quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

MARK EITZEL
“DON’T BE A STRANGER”

O senhor escritor de canções



Quem esteve no Lux no passado dia 8 de Fevereiro a ver o antigo líder dos American Music Club aquando da edição #11 do Black Ballon, viu um Mark Eitzel em grande forma lírica e, podemos também dizer, física.
Vítima de um problema cardíaco em Maio do ano passado, Eitzel recuperou mente e espírito e conseguiu fazer um dos mais bonitos e emblemáticos discos destes últimos tempos, ainda que o mesmo tenha demorado cerca de três anos a ser concluído.

“Don’t Be a Stranger” é uma coleção de onze fantásticas canções de “amor”, de embalar, do sonho ao pesadelo. Eitzel, sem dúvida um dos mais brilhantes compositores de pedaços de vida em formato canção das últimas décadas, entrega-se neste disco de uma forma sublime e corajosa conseguindo o seu melhor registo desde o brilhante “The Invisible Man” de 2001.

Sem nada a provar a não ser a si próprio, o autor de “Western Skies” serve-nos “Don’t Be a Stranger” numa bandeja de prata, composta de iguarias feitas à base de ingredientes agridoces que matam a nossa fome de boa música.

O espírito irreverente de Mark Eitzel é um das características mais marcantes na elaboração das suas músicas que se caracterizam por memórias de uma vida que, aos 53 anos, está cheia de peripécias e acontecimentos. Como o próprio já afirmou, as suas criações surgem da simples observação quotidiana, de telefonemas de fãs durante a madrugada ou idas à Disney.

A voz de Eitzel está mais subtil e continua melódica, lancinante, intensa, até mesmo quando é filtrada através de um pequeno megafone. A musicalidade que resulta da conjugação da respiração do homem de São Francisco com o brilhantismo das suas cordas vocais leva-nos para paisagens onde o sonho se mistura com a realidade, mesmo que tal signifique um coração partido ou o regresso a velhas feridas e traumas.

É fácil amar canções como «I Love You But You’re Dead», «Well All Have to Find Our Way Out» ou «Nowhere to Run». E é simples reconhecer a genialidade de um homem que se refugia na intimidade da sua música, mesmo que o próprio diga, por exemplo, que este disco tenha resultado de “demos medíocres” e que o grande responsável pelo “sucesso” do mesmo seja o produtor Sheldon Gomberg.

Sem esquecer que o acompanha pela estrada da vida, Eitzel, modesto e pragmático, faz também questão de recordar que este disco apenas foi para estúdio graças a um amigo que patrocinou a sua gravação depois de receber um prémio da lotaria.

Mas não é, definitivamente, a sorte que torna Mark Eitzel num cantor de referência incontornável. É, acima de tudo, a sua poesia e talento que transformam simples canções em algo especial.

Em “Don’t Be a Stranger” a idiossincrasia e a hostilidade misturam-se com alguns clichés e, deste caldeirão de experiências e sentimentos, resultam baladas tristes para pessoas desoladas («Lament for Bobo The Clown») desejos de fugir à maldição de cantar («Break the Champagne») ou odes a gente que ganha a vida mascarada de conhecidas figuras do universo da animação e são vítimas de agressão («Costumed Characters Face Dangers in the Workplace»).

Também a harmonia provocada por suaves guitarras é habitual neste (grande) disco. «I Know the Bill is Due» é um exemplo desse virtuosismo, neste caso acompanhado por uma das mais intensas prestações vocais de Eitzel. Outro exemplo de bom gosto é «All My Love», um original dos American Music Club, aqui assumindo-se como uma canção pautada por um piano planante e uma bateria muito cool.

Ao contrário de outros discos, em “Don’t Be a Stranger” Eitzel trocou laivos de intensidade sonora por uma fatia mais doce e pacífica que leva ao entendimento das vicissitudes de uma realidade omnipresente. Com essa mudança ficamos todos a ganhar nesta “lotaria” criativa que é o acto de escrever e dar a ouvir canções.

In Rua de Baixo

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

“A CAÇA”
de THOMAS VINTENBERG

O dogma do perdão



O percurso cinematográfico do dinamarquês Thomas Vintenberg vai ficar para sempre marcado devido à sua responsabilidade criativa na criação do Dogma 95, um manifesto que tinha em Lars von Trier outro membro fundador. A simplificação do Cinema, injectando uma veia mais real e menos “comercial” no mesmo, serviria para afastar as películas em si das garras da indústria da sétima arte.

