segunda-feira, 30 de março de 2015

“O Endurance – Encurralados no Gelo”
de Caroline Alexander

Ode à sobrevivência


Com trabalhos publicados em revistas de referência como The New Yorker, Granta, Condé Nast Traveler, Smithsonian, Outside e National Geographic, a norte-americana Caroline Alexander conta também no seu currículo com obras como “One Dry Season”, “The Way to Xanadu, Battle’s End”, “Mrs. Chippy’s Last Expedition” e foi curadora da exposição “Endurance: A Lendária Expedição de Shackleton”, que percorreu os Estados Unidos da América.

É esse último trabalho que inspirou Alexander a fazer nascer “O Endurance – Encurralados no Gelo” (Planeta, 2014), uma amálgama entre relato de viagem e um álbum com maravilhosas fotografias de Frank Hurley, fotógrafo australiano que registou a aventura do famoso explorador Ernest Shackleton que acompanhado por uma tripulação de 27 homens, rumou em direção ao Atlântico Sul em busca do último prémio ainda não reclamado da história da exploração polar: a primeira travessia a pé do continente antártico.

Esta viagem desafiante foi feita a bordo do navio “Endurance” e teve início em 1914. A cerca de 80 milhas do destino, o navio foi vítima da superfície gelada e ficou encurralado. Ainda resistiu algum tempo, servindo de porto de abrigo para a tripulação, mas a natureza brutal do local obrigou os homens a improvisar um acampamento no gelo.

Foi nesse contexto que Hurley conseguiu impressionantes imagens que ilustram a narrativa emocionante descrita de Caroline Alexander em forma de “diário de bordo”. O fato das imagens – sejam elas de momentos quotidianos da tripulação, da paisagem, dos fiéis amigos de quatro patas da tripulação, de retratos, do resistente e teimoso “Caird” ou de singulares torneios de cortes de cabelo – terem conseguido resistir à passagem dos anos, deu origem um dos mais impressionantes relatos em forma de livro sobre a resistência do ser humano face a condições adversas.

Entre as muitas dificuldades, Shackleton e alguns dos seus camaradas foram, por exemplo, obrigados a recorrer a um bote salva-vidas e empreender uma alucinante viagem marítima acabando por avistar a Ilha Elefante, destino que permitiu uma caminha terrestre na busca de ajuda.

Em conjunto, texto e imagem recriam a beleza terrível da Antártida, a destruição do navio e a heroica luta diária da tripulação pela sobrevivência, um milagre tornado possível pela liderança inspiradora de Shackleton. Embora a expedição não tenha atingido o seu objetivo, constitui, indubitavelmente, uma incrível odisseia de sobrevivência e, como tal, Shackleton é hoje visto como o paradigma do líder carismático que sempre soube colocar as vidas humanas acima dos sonhos de glória.

Através de um discurso que mescla a terrível provação de almas perdidas no vazio da esperança com a crescente emotividade de uma qualquer luz ao fundo do túnel, Caroline Alexander organiza um livro notável de leitura apaixonante sobre 22 meses de provação e constantes desafios de superação diária.

In Rua de Baixo

“Dora Bruder”
de Patrick Modiano


Muita da literatura do século XX teve como “inspiração” o abominável período da Segunda Grande Guerra. Mestres como o italiano Primo Levi e o húngaro Imre Kertész, ambos judeus, deixaram obras que reflectiam e expiavam, de forma sublime, o Holocausto.

Dono de uma obra que contempla mais de trinta títulos editados, entre romances, livros infantis e guiões cinematográficos, o francês Patrick Modiano, o mais recente vencedor do Nobel da Literatura, enquadra-se também no nicho de Levi e Kertész e, “Dora Bruder” (Porto Editora, 2015), é um livro que faz jus aquilo que a academia sueca entendeu estar na base da sua escolha: «a arte da memória que utilizou para evocar os destinos humanos mais inalcançáveis e para revelar o universo da ocupação».

“Dora Bruder” é um hino à lembrança dorida, a feridas que teimam em não sarar. A narrativa fala-nos de alguém que em 1988 descobre, nas páginas de um exemplar do jornal Paris-Soir – datado de dezembro de 1941, período da ocupação nazi em França -, o anúncio sobre uma rapariga desaparecida. Homem e rapariga “partilharam”, no passado, as mesmas ruas, locais, espaços, vivências.

