto, Paz Lenchantin. E tal como na noite memorável de 13 de junho de 1991, aquilo que ontem ouvimos e sentimos do Passeio Marítimo de Algés foi um verdadeiro desfile de adrenalina cuja empatia se faz única e exclusivamente através da música pois a verbalização dos Pixies é feita via guitarras, bateria e baixo, remetendo as palavras para as poesias das canções. Sem demoras “Bone Machine” irrompe do palco NOS e a multidão acolhe com fervor todos os acordes possíveis. Seguem-se, sem interrupções, “Head On”, habitual versão dos The Jesus and the Mary Chain, e “Wave of Mutilation”, esta última cantada com um coro de milhares de vozes, o mesmo acontecendo com a deliciosa e pejada de baixo, “Subbacultcha”.

Houve tempo para percorrer toda a discografia da banda mas os momentos com maior frieza por parte do público aconteciam quando o quarteto abordava as canções mais recentes como “Baal’s Back”, “Snakes” ou “Greens and Blues”. Exceção a essa momentânea apatia foram “Indie Cindy” ou a novíssima e algo mariachi “Um Chagga Lagga”. Para reaquecer as turninas, “Velouria”, “Monkey Gone to Heaven”, “Levitate Me”, “Tame” e “Gouge Away” não davam descanso a uma audiência composta por velhos e novos fãs da banda.

Empenhados, como habitualmente, os Pixies aumentaram a fasquia emotiva na parte final do concerto com Joey Santiago a atacar a guitarra de forma tão veemente que nem um pequeno contratempo técnico em “I Bleed”, que levou a uma rápida troca de instrumento, estragou o momento. Na derradeira parte do concerto, o quarteto ofereceu clássicos como “Tame” ou “Vamos” (com Santiago a sacar sons e feedbacks da sua guitarra de várias formas, pedindo mesmo emprestada uma baqueta a Lovering) mas foram “Where is My Mind” ou “Here Comes Your Man” que deixaram em êxtase todos os que estavam no palco NOS. A festa terminou com mais três grandes canções: “Caribou”, “Debaser”e “Rock Music”.

01.00– The Chemical Brothers – Palco NOS

Quando “Hey Boy Hey Girl” ecoou, sublinhado pelos néons verdes que emanavam do palco, muitos foram os que correram para ver e ouvir melhor o chamamento de Tom Rowlands e Ed Simons. Com um misto de admiração e satisfação dizia quem assistia ao concerto dos britânicos: «bolas, se começam assim isto vai bombar!”». E assim foi, sem paragens para respirar pois a britânica e maquinal dupla fechou a noite do palco principal com um concerto excelente. Ao longo de cerca de hora e meia, dançou-se ao som de clássicos como “Go”, “Do it Again”, “Galvanize”, “Star Guitar” ou “Setting Sun”.

Certos de que o casamento entre a imagem e o som é o caminho para a conquista da audiência, os milhares que ousaram ficar até ao início da madrugada no NOS Alive viram a mente invadida por criações que ganhavam vida podendo mesmo transformar-se, num ato de eletrónica magia, em balões. O (grande) final do concerto fez-se ao som do hit “Block Rocking Beats” e todos puderam seguir o caminho de casa com a alma cheia. Os mesmos que tanto se espantaram com o início do concerto confessavam que, finalmente, cumpriram a promessa de ver os The Chemical Brothers depois de uma inesperada situação que os impediu de abraçar a edição de 2011 do Alive que ainda se denominava Optimus. Vemo-nos daqui a cinco anos?

Fotografias: João Lambelho

In Palco Principal

terça-feira, 5 de julho de 2016

“Ouve a Canção do Vento / Flíper”
de Haruki Murakami

Senhoras e senhores, eis o Rato


Os primeiros passos de Murakami enquanto escritor ou aspirante a tal, aconteceram no final da década de 1970, ainda o jovem Haruki centrava quase todas as suas energias ao serviço do clube de jazz que geriu com a sua companheira. O bichinho da escrita já assaltava a alma do japonês e, nas horas vagas, à mesa da cozinha e de esferográfica em punho, atacava maços de folhas em branco.

A medo, e depois de muita hesitação, lá nasceram os primeiros rebentos literários de Murakami que (só) agora chegam às nossas livrarias. Reunidas num mesmo livro, “Ouve a Canção do Vento” / “Flíper, 1973” (Casa das Letras, 2016), são duas singelas fábulas, a resvalar para um território surreal e intimo, que centram as suas narrativas no quotidiano de dois jovens que se conhecem num bar. Tanto o narrador sem nome como Rato vivem fases algo niilistas e sentem a vida a escapar-lhes pela ausência de um sentido inequívoco.