Em 1998 Vintenberg assinaria um dos filmes mais representativos desse conceito, “Festa”, onde dava a conhecer um cineasta corajoso e provocador que atacava a crueza da realidade sem mácula. O resultado foi um filme perturbador que não deixou ninguém indiferente.

Mas essa estreia promissora não viria a confirmar-se nos seus filmes seguintes. “O Amor é Tudo” (2003), “Querida Wendy” (2004) e “Submarino” (2010) revelavam-se exercícios de qualidade questionável. Seria necessário aguardar que o realizador dinamarquês regressasse aos ambientes rurais do País para assistirmos a mais um brilhante filme.

“A Caça”, que valeu o galardão de melhor actor no Festival de Cannes a Mads Mikkelson, leva-nos até ao coração de uma localidade de classe média que tem nos seus rituais de passagem a fundação e estabilidade da própria comunidade.

E, como em “Festa”, Vinterberg pega num tema delicado para agarrar de imediato a história e o espectador. A pedofilia, talvez o crime mais difícil de aceitar e compreender, é a razão para que toda a comunidade condene Lucas, um professor colocado no lugar de educador de infância, sem se preocupar muito com a legitimidade desse castigo.

Personagem que tenta reequilibrar-se depois de um complicado divórcio e perda de emprego, Lucas vê na sua nova actividade profissional, na possível recuperação da custódia de Marcus (Lasse Fogelstrom), seu filho, e no recente envolvimento passional com Nadja (Alexandra Rapaport), pequenos passos para conseguir a desejada felicidade.

Toda esta esperança cai por terra depois da pequena Klara (Annika Wedderkopp), filha do seu melhor amigo Theo (Thomas Bo Larsen) e aluna do jardim-de-infância onde Lucas foi colocado, acusar o educador, motivada pelo ciúme e “rejeição”, de actos pedófilos.

A mentira, como um piscar de olhos, pode ser ignorada pelo mais atento observador que opta por seguir a linha mais fácil da acusação em detrimento de questionar a própria fundamentação de quem se tenta defender. Julgar é muito mais fácil que atribuir o benefício da dúvida.

E é isso que Vintenberg nos mostra de uma forma extremamente competente; o lado negro da acusação, da solidariedade no seio de uma comunidade intolerante. Lucas, um personagem soberbo, é, à beira de um precipício induzido, a imagem da falência pessoal. Num ápice, vê-se enterrado numa espiral de acusações e as “eventuais” vítimas absorvidos por um estádio de verdadeira paranóia.

São os efeitos da angústia e da incerteza face ao futuro assombrado pela injustiça que infernizam Lucas. A gravidade da acusação sobrepõe-se a qualquer hipótese de perdão. Enfrenta-se a condenação porque “as crianças não mentem”, porque a inocência é um valor acima de qualquer outro, mesmo da razão.

De cidadão modelo pode passar-se a uma ameaça, pode vestir-se a pele de marginal. Mas, ainda assim, há quem consiga acreditar no “monstro”, seja por se sentir o mesmo sangue a correr nas veias ou porque a verdadeira amizade não se deixa tingir pela desconfiança banalizada.

Neste excelente exercício cinematográfico, os homens podem metamorfosear-se em ratos e vice-versa. O caçador por transformar-se na presa. Será possível o perdão?

In Rua de Baixo

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

NICK CAVE AND THE BAD SEEDS
“PUSH THE SKY AWAY”

O doce lamento do barqueiro



Aos 55 anos, o prolífero e talentoso Nick Cave tinha mais um desafio na já longa carreira. Os tempos de “From Here to Eternity” já lá vão há muito e os recentes trabalhos de Cave, com ou sem os Bad Seeds eram sinónimo de muita adrenalina. “Dig Lazarus, Dig!!!” e os discos de Grinderman eram um elogio à festa, às guitarras, ao sobressalto.

Antes do lançamento de “Push the Sky Away”, Cave, metafórico, referia-se ao seu mais recente trabalho como “um bebé-fantasma na incubadora”. A curiosidade sobre o disco crescia. Mais, esta é a primeira vez, deste a criação dos Bad Seeds, que Nick Cave não conta com a colaboração de um outro membro fundador pois o multi-instrumentalista Mick Harvey abandonou a banda antes da génese deste álbum.
Num período de constante reconstrução, o australiano e restantes companheiros rumaram a terras de França para gravar “Push the Sky Away”. Assim, o 15º disco de Nick Cave and The Bad Seeds nasceu e cresceu no La Fabrique, um estúdio rural no sudeste francês.