Essa conexão motiva esse alguém, no caso o próprio Modiano, nascendo assim, espontaneamente, laços entre a desaparecida Dora e o escritor que passa a “procurar” o paradeiro da menina judia, para saber a história de mais uma terrível vítima da guerra, do desespero, do destino.

Convém esclarecer que não estamos perante um livro que segue a normal narrativa de um “simples” romance. Patrick Modiano constrói “Dora Bruder” como um objecto literário assente em memórias, pensamentos vagos, memórias de familiares, cartas, fotografias, suposições e um forte sentido de desconhecimento face aos acontecimentos que traçaram o destino da menina. O resultado é um livro melancólico, escrito em forma de relato onde a burocracia e a esperança são ferramentas que podem, eventualmente, indicar o caminho certo de uma verdadeira perseguição (desolada) a um fantasma.

Quase como um detective, Modiano procura a parisiense Dora Bruder, filha de Ernest Bruder e Cécile Burdej, nascida a 25 de fevereiro de 1926. O ponto de partida são esses dados, encontrados em assentos de nascimento, relatórios policiais e, claro está, nas ruas de Paris. Para contextualizar a busca, o escritor “revive” a sua adolescência, as memórias dos pais e encontra paralelos entre as vidas das famílias Bruder e Modiano.

O sentimento de vazio que se inala ao respirar (e sentir) as linhas de “Dora Bruder” deixa ao leitor uma sensação tocante de perda. Modiano escreve sobre a sua demanda: «Eu não sei, nunca saberei». Apesar desse desabafo, ao folhear este livro somos levados a crer que conhecemos Dora, ainda que apenas saibamos a sua antiga morada e conheçamos dados soltos de burocracia sobre o seu internato, prisão e deportação.

Modiano consegue, como que por magia, fazer-nos sentir cúmplices do vazio da vida de Dora Bruder. As muitas referências ao conteúdo de cartas, entretanto trocadas e descobertas, transmitem paradoxalmente laivos de esperança e desespero. São esses os muitos fantasmas que marcam este livro, luzes que ora iluminam ora enegrecem o paradeiro de Dora Bruder.

Na página 31, Modiano confessa: «Ao escrever este livro, lanço apelos, como sinais de farol, mas infelizmente custa-me a acreditar que possam vir iluminar a noite». Mais do que querer apagar da memória um passado triste e incompreensivelmente real, o escritor transforma a sua busca numa forma de redenção, de paz interior. Este pequeno grande livro tem o dom da verdade, crua e dura, uma mensagem que nunca é demais ser conhecida, de um dos períodos mais negros da humanidade, de uma espécie de inverno (ou inferno) temporal.

In deusmelivro

“A Guerra da Guiné”
de António Trabulo


Os números diferem consoante a fonte, mas estima-se que perderam a vida na Guerra Colonial Portuguesa mais de oito mil pessoas. Jovens que partiram para o desconhecido, para um conflito que não era deles mas que, pela pátria, sacrificaram-se, deram o melhor, a milhares de quilómetros de distância, no Portugal Ultramarino.

Passadas cerca de cinco décadas, muitas das feridas daqueles que combateram no Ultramar continuam por sarar, abertas, no corpo e alma dos ex-combatentes. Além disso, ficaram histórias por contar, peças que continuam por encaixar num puzzle que deixará marcas na cronologia recente – e futura – do país.

É essa “contextualização” que António Trabulo faz em “A Guerra da Guiné” (Editorial Cristo Negro, 2014), um livro em forma de “diário de bordo” onde o ex-neurocirurgião lembra as operações militares no campo, ao mesmo tempo que destaca o perfil de alguns dos personagens principais da guerra, traçando um panorama social da África antes da independência portuguesa.

De forma imparcial e fruto de uma cuidada investigação, Trabulo traz à memória os 100 mil soldados metropolitanos que passaram comissões bianuais por terras da Guiné, presta a devida homenagem aos mortos em combate e faz uma tangente a António de Spínola – e, acima de tudo, à vida e obra do pensador e revolucionário africano Amílcar Cabral.