Nestes dois romances – que serviram como génese da tetralogia do Rato, que além destes títulos junta “Em Busca do Carneiro Selvagem” e “Dança, Dança, Dança” – são servidos de bandeja personagens como escritores nascidos de uma fértil imaginação, uma rapariga com quatro dedos na mão esquerda, o dono de um bar que abre o seu espaço, e coração, para as mais diversas confissões, um par de misteriosas gémeas, obsessivos especialistas em máquinas de flipers, gente que come panquecas com refrigerantes, DJ’s com soluços, sem nunca esquecer um universo musical tão caro à pessoa de Murakami.

No caso de “Ouve a Canção do Vento”, Murakami oferece-nos uma quase narrativa linear cujo espaço temporal não se estende além das três semanas, algures no verão de 1970, onde dois jovens se conhecem no bar de Jay, um chinês de semblante tranquilo. O nosso narrador, sem nome, um leitor compulsivo de romances ocidentais, armado com tiradas intelectuais nonsense, trava conhecimento com Rato, um playboy, rico, que se refugia no consumo de cerveja para encontrar o seu caminho. Pelo caminho surge uma rapariga que trabalha numa loja de discos e é fã de Beach Boys. A narrativa, tem como pontos em comum uma certa interação entre estas três figuras explorando, em ritmo de cruzeiro, as dúvidas de uma juventude inquieta.

Ainda que nenhum destes personagens seja esculpido de forma irrepreensível, têm adjacente uma existência unidimensional que pode, a espaços, situar-se no limbo entre a plenitude e um sentimento vago pois “Ouve a Canção do Vento” é pensado como uma abordagem livre face à ideia de romance. Apesar disso, as páginas fluem e existe uma sensação de etéreo desejo que torna o seu todo elegante, com diálogos espartanos e casuais e o recurso a manobras musicais que sublinham uma certa tendência da sobreposição do estilo face à substância.

Sob o mesmo contexto e filosofia, “Flíper” volta a trazer a palco o narrador sem nome e Rato mas a sua contextualização parece estar mais próxima da esfera literária com que Murakami nos conquistou nos romances seguintes. Lançadas as sementes, temos duas estórias paralelas, personagens movidos a cerveja e tabaco, cuja apatia é combatida de fronte de uma máquina de flipers, metáfora para uma certa noção de solidão travada à custa de luzes néon, bolas extras e recordes imbatíveis.

Existe também um ser feminino à procura das frases certas, gatos, referências a cozinhados, música e discos pedidos e perdidos, livros, perseguições a máquinas de jogos desaparecidas (a velha Space-ship…) como descrições da Natureza e dos desejos humanos, figuras tão caras aos (magníficos) romances assinados por Murakami.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 4 de julho de 2016

“The Coulour in Anything”
de James Blake

Num labirinto chamado solidão


Aos primeiros acordes fantasmagóricos de “Radio Silence”, faixa que abre “The Coulour in Anything”, entramos numa espécie de letargia e cresce um sentimento que remete para um espaço íntimo, escuro e tranquilo, no qual queremos ficar.

Construída num edifício frágil cujos alicerces estão fixos através de várias camadas de uma confortável sensação de solidão, a música de James Blake, tal como a sua voz, é algo que se entranha, é uma sensação que mistura momentos de hesitação, alguma (contida) agitação e um sufoco musical que torna a audição num ato de redenção.

É esse o ponto de partida (e chegada) da música de James Blake, uma expressão impressionista onde a voz emerge de um som profundo construído com laivos ambientais, lo-fi e R&B, em modo semiautomático e pejado de efeitos emocionais em busca de uma aceitação, um conforto.

Não será portanto inocente a seguinte afirmação feita na já referida composição que abre este que é o terceiro longa duração do músico britânico: «I can’t believe that you don’t want us», enquanto, como elementos contextualizantes, somos invadidos por efeitos buzz, alguma estática e uma batida dolente, sublinhada por dolorosa e apologética poesia, que irradia uma atmosfera quase violenta, no limiar da saturação.

Este processo de contínuo desafio de aceitação iniciou-se em 2011 com “James Blake”, a estreia homónima do autor de canções como “Retrograde” ou “Limit to Your Love”, e principalmente “Overgrown”, disco editado há três anos e cuja digressão teve honras de sessão na edição do NOS Alive de 2015.

Para os fãs de sempre de Blake, as características acima descritas encaixam na perfeição naquilo que conhecem da arte do compositor londrino e revelam, mais uma vez, uma habilidade para “esconder” uma qualquer timidez em assumir um território confortável para muitos e que tem como fonte de inspiração a desolação, tal como acontece no universo de nomes como The XX ou FKA Twigs, esta última já “vítima” da mestria de James Blake na produção.