A produção esteve a cargo do inglês Nick Launay, um dos responsáveis pelos recentes sucessos de gente como os Arcade Fire e Yeah Yeah Yeahs e que já tinha trabalhado com Cave aquando da edição de “Junkyard”, disco dos The Birthday Party.

E, ao contrário de outros casos, a expetactiva não foi um entrave criativo e “Push the Sky Away” é, sem dúvida, um dos melhores discos da carreira de Nick Cave. Um trabalho pautado pela criatividade do mestre australiano especialista em ambientes desolados, desertos de esperança mas prolíferos em inspiração e talento.

O som escuro, fantasmagórico, sussurrado do disco – a “culpa” Launay é evidente – remete-nos para um seminal “The Boatman’s Call” (1997), um desarmante “No More Shall We Part” (2001) ou um meloso “Nocturama”.

O resultado são nove canções atmosféricas brilhantes que por vezes tocam o sonho e o pesadelo. Mas essa é uma das marcas da música de Cave. Não importa os ritmos, os decibéis libertados, os silêncios. O mais notório é a dedicação e a inspiração deste homem dos antípodas que já foi apelidado de “príncipe negro”.
O disco abre com uma descontraída e relaxante «We No Who U R» onde Cave disserta sobre a relação entre o homem e a natureza que o rodeia. É o exemplo típico de uma balada do universo Cave, repleta de violinos, flautas e um coro feminino que acentua a beleza da composição.

«Wide Lovely Eyes» começa com uma guitarra intrigante, que acompanha toda a canção, e traz à memória os ambientes mais calmos de umas certas baladas assassinas. O adeus e a perda no feminino marca presença nas palavras de Cave, que nos avisa: “And they’ve hung the Mermaids from the streetlights by they hair / And with wild lovely eyes you wave at the sky…You wave and say goodbye”. A noite cresce à medida que nos aproximamos de um qualquer fim.

Seguimos caminho pela recente via-sacra de Cave e entramos em «Water’s Edge», uma canção cheia por um baixo em crescendo que nos assusta. O amor pode levar-nos ao limite, pode envelhecer uma alma, pode tornar um coração numa pedra. Bíblico, o poeta avisa: “Its’s the will of Love /It’s the thril of Love…”. Uma das mais intensas canções deste “Push The Sky Away”.

Por esta altura já nem nos lembramos que Cave não tem as suas ervas daninhas originais mas sentimos que está, definitivamente, muito bem acompanhado. Ao ouvir o fantástico «Jubilee Street» somos embalados pelo violino de Warren Ellis e bela voz quente de Cave. O ambiente criado lembra uns Tindersticks no auge da sua forma. A música hipnotiza, vibra, brilha, plana. Cave pede-nos para o olharmos a voar, as guitarras surgem, arranham, ao fundo o coro aparece. Seis minutos e meio de pura beleza.

«Mermaids», a música seguinte, faz-nos seguir o lamento encantado das mitológicas criaturas. Num ápice somos atraídos para o mar tranquilo, a imagem mais forte que este disco nos transmite. Sentimos o pulsar das ondas a par da reverberação instrumental. Mergulhamos nas palavras do barqueiro Nick Cave, nadamos nas suas palavras que tanto nos servem de bóia de salvação como de embarcação sem destino.

O drama continua a assolar os nossos corações e ouvidos com «We Real Cool». A linha de baixo, os violinos e os acordes de piano conferem uma forte intensidade a esta canção que serve de ponte perfeita para «Finishing Jubille Street», que, numa toada mais bluesy, nos remete para um sonho que Cave teve depois de escrever «Jubilee Street».

Ainda no capítulo do onírico, chegamos a «Higgs Boson Blues», um recital amnésico que versa sobre alguns dos temas preferidos de Nick Cave: mulheres, Deus, Diabo, árvores inflamadas e um calor resultante da proximidade de um inferno particular que pode acolher uma Hanna Montana numa savana africana. A guitarra de Ellis é o ponto de equilíbrio de toda uma canção à beira do precipício lírico.