Ao longo das mais de duas centenas de páginas de “A Guerra da Guiné” é-nos relatado o assassinato de Amílcar Cabral, apresentadas Guiné-Bissau e Cabo Verde, o fim da utopia imperialista, várias operações bélicas, notas de passado, esperanças de futuro e curtas notas sobre o nascimento e a preparação do 25 de abril de 1974.

Tal como diz metaforicamente António Trabulo, o conflito do Ultramar assemelha-se a uma «árvore arrancada violentamente do solo antes de os frutos amadurecerem». Até Portugal reconhecer a independência da República da Guiné-Bissau, a 10 de setembro de 1974, ficou mais de uma década de combates.

Ainda que se tratasse de uma terra pobre e pequena, comparativamente com Angola ou Moçambique, a Guiné era um dos alicerces para o completo domínio das colónias de acordo com o pensamento político português da época. Para Lisboa, os meios (exagerados) justificavam os fins e a questão colonial começou a ser delineada por um conjunto de pormenores que incluíam a invasão militar ao território guineense.

In deusmelivro

domingo, 22 de março de 2015

“O Morcego”
de Jo Nesbo


Apesar de ter sido editado originalmente em 1997, o livro que relata as primeiras aventuras do carismático inspetor da Brigada Anti-Crime de Oslo, Harry Hole, tardava a ter tradução para português.

Tal como se passou em outros quadrantes, os fãs nacionais de policiais (e não só) tiveram o primeiro contacto com a criação de Jo Nesbo aquando da publicação de “O Pássaro de Peito Vermelho”, o terceiro tomo da saga.

Após uma longa espera, “O Morcego” (Dom Quixote, 2015) chega finalmente às livrarias e, nele, Nesbo mostra um Harry Hole de alma carregada e algo “imberbe”, num cenário atípico: Sydney, Austrália.

O facto de Hole estar fora da sua Oslo natal não é novidade (muita da acção dos livros da série Harry Hole é passada fora da Noruega) e esclarece ao leitor a tendência de Nesbo em colocar o detetive fora do seu ambiente, algo que confere sempre à trama um sentimento de descoberta por parte do principal protagonista.

Em forma de “baptismo literário”, Hole aterra na Austrália como um objectivo: investigar o homicídio de Inger Holter, uma norueguesa de 23 anos, em tempos uma celebridade televisiva na Noruega, que se apaixonou pelos antípodas. Para tal, Harry vai ter de colaborar com as autoridades locais e, missão principal, tentar manter-se longe de problemas.

Mas Hole está longe de aceitar um papel de mero observador na investigação. À medida que o puzzle começa a ganhar forma e as suspeitas que Inger foi mais uma vítima de um serial killer que actua em território australiano, o norueguês trava amizade com Andrew, um dos detectives responsáveis pelo caso que esconde, também ele com um passado envolto em acontecimentos dramáticos e violentos. À semelhança de Hole, Andrew é um sobrevivente.

Mais do que atormentado pelos fantasmas resultantes da morte das mulheres louras, Hole continua a lutar contra um passado que teima em assombrar o presente. Harry, busca, no meio do caos, uma forma de equilíbrio social e emocional, e tal parece assentar que nem uma luva na pessoa de Birgitta, ex-colega de Inger, outra nórdica que lançou amarras em Sydney e trabalha no Albury, um bar local.

Este elemento romântico, pouco explorado nos outros livros de Nesbo, confere mais humanidade a Hole e atribui profundidade a toda a trama. Ficamos assim a conhecer mais detalhes sobre o interior do inspector norueguês e, à medida que a narrativa avança e se torna mais acutilante e interessante, mais prazer dela retiramos.

Ainda que “O Morcego” não seja uma obra-prima – essas chegariam mais tarde com, por exemplo, “O Boneco de Neve” ou “O Leopardo” -, Nesbo consegue um argumento muito sólido, enquanto contextualiza a história da Austrália e as lendas da cultura aborígene de forma exímia e sublinhada com um toque de humor (por vezes negro).