Tanto em causa própria como ao serviço de terceiros, Blake estende as redes da sua inspiração num particular vazio, preenchendo os espaços em branco, entendam-se silêncios, com batidas suspirantes e suspiradas e palavras entre o cantado e o sussurro que revelam a alma de um crooner desolado.

“Love Me in Whatever Way”, é um claro exemplo disso, onde o som navega à tona de um mar tranquilo pautado por ondas surreais, a meio caminho entre o sonho e o pesadelo, e que resulta numa grande canção. Mais orgânica, "f.o.r.e.v.e.r." é uma balada ao piano, onde o falsete da voz de Blake derrete o coração mais empedernido e eleva a sua flexibilidade de estilo.

Na sua essência, “The Colour in Anything” tem um perfil mais limitado que os discos anteriores, sem que isso retire qualquer sentido de brilhantismo e isso talvez esteja associado ao facto de a lista de colaboradores incluir nomes como Rick Rubin, responsável por uma estrutura mais pop, pontualmente mais agressiva comparativamente com o que aconteceu em “Overgrown” cuja participação de Brain Eno moldou palcos mais contemplativos. E já que falamos de alguns dos colabores que ajudam Blake nas suas desventuras sonoras, “The Colour in Anything” conta com a ilustre participação de Frank Ocean em “My Willing Heart” e “Always” ou Justin Vernon, o mentor dos Bon Iver, em "I Need A Forest Fire" e "Meet You in the Maze", derradeiro suspiro do álbum, curiosamente ou talvez não dois dos momentos mais cristalinos de um bom álbum mas que, ainda assim, fica uns furos abaixo de “Overgrown”.

As 17 canções do alinhamento representam mais de 76 minutos de (boa) música mas, pontualmente, Blake deixa-se envolver de tal maneira na forma que compromete o conteúdo. Em “Points” ou Timeless”, por exemplo, o exercício sonoro criado e murmurado adiciona (supérfluas) camadas direcionais mais que não chegam a um esperado clímax.

Sabendo o que vale e pode dar James Blake, elevam-se as expectativas e quando se ouve um álbum como “The Colour in Anything” queremos ainda mais. A pressão intrínseca da sua própria criação leva a uma tentativa de reinvenção na busca da perfeição em forma de canção pop com um perfil que mistura Soul, R&B e eletrónica e, tendo em conta o seu passado, acreditamos sempre que o próximo passo seja a tal obra-prima que tanto se deseja. Mas enquanto a esperamos, deixemo-nos envolver por os já criados passos que nos levaram a tão desejado fim.

Alinhamento:
1. Radio Silence
2. Points
3. Love Me in Whatever Way
4. Timeless
5. f.o.r.e.v.e.r.
6. Put That Away and Talk to Me
7. I Hope My Life
8. Waves Know Shores
9. My Willing Heart
10. Choose Me
11. I Need a Forest Fire
12. Noise Above Our Heads
13. The Colour in Anything
14. Two Men Down
15. Modern Soul
16. Always
17. Meet You in the Maze

Classificação do Palco: 7,5/10

In Palco Principal

“Dominus”
de Tom Fox

Rápido, intrigante e certeiro


É possível escrever um livro, um enredo, com os mesmos ingredientes de tantos outros e mesmo assim tornar o seu resultado bem acima das expectativas? Sim, é possível e é isso que o britânico Tom Fox conseguiu com “Dominus” (Topseller, 2016), a sua primeira aventura enquanto escritor e que resulta da soma de um profundo conhecimento académico dos meandros do Cristianismo com os predicados de um bom (e rápido) policial.

Tudo começa quando um estranho, «com calças de ganga gastas e uma camisa cinzenta, ligeiramente amarrotada», rompe pela apinhada Catedral do Vaticano num dia em que o Papa Gregório XVII celebra uma missa e pede ao sumo pontífice que se levante da sua cadeira de rodas que o prendia a um debilitante calvário assombrado pela doença de uma vida inteira.

A medo, e com todos de olhos postos neste peculiar acontecimento, o Papa levanta-se e dá-se o inesperado. Roma fica em polvorosa e as opiniões dividem-se sobre a veracidade do milagroso acontecimento que poderá colocar em causa toda a legitimidade de Igreja Cristã. A par disso, surgem cabalas entre homens do capital e clérigos cujo único objetivo é desacreditar o Papa.

É então que entram em cena a dupla Alexander Trecchio, um ex-padre que se tornou jornalista, e a detetive Gabriella Fierro, dando início a uma destemida e perigosa investigação que tem como objetivo encontrar uma explicação que acalme um país à beira de um ataque de nervos.