E é à boleia deste desvario que chegamos à última canção do disco; «Push the Sky Away», assente num órgão frio e uma bateria minimal. Cave pede-nos, até ao último sussuro,: “You’ve got to just keep on pushing, Keep on pushing, Push the sky away”. O disco acaba mas sentimos que nos atinge em cheio na alma, no coração. A chama de Nick Cave continua acesa e aquece-nos de uma forma única. Até à próxima, capitão!

In Rua de Baixo

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

“O CANTO DE AQUILES”
de MADELINE MILLER

Clássico revisitado



É já no próximo dia 22 de Fevereiro que chega às livrarias o mais recente vencedor do Orange Prize de 2012, um dos prémios mais conceituados da literatura de ficção a nível mundial.

“O Canto de Aquiles”, com chancela da Bertrand, primeira obra da jovem escritora norte-americana Madeline Miller, arrebatou o júri do referido galardão com uma revisão muito particular de um dos maiores clássicos da literatura mundial, “A Ilíada” de Homero, e nomeadamente do mito de Aquiles.

Miller escreveu um romance cativante e muito dinâmico que se concentra na relação entre Aquiles e Pátroclo, sendo que este último acumula ao papel de personagem a função de narrador. Assim, é através dos olhos de Pátroclo, um jovem príncipe tímido e franzino que acaba exilado na ilha de Peleu – pai de Aquiles – depois de ter morto acidentalmente outro jovem, que embarcamos nesta maravilhosa viagem. À medida que a relação entre Aquiles e Pátroclo cresce, a intimidade e ligação entre os mesmos transforma-se numa profunda história de amizade e paixão que arrisca a punição divina.

Quando todos os heróis gregos são chamados ao palco do conflito de Troia, Aquiles, sedento de glória, abraça a causa e com isso “arrasta” Pátroclo a juntar-se ao seu companheiro, ainda que com o coração divido entre o amor e o receio do fracasso.

Segundo a autora, este livro é o concretizar de um sonho de criança, pois era ao som das palavras da “Ilíada” que adormecia. Mais tarde, durante a sua formação académica, a paixão pelos clássicos levou-a a estudar grego e latim, e o constante regresso à trágica obra de Homero era o seu modo de vida.

Ao escrever esta obra, Madeline Miller apropria-se deste capítulo dos clássicos e afasta qualquer tipo de cepticismo através de uma escrita muito cativante, carregada de suspense e com uma capacidade humana própria de quem está apaixonado pela sua demanda, de quem entrega a alma à escrita.

Mais do que uma nova visão dos clássicos, “O Canto de Aquiles” é um romance que tem dois heróis antagónicos que se completam. Miller consegue, de uma forma muito competente, mostrar que um personagem com uma vida banal e sem o poder dos escolhidos pelos deuses pode fazer escolhas importantes e, com isso, tentar tornar este mundo num local mais aprazível. Pátroclo assume-se mesmo como o “herói” da contenda, revelando-se um personagem complexo, maravilhosamente “desenhado” pela autora e que, ao longo da história, tem na sua honestidade uma arma mais eficaz que qualquer artefacto bélico de Aquiles ou do seu arqui-inimigo Heitor. Em “O Canto de Aquiles”, o poder de Zeus e Tétis é “subjugado” face à pureza de um sentimento acima de todos os desígnios.

As quase 340 páginas deste livro de contornos épicos levam o leitor ao fantástico mundo dos clássicos da literatura e, quase sem darmos por isso, devoramos as suas desventuras num ápice, totalmente entregues a uma narrativa de contornos acessíveis que extravasa o cenário clássico e aproxima-se de um thriller feito em Hollywood. Ao contrário do mito de Aquiles, este livro não tem um calcanhar que se possa revelar fatídico e é uma das boas surpresas literárias que 2013 já nos trouxe.

In Rua de Baixo

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

“AS BAILARINAS”
de Bertrand Blier

Manual de instruções para criminosos banais



É já na próxima semana que chega ao grande ecrã uma versão restaurada do filme charneira do cineasta Bertrand Blier, “As Balarinas” (“Les Valseuses”, titulo original) que conta no elenco com um jovem Gérard Depardieu, figura recentemente homenageada num ciclo especial dedicado ao mítico actor francês no Espaço Nimas, uma das salas que vai ter a honra de mostrar a obra em causa.