A forma como vamos conhecer a identidade do assassino está também muito bem delineada e, sem que tal seja uma revelação, surpreende e faz todo o “sentido”. Ainda assim, o final do livro parece muito apressado, precipitado. Será que Jo Nesbo estava impaciente para escrever nova aventura de Hole, ou Holy, como lhe chamam os australianos?

Aconselhado aos amantes de thrillers e policiais oriundos da Escandinávia, “O Morcego” é um livro interessante que faz(ia) nascer um dos mais fantásticos personagens da literatura contemporânea.

Ainda com algumas arestas por limar, algo que Nesbo fez com mestria dos romances seguintes, o primeiro tomo da série Harry Hole é como um diamante em bruto, acabando por ser editado na altura ideal, como uma espécie de “prequela” que ajuda a conhecer mais a fundo Harry Hole, algo que pode – e deve – ser complementado com a edição portuguesa de “Cockroaches”, o segundo livro da série.

In deusmelivro

“Amanhã na Batalha Pensa em Mim”
de Javier Marías

O fantasma da traição


A escrita de Javier Marías é diferente, ímpar e contagiante. O seu estilo narrativo recorre, com uma acutilante pertinência, a repetições e múltiplas contextualizações que em nada levam o leitor a pensar em redundâncias ou traços contraproducentes. Numa única frase, Marías conduz-nos através de várias camadas reflexivas que lembram os esboços do artista gráfico holandês M. C. Escher, sendo que aqui, essas construções impossíveis assumem a forma de palavras que, através de um sentido direcional próprio, conduzem-nos até bom porto. O estilo é pausado, pensado, e cada pormenor é importante para a globalidade da ideia.

Em “Amanhã na Batalha Pensa em Mim” (Alfaguara, 2014), romance publicado originalmente em 1994, Javier Marías, conta um episódio da vida de Victor Francés, um guionista a atravessar um mau período na carreira, que aceita um convite de Marta Telez, uma atraente mulher, casada, que conheceu há pouco tempo, que aproveita a ausência do marido em viagem para combinar tal encontro.

Um pouco timidamente, Victor apercebe-se que, afinal, o convite encerra em si um contexto romântico. Mas a ideia da traição, do adultério, é um nado morto. Marta sente-se mal e morre. Num ápice, e de forma inesperada, a vida de Victor muda. Madrid fica ainda mais invernosa e negra e não resta outra coisa a Victor senão fugir daquela casa, da situação.

Para trás deixou entregue ao seu sono, o filho de Maria, um menino de dois anos que dormia no quarto do lado. As dúvidas são muitas. O que fazer com o corpo de Maria? Deverá Victor avisar as autoridades? Que fazer com a criança? Que dizer ao marido ausente?

Mas é a reação ao fantasma da infidelidade, ainda que não consumado, que Victor mais teme e lhe corrói os pensamentos e, mais uma vez, Javier Marías é capaz de escrever uma narrativa notável que coloca o dedo na ferida dos sentimentos que nos consomem.

A melancolia omnipresente das palavras de Marías aliviam o espetro da tristeza, desse adormecer tranquilo que, gradualmente, se impregna na mente. Ainda assim, há esperança neste discurso e é esse o farol que possibilita uma leitura “confortável” e garante um sentido de orientação. Essa vivacidade (e vitalidade) é preciosa. Permite ver a fragilidade e nudez de um discurso silencioso, sem esforço aparente, como quem se despede de um local tendo um destino prévio traçado.

A dicotomia da personagem de Maria leva-nos a supor uma ideia difusa: descansará em paz ou agonia na inquietude? Para trás deixou o mundo, espaço que deixou de habitar mas que ainda acolhe os seus entes queridos: o seu pai, a sua irmã, o seu marido, o seu filho. Mas existe outro alguém, um fantasma. Um ser que pertence ao seu passado imediato, alguém que desconhece, fora do seu círculo de amigos e família, alguém que esteve a um passo de se ter tornado espacial, se ela vivesse um pouco mais, e é no fundo a única pessoa que conhece as circunstâncias da sua morte, da sua alma conspurcada pela traição ainda que não devidamente consumada. Esse alguém é Victor, o narrador.