À medida que a dupla se embrenha na sua demanda, surgem verdades inesperadas e segredos que podem colocar, definitivamente, em causa o próprio o catolicismo, uma religião cada vez mais cercada por uma crescente horda de inimigos.

Com uma narrativa acelerada e com todos os predicados para manter o leitor agarrado à trama, “Dominus” é um thriller inteligente, e convincente, que coloca o dedo numa das maiores feridas da Igreja Católica: a gestão dos chamados “milagres de conveniência” que ajudam a manter a estrutura da instituição viva e que alguns reclamam não ser mais do que um jogo de interesses essencialmente económicos.

Vivamente aconselhado a fãs de Dan Brown, Simon Toyne ou José Rodrigues dos Santos, “Dominus” leva-nos para o interior dos corredores privados do Vaticano abrindo os horizontes da nossa imaginação enquanto leitores de um universo “mágico” e construído à base de uma mistura de factos e observações que encontram um crescendo à medida que as páginas avançam.

Com uma fórmula de sucesso, Tom Fox consegue no seu romance de estreia agarrar por completo o leitor que vai salivar por mais aventuras da dupla Alexander e Gabriella.

In Rua de Baixo

Mania da Bola

“Eusébio, o Romance” de Sónia Louro /
“Relato – Histórias de Futebol” de Hugo Vinagre e Tiago Beato

Todos os anos a história repete-se. Termina o campeonato, contam-se os títulos, as frustrações e as invejas, sentimento tão caro aos portugueses, e, tudo somado, as conversas sobre futebol ocupam a ordem do dia de muitos de nós.

Em ano de Campeonato da Europa, e Jogos Olímpicos, esse sentimento cresce e o desporto, direta ou indiretamente, invade-nos de várias formas. E um pouco à boleia dessa tendência, surgem nos escaparates livros que espelham essa paixão.


“Eusébio, o Romance”, de Sónia Louro, e “Relato – Histórias de Futebol” da autoria de Hugo Vinagre e Tiago Beato, ambos com selo Saída de Emergência, são dois (bons) exemplos dessa aposta.

No primeiro caso, Sónia Louro, conta, de forma romanceada, a vida desportiva do Eusébio, desde os tempos do Mufalala, em Moçambique, até à sua última aventura nos Estados Unidos da América ao serviço dos Buffalo Stalions, além de, obviamente, versar bastante sobre o percurso do “Pantera Negra” com a camisola do Benfica.

Somos assim convidados a testemunhar todas as emoções sentidas por Eusébio e a pesquisa realizada por Sónia Louro levou a autora a vasculhar memórias diversas por entre artigos, livros e vídeos, além das indispensáveis conversas com antigos companheiros de campo do moçambicano como, por exemplo, António Simões e Toni, ambos jogadores do Benfica e que testemunharam a magia do craque, e ainda com os familiares do “King”. Apesar disso, Sónia Louro opta por nunca entrar em demasia na esfera privado de Eusébio mantendo um registo dinâmico que tona a narrativa muito atraente não só para quem gosto da figura em causa mas também de um bom livro.


Já em “Relato – Histórias de Futebol”, a dupla de jornalistas Hugo Vinagre e Tiago Beato convidam o leitor a ver os dois lados da barricada: os heróis do relvado e os fervorosos adeptos de bancada.

Ao todo, Vinagre e Beato apresentam-nos mais de 100 histórias nascidas de momentos caricatos, atos de verdadeira coragem ou situações dignas de um filme de Hollywood. Do lado das estrelas da bola, Futre lembra os dias com a camisola do dragão ao peito e da incontornável figura de Pinto da Costa, João Vieira Pinto confessa o caricato ato negocial que foi a sua transferência do Boavista para o Benfica, Balakov brinca com a confusão que a equipa técnica do Sporting sentia sobre a sua posição em campo e António Veloso recua ao passado e fala de um certo camarada guarda-redes que sonhava ser como Julio Iglesias.

Na “equipa” dos treinadores de bancada, ou de banco mesmo, e de “loucos” por futebol, o plantel também está rodeado de vedetas. Assim, saiba como foi a primeira experiência enquanto jogador de Carlos Vidal, o eterno Avô Cantigas, quando pisou Alvalade, que memórias tem Jorge Gabriel dos seus primeiros passos enquanto treinador adjunto do Arouca, a paixão que a seleção nacional desperta em Luís Freitas Lobo ou um pedacinho das atribuladas, e perigosas, aventuras de Rui Miguel Tovar com o seu pai pelos campos de Portugal.

In Rua de Baixo