Datado de 1974, este filme gerou grande polémica aquando do seu lançamento mas, aos poucos, tornou-se num culto não só em França como no resto do globo.

Para além de Depardieu participam no filme Patrick Deware, Miou-Miou, Jean Moreau e Isabelle Huppert, cada qual dando alma a um personagem marginal que apenas se acha dentro de um possível contexto quando associado ao todo que é o próprio enredo disfuncional desta obra.

A ideia deste filme resulta na vontade do seu realizador fazer uma adaptação ao romance homónimo, da autoria do próprio Blier. Como resultado temos um road-movie que nos transporta para um universo onde o humor negro e o niilismo estão de braço dado.

Ao vermos este “As Bailarinas” é impossível não fazer uma comparação passado-futuro com dois filmes que retratam a violência de uma forma especial. Falamos de “A Laranja Mecânica” (1971) de Stanley Kubrik, bem como de “Manual de Instruções para Crimes Banais” (1992) de André Bonzel e Rémy Belvaux.

Sem existir uma moral vincada na película de Blier, o espírito naife dos personagens sugere que os mesmos vivem de uma forma normal tornando banal o sexo, a violência e o roubo. No fundo, e como uma das leituras possíveis, Jean-Claude (Depardieu), Pierrot (Dewaere) e Marie-Ange (Miou-Miou) são os três mosqueiros sem Dartagnan.

Numa das cenas do filme, os dois personagens principais masculinos, aproveitando o descanso de uns minutos na esplanada confessam: “Quando ninguém nos chateia, basta-nos os prazeres simples da vida”. Eis Jean-Claude e Pierrot assumindo uma das suas facetas: estetas de um hedonismo muito singular.

Convém aqui fazer uma breve ressalva acerca do próprio Depardieu que encarna neste filme um espelho do que foi em parte da sua juventude. Com problemas familiares e um de cinco filhos do casal Anne Jeanne e René Depardieu, o jovem Depardieu viveu de perto com a marginalidade tendo mesmo frequentado uma instituição juvenil de correção que serviu como farol ao desnorte momentâneo do futuro vencedor de dois Césares e um Globo de Ouro.

Crítica mordaz à sociedade burguesa, “As Bailarinas” mostra como dois marginais e inadaptados escolhem a forma mais fácil de atingir os seus objetivos. Seja um automóvel, uma casa, dinheiro, a paz de espírito ou a nobreza da inocência de donzelas, nada fará parar esta dupla. Mas é com o “recrutamento” de Marie-Ange, uma cabeleireira muito sui generis, que as peripécias aumentam e o grupo se aventura ainda mais.

A ausência de objetivos de vida destes saltimbancos é o leit-motiv desta película. O preenchimento do vazio das suas existências leva-os a atentar contra terceiros na tentativa, de certa forma, de destabilizar o quotidiano alheio e atingir um prazer fugaz mas imediato.

Por outro lado, a frigidez de Marie-Ange, resulta como uma excelente metáfora para todo o filme. No fundo, todos os personagens deste filme assentam a sua base no fracasso enquanto seres humanos.

A estreia é no próximo dia 21, no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre, no Porto.

In Rua de Baixo

Veronica Falls
"Waiting for Something to Happen"

A certeza depois da promessa



Menos de dois anos depois do seu homónimo LP de estreia, os londrinos Veronica Falls lançam “Waiting for Something to Happen” e suplantam com distinção a criação do “complicado” segundo álbum.

As almas e os corações de Roxanne Clifford (voz e guitarra), Patrick Doyle (bateria e voz), Marion Herbain (baixo) e James Hoare (guitarra e voz) continuam num universo próprio, onde as guitarras melodiosas e jangle, assim como as vozes despretensiosas mas muito competentes, nos levam de volta a ambientes nascidos no indie pop da década de 1980.

Os fantasmas, muito bem-vindos - diga-se - de gente como os R.E.M, The Smiths, Teenage Fanclub, Jesus and Mary Chain, e, aqui e além, alguma surf music, preenchem a linha sonora destes quatro rapazes cheios de boas intenções e com gosto pelos sons feitos com ambiente de garagem.

Mas “Waiting for Something to Happen” é, também, um passo em direção da maturidade. É certo que ainda assentam a sua dinâmica e estilo no conceito do single pop de três minutos, mas sente-se que estão mais seguros, mais aventureiros, mais competentes.