E é Victor a quem Marias dá o ónus da contextualização shakespeariana presente em “Amanhã na Batalha Pensa em Mim”, a pessoa que segue o pensamento do fantasma de Lady Anne para com Ricardo III, no último ato da conhecida tragédia do dramaturgo inglês. A própria situação, ou encenação, está envolta de um sentido ridículo e lamentável. Algo que ninguém pode controlar ou ter escolhido mas que se tornou num destino comum, de alguém que morre e de outro que é testemunha (forçada). Mas impõem-se uma pergunta: quem opta por fazer memórias com o último suspiro de outro, principalmente quando advém de lábios vermelhos?

Qual é a história que começa pelo fim, pelos últimos momentos passados nos braços de um desconhecido? Talvez nenhuma, mas a vida é uma caixinha de surpresas e, principalmente, de dilemas. Javier Marías consegue construir uma história, um romance, com esses elementos, mergulhando numa investigação filosófica que trilha um longo caminho através das já referidas frases intermináveis, desvios frequentes e uma eloquente prosa. Daí resulta um esperado “atrofio” do leitor, que cresce, controlado, através de um singelo fragmento de um passado esquecido, que ilumina o significado de um suposto presente inconsequente.

Marías, faz-nos ver, mostra o caminho e a luz, e somos obrigados a admitir que por trás de uma fachada normal, escondem-se figurações que deambulam entre o angelical e o demoníaco, os opostos que constroem uma mesma alma. Nunca somos capazes de admitir que somos a génese da dor implacável ou um salvador por e do acaso, uma inexplicável razão para a vida e/ou a morte de alguém.

Tal como em outros (maravilhosos) livros de Javier Marías, todas estas distorções não existem sem um narrador, no caso Victor. Há semelhança de outros, o “nosso” guionista possui uma particular compreensão da vida conseguindo arrebatar em si todas as similaridades do ser humano. Todos temos a nossa quota-parte de arrependimentos, boas e más memórias, relações distantes, conexões acidentais e uma dose “certa” de tudo ou nadas que permitem guiar a existência e torná-la surpreendente, secreta e com anseios e certezas reveladas. Javier Marías consegue libertar essa voz e ouvi-la é imperioso. É como se um conselho de um amigo se tratasse. Um camarada fiel e presente.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 19 de março de 2015

“Viagem ao coração dos pássaros”
de Possidónio Cachapa


Escritor, argumentista e realizador, o eborense Possidónio Cachapa é uma das vozes mais peculiares da arte de escrever romances em Portugal.

No seu currículo pontuam obras como “Nylon da Minha Aldeia”, Materna Doçura” e “Viagem ao Coração dos Pássaros” (Marcador, 2015), este último cuja primeira edição data de 1999 mas que volta aos escaparates via editora Marcador, de cara lavada e alvo de revisão do autor tendo por base o texto original.

É assim que regressamos ao Portugal insular à boleia de uma narrativa que aponta – e se fixa – a um mundo particular de um personagem ímpar, cuja pureza nos remete para uma visionária ligação com a Natureza e para com os seus semelhantes.

No centro deste do mundo que é “Viagem ao Coração dos Pássaros” está Kika, uma menina-mulher visionária cujos poderes inatos dão acesso ao âmago do ser humano e permite fazer uma douta reflexão sobre as contradições e a dialética da vida, do amor, da perda, da ausência.

Sob a batuta de uma (viciante) prosa e com um forte sentido de dramatismo circunstancial, ao leitor é permitido realizar um trajecto onírico que reúne magia, ilusões e sonhos perdidos. Com a ajuda do seu anjo da guarda, Kika, filha de um ausente Filipe e de uma incompleta e sensual Evangelina, descobre a vida da pior das formas; isto é, à sua exclusiva conta e exclusividade.

Pelo meio surgem personagens laterais, mas não secundárias, que ajudam a contextualizar uma estória que leva o leitor, pelas nuvens, da Madeira até à Venezuela, fazendo escala nos sorrisos ou lamentos de Adalberto, o fura-mundos, ou do Escritor – este último uma espécie de “auto-retrato” de Cachapa.

Ao milagre da existência, Possidónio Cachapa junta a beleza da natureza local à matemática da vida, que pode ser dura, supersticiosa, alvo de preconceito e metáforas que norteiam personagens que, por exemplo, têm uma moreia dentro de si, de outros que sentem a partida e outros o simples e doloroso ficar.

Fora do seu âmbito mais surreal, este é também um livro que versa sobre o amor, sobre a paixão de Filipe e Etelvina, de Etelvina e Adalberto, da relação circense de Blirina e Ocarino, da doentia relação entre o Escritor e Kika, da existência, seja ela breve ou eterna.

Para ler ou reler, “Viagem ao Coração dos Pássaros” é um livro inteligente, subliminar ou em estado bruto, ora doce ora amargo, mas acima de tudo uma maravilhosa experiência literária onde a acutilância do seu todo o torna de leitura obrigatória.

In deusmelivro

LÅPSLEY
“UNDERSTUDY EP”

A IDADE DA INOCÊNCIA


Será que a música já está toda inventada, esgotada em si mesma? É a música vítima de si própria, um universo finito onde a criatividade está amarrada em cânones preestabelecidos, salvo raríssimas exceções?

Anualmente, a bem dos nossos ouvidos, surgem novas apostas sonoras, onde a originalidade, por vezes, está na capacidade de adaptar um conceito e transformá-lo da forma mais independente possível. Pode fazer-se magia com a inocente inexperiência, apenas com vontade, oportunidade e (muito) talento.

Holly Lapsley Fletcher, uma ainda teenager natural de Southport, Merseyside, é um desses exemplos. Começou a dar nas vistas há cerca de um ano, ao editar “Monday”, um EP que captou quase de imediato a atenção da "BBC Radio 1" e que navegava entre ondas de uns The XX, à boleia dos London Grammar ou James Blake.

Hoje, ao ouvirmos “Understudy”, o segundo EP da menina britânica, não nos espantamos ao saber que “Falling Short”, um dos singles do referido trabalho, atingiu um milhão de plays no SoundCloud, registando Låpsley cerca de vinte mil seguidores na plataforma.

Os tempos mudaram, a internet comanda a vida e Låpsley, paulatinamente, afirma-se com um valor seguro, e a sua pop eletrónica de cariz melancólico (e minimalista) levou o nome da menina de Liverpool a constar na lista dos críticos dos British Awards.

Com apenas quatro canções, “Understudy EP” é uma fantástica amostra da melhor música que se faz atualmente. O ambiente é reconfortante, simples, quente, e a sua inata simplicidade estrutural mescla sentimentos agridoces com um sublinhado sensível.

Como o melhor dos cozinhados, “Understudy”, oferece as calorias certas para uma refeição inesquecível. No ponto, as quatro canções do EP afastam a monotonia do quotidiano e Låpsley embala os nossos ouvidos com pérolas doces como “Falling Short”, com a candura de “Brownloud”, a revigorante “8896” e a mexida “Dancing”. Quatro pratos diferentes mas igualmente intensos e com um efeito saciante.

Sob qualquer perspetiva, estamos perante um disco fino, bem feito, como uma equação de emoções matematicamente irrepreensível. Låpsley gere música e silêncio de forma perfeita e a sua voz é parte dessa sintonia, um instrumento orgânico e delicado.

Tal como o próprio nome do EP, a música de Låpsley está ainda numa espécie de laboratório técnico e emocional, assente em várias camadas sintéticas, mas caminha sobre uma excelente base para o que aí vem. Resta saber como vai a britânica arrumar a sua conceção musical num conceito mais “ambicioso”, como é um álbum. Resta esperar, esperemos, pouco.

Alinhamento:
1.“Falling Short”
2. “Brownloud”
3. “8896”
4. “Dancing”

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

quarta-feira, 4 de março de 2015

“A Hora das Sombras”
de Johan Thoerin

Ecos do passado


Jornalista de profissão, o sueco Johan Theorin, passou grande parte da sua infância na ilha de Öland, junto ao Mar Báltico, local que serviu de inspiração para um dos maiores projetos da sua vida: escrever uma tetralogia – apelidada por alguns como o “quarteto de Öland ” – sobre esse pedaço de terra ao largo da costa leste da Suécia.