Ousados, na faixa de abertura, “Tell Me”, os Veronica Falls perguntam-nos: “Tell me, what are you thinking? Follow me, There’s no Reason to Stay”. E nós somos tentados a ir e ficar, devagarinho.

Ao chegar à segunda música do disco, “Teenage”, parece que já estamos há muito dentro dele. Após poucos segundos de audição, toda a magia dos Veronica Falls já está acumulada nos recantos no nosso cérebro e, sem hipótese de descanso, sentimos os pés a bater no chão. Queremos mais, eles dão. Nós aceitamos, damos o nó.

Talvez imbuídos por uma qualquer seta de um cupido com sede de guitarras e vozes melodiosas, avançamos para “Broken Toy”, uma das faixas maiores deste disco, viciante e desarmante. “If You Don’t Care, You’ll Never Care”, cantam os Veronica Falls e sentimo-nos o coração partido, qual brinquedo quebrado.

“Shooting Star”, uma das canções mais lentas do reportório da banda, tem muito das guitarras de Black Francis e do baixo dolente de Kim Deal, bem como uns pózinhos de um certo unplugged celebrizado por um trio de Seatlle. No fundo, uma fórmula condenada ao sucesso.

A faixa-título do álbum é mais uma celebração aos tempos primaveris que se aproximam e “If You Still Want Me” e “My Heart Beats” são exemplos bem conseguidos da harmonia que existe entre as vozes de Roxanne e James, que são, de facto, complementares e talvez o instrumento mais importante na filosofia musical da banda.

Teimosos e cientes do que querem, os Veronica Falls seguem o seu caminho assente em melodias uptempo que roçam o estado eufórico. Exemplos disso são “Everybody’s Changing” e “Buried Alive”, canções que, para além da sua competência, também apontam para uma evolução lírica.

Uma das canções mais orelhudas deste disco é a doce “Falling Out”. O diálogo inicial entre bateria e baixo, apoiadas na voz melodiosa de Roxanne, é muito bem conseguido. A música cresce e ganha corpo com o avançar dos segundos. Ouvir esta música apenas uma vez sabe - acreditem - a muito pouco. Mais rápida, “So Tired” afasta a letargia e coloca mais adrenalina nos nossos ouvidos.

Até ao final do disco, restam-nos “Daniel” e “Last Conversation”, duas músicas repletas de elegância, e criadas tendo com base a anteriormente frisada maturidade da banda, sem que tal coloque em causa qualquer tipo de constrangimento no restante corpo do disco.

Muito longe do nome da última faixa deste disco, os Veronica Falls têm ainda muito para nos dizer e, essencialmente, fazer ouvir. Longe do estatuto de “promessa”, epíteto ganho aquando do lançamento do disco de estreia, este quarteto é uma certeza. Este conjunto de (belas) canções são um excelente motivo para nos agarrarmos, com esperança, ao que as novas bandas podem fazer pelos nossos ouvidos.

Ouvir este disco é sentir o verão dentro da música, é agarrar a cadência que resulta do calor dos acordes simples, mas deliciosos. Não terá o efeito surpresa do disco de estreia mas - quase que apostamos - que em dezembro próximo “Waiting For Something to Happen” vai figurar nas listas dos melhores do ano.
Alinhamento:
01. Tell Me
02. Teenage
03. Broken Toy
04. Shooting Star
05. Waiting For Something to Happen
06. If You Still Want Me
07. My Heart Beats
08. Everybody’s Changing
09. Buried Alive
10. Falling Out
11. So Tired
12. Daniel
13. Last Conversation

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

Entrevista com o autor de “A Paixão de K”



Médico escritor ou escritor médico? Miguel Miranda é, acima de tudo, um autor com alma de poeta e um viajante que percorre o universo dos sonhos com a ajuda dos seus livros.

Estivemos à conversa com o autor de “A Paixão de K” (ler crítica RDB aqui) e tentámos descobrir alguns dos segredos desta sua nova aventura literária, que reclama a perfeição de uma personagem nascida na cabeça de um amigo de sempre.

Ao oitavo livro, fala de paixão e “afasta-se” do seu Porto optando pelo palco londrino. Alguma razão para tal?

A mesma razão que levou O “Bailado de Sombras” para Cuba e “Todas as Cores do Vento” para nenhures. O Porto é o centro do mundo, mas não há nenhuma razão para que não escreva sobre as periferias.