Foi assim que começou a ser idealizado “A Hora das Sombras” (Porto Editora, 2014), um romance que mistura algumas das muito apreciadas características dos polícias nórdicos com um estilo mais narrativo pausado e reflexivo, sem pressas, que envolve o leitor de forma gradual e aditiva.

Tal como o próprio ambiente de Öland, este livro reflete momentos de uma fria pacatez, entrelaçada em peculiares episódios de folclore local que apenas são quebrados por uma terrível memória que nos faz recuar duas décadas.

Esse retrocesso no calendário leva o leitor até a uma manhã de setembro de 1972, onde o pequeno Jens explora os meandros de Öland. Apesar de o dia está envolto de uma densa névoa, Jens ousa passar a fronteira dos muros dos jardins dos seus avós maternos… para não mais regressar a casa. Depois de procurar em toda a ilha, polícia e populares não encontram o paradeiro do menino. A hipótese, trágica, leva a pensar que Jens teria caído ao mar e morrido afogado.

Vinte anos depois, Julia Davidsson atende um telefonema inesperado do pai, um reformado lobo-do-mar, mestre de embarcações ainda residente em Öland, a informar que recebeu nessa manhã uma encomenda especial: um anónimo enviou uma das sandálias que, supostamente, Jens calçava no dia em que desapareceu.

Este acontecimento faz (re)surgir a esperança e Julia, à luz de nova provas, regressa a Öland para encetar novas investigações. A crença, ainda que ténue, de saber do paradeiro de Jens, faz com que Julia, uma sombra de si mesma, aceite regressar à terra onde nasceu, cresceu e viveu o pior dos pesadelos.

Presos a um drama que os retém presos ao passado, Julia e Gerlof estão decididos a entender o que aconteceu a Jens. Entre os novos dados, Julia ouve falar pela primeira vez de Nils Kant, um mítico personagem local que em tempos fora declarado inimigo púbico da comunidade. Mas há muito tempo que Kant está morto e enterrado. Ainda assim, pouco tempo antes de Jens ter sido visto pela última vez, há quem afirme ter visto Kant a deambular pela charneca ao cair da noite, à hora das sombras.

Ao longo das quase quatrocentas páginas deste romance sente-se uma atmosfera depressiva e opressiva de locais e personagens. Se Gerlof é um octogenário que tem como um dos últimos objetivos de vida saber o que aconteceu ao seu neto, episódio que carrega como uma forma de culpa, Julia rege a existência através de uma espécie de “piloto automático” cujo combustível assume a forma de uma garrafa de vinho. Já Nils Kant, o personagem que completa o trio nuclear de “A Hora das Sombras”, é um vulto, um espetro que reúne (pequenas) doses de inocência com uma maldade omnipresente e manipulável.

Theorin, através de uma escrita cuidada e em velocidade de cruzeiro, que em nada prejudica a fluência narrativa, tece um puzzle negro onde disseca sentimentos como a perda, a culpa, a ganância e a sede de poder. A amargura com que, por exemplo, Julia e Gerlof (sobre)vivem, retrata, de forma exemplar, a inquietude de um luto incompleto, de um fel que teima em atormentar corpo e alma.

Para contextualizar a trama, o escritor sueco faz uma pertinente crónica em forma de flashbacks (os capítulos do livro alteram entre passado e “presente”), principalmente para apresentar ao leitor Nils Kant, enriquecer também o nosso conhecimento face a alguns tiques de personalidade de Gerlof e Julia – que são particularmente avessos às novas tecnologias -, ou ainda sobre a rivalidade sueca entre continentais e insulares. Genial, é também a subtileza criativa de Theorin que faz crescer a “lógica” do desaparecimento de Jens através de pequenas revelações e pormenores.

Ainda que “A Hora das Sombras”, editado originalmente em 2007, tenha sido o romance de estreia de Theorin, a qualidade do mesmo valeram-lhe prémios como o Glass Key (Prémio para o Melhor Livro Sueco de 2009) e o prestigiado CWA International Dagger e figura, com todo o mérito, entre os melhores thrillers editados em Portugal no ano de 2014.

In Rua de Baixo