O caos que se vive na Londres alvo de motins é uma ameaça à própria estabilidade democrática. A paixão que atinge Perfecto Cuadrado tem um efeito semelhante no equilíbrio sentimental do personagem?

Paixão e caos são duas faces da mesma moeda: a disrupção da santa paz do equilíbrio emocional e social. E isso interessa a qualquer vulcanólogo, enquanto escritor.

Diz que o grande responsável pelo nascimento de Perfecto Cuadrado foi o saudoso Manuel António Pina. Sem esse estímulo não teria criado este personagem?

Este Perfecto Cuadrado desbocou-se do Manuel António Pina. Quando ele me contou que conhecera uma pessoa muito interessante, surrealista, que se chamava Perfecto Cuadrado e que vivia numa aldeia espanhola onde todos os homens se chamavam Pepe, erigiu-se perante mim uma personagem, dizendo-me sem mover os lábios: leva-me…

Para si os livros são como certos quadros que necessitam de um estágio dentro da gaveta à semelhança de alguns quadros que ficam virados para a parede para “ganhar corpo”?

Não, os livros são gravidezes que me acontecem dentro do útero da cabeça. Relentam-se nove meses encraniados, não mais. Às vezes, nascem prematuros, de oito ou seis meses, e sobrevivem. Gravidezes de elefante ainda não me aconteceram, o que não quer dizer que sejam impossíveis.

Perfecto Cuadrado é um apaixonado por mulheres e procura o ideal feminino. Será Josephine K. esse protótipo?

Essa é a dúvida que ele tem, insolúvel.

As memórias dão maior sentido à narrativa de “A Paixão de K.” e enquadram Perfecto Cuadrado no mundo. Serão essas recordações uma consolação para quem vive longe da terra que o viu nascer?

Nós somos feitos de memórias mais carne.

Há mais de duas décadas que se dedica à escrita. Onde encontra essa motivação e como conseguiu conciliar com a Medicina?

Sou escritor de noite e médico de dia. Tenho dificuldades ao crepúsculo.

A vida é, para si, “uma sucessão de planos”?

A vida é, para mim, uma sucessão de vidas.

In Rua de Baixo

“A PAIXÃO DE K”
de MIGUEL MIRANDA

O quadrado perfeito de uma vida



Depois de vários romances, contos e prémios literários, Miguel Miranda, médico de profissão, ao oitavo livro leva-nos a uma Londres tomada de assalto pelos motins provocados por um excesso de urbanidade que apanha desprevenido Perfecto Cuadrado, um perito de arte e talentoso falsário que passeia pelo mundo desenhando passageiros anónimos nos metropolitanos e coleccionando paixões.

Metaforicamente, também o coração de Perfecto, um menino que nasceu com cara de Jesus, se encontra no meio de um turbilhão de sentimentos, pois foi tomado de assalto por uma paixão avassaladora por Josephine K (leia-se “capa”), um anjo caído de um céu desconhecido para este cidadão do mundo.

Segundo o autor, este livro é uma homenagem a Manuel António Pina, camarada de tertúlias e que inspirou a génese da obra fazendo nascer Perfecto Cuadrado, uma ideia que surgiu muito por culpa de “Os Papéis de K”, obra do referido homenageado.

Ao contrário de outras obras de Miguel Miranda, a trama afasta-se da Invicta e divide-se entre Londres e Consolación, terra natal de Perfecto Cuadrado, tendo algumas paragens que vagueiam pela memória do nosso herói por terras e paixões acaloradas da América do Sul.

A linha narrativa deste “A Paixão de K”, que se movimenta entre saudosas memórias e um presente atribulado, é uma das suas características mais interessantes, pois confere ao livro um ritmo intenso que alicerça a história no seu todo. A balança sentimental do personagem principal apenas tem o equilíbrio desejado depois de uma equação entre a desordem da capital de Inglaterra e o doce sossego de Consolación.

Para além de Perfecto Cuadrado e da sua musa especialista em matemática e música, existem várias personagens que enriquecessem esta viagem repleta de paixões: os Pepes de Consolación (o eletrónico, o carpinteiro, o cangalheiro, o ferreiro, o pintor, o padeiro…); um padre, Don Jimenéz, conhecido pelas conquistas amorosas; Pepito Consolado, um toureiro finado; as ninfomaníacas irmãs Vicentas; Segundo Fruciante, um galerista sabujo; Laurent, um camarada de bar homossexual; Gail, uma amiga colorida; Hammond, um amigo e amante de policiais; Glorita, a mais quente das aventuras de Perfecto. Elementos que tornam “A Paixão de K” um verdadeiro puzzle de vidas cruzadas.

Ler este livro é sentir o caos interior das personagens que se alimentam da memória para ultrapassar um presente nem sempre aprazível, ainda que as referidas recordações não sejam sinónimo de paz.

No fundo, estamos perante uma obra que tem como base uma personagem que resulta de quatro lados diferentes. Miguel Miranda afirma mesmo que é o amor, a paixão, a amizade e a desordem que formam o carácter deste falsário de nome geométrico.

Sobreviverá Perfecto Cuadrado a este incêndio na sua alma? Estará este sedutor nato preparado para sentir as graduações da paixão? Tudo isto e muito mais em “A Paixão de K”.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

EELS
"WONDERFUL, GLORIOUS"

O regresso do belo freak



A bem dos nossos ouvidos, e almas, 2013 está a revelar-se um ano de excelentes colheitas musicais. O regresso dos Eels com “Wondeful, Glourious”, décimo longa-duração da banda e alter-ego de Mark Oliver Everett, aka Mr. “E”, vem confirmar a regra e assume-se como um dos mais consistentes discos da carreira deste norte-americano, que é uma das figuras maiores do panorama indie internacional.

Mais que uma “reação” à trilogia composta por “Hombre Lobo” (2009), “End Time” (2010) e “Tomorrow Morning” (2010), esta nova coleção de 13 temas é uma aposta segura no futuro dos Eels. Everett deixa de novo as guitarras arranharem as suas músicas e o regime de bipolaridade de “Wonderful, Glourious”, entre descargas voltaicas e baladas cheias de coragem, torna este num dos discos mais complexos da banda.

Se, em 1996, “Beautiful Freak” se assemelhava a uma doce tentação e surpresa, discos como o seminal “Eletro-Shock Blues” (1998) e a resposta ao mesmo que foi “Daises of The Galaxy” (1998) fizeram com que dos Eels se espere muito ou quase tudo. E é isso mesmo que se pode encontrar em “Wonderful, Glourious”. Vários ingredientes que tornam a música dos Eels num caldeirão de canções repletas de calorias auditivas, onde o sabor agridoce das composições deixa todos de água na boca.

Logo aos primeiros acordes de “Bombs Away”, faixa inaugural do disco, somos invadidos por guitarras que procuram soltar amarras, ainda que bem apoiadas numa segura precursão. A voz de Mr. “E” soa áspera, rouca, num registo que faz lembrar os lamentos de Tom Waits.

Gingão, “Wonderful, Glourious” avança para “Kinda Fuzzy”, uma canção que inicia assente numa linha de baixo acutilante e é um excelente exemplo do hipnostismo da lírica destes Eels em grande forma. Sem dúvida, uma das mais viciantes peças deste álbum onde o otimismo do vocalista leva-o mesmo a assumir-se como “a good man”…

“Accident Prone” é o primeiro momento mais introspetivo do álbum e leva-nos para ambientes mais calmos, melancólicos e, de certa forma, seguros. Este mesmo sentimento atravessa-nos a alma nos belíssimos “On The Ropes”, “The Turnaround”, “True Original” ou “I Am a Building a Shrine”.

Por sua vez, “Peach Blossom”, carregada de guitarras e muita soul, leva “E” a abrir a alma ao mundo e a cantar: “There’s Nothing For Me to Fear”. Existe, sem dúvida, luz na (nova) vida dos Eels e a escuridão do passado fica para trás. A prova vem com as primeiras estrofes de “New Alphabeth”: “…you know What? I Am in a Good Mood Today; I Am So Happy It’s Not Yesterday”. Eis-nos no novo vocabulário da banda.

Repletas de swing, “Stick Together”, “Open My Present” e “You’re My Friend” são exemplos do caráter eclético deste “Wonderful, Glourious” - disco que encerra com a faixa homónima e que nos deixa com vontade de sentir mais capítulos da história dos Eels, que estão, de facto, fantásticos, grandiosos.


Alinhamento:
01. Bombs Away
02. Kinda Fuzzy
03. Accident Prone
04. Peach Blossom
05. On the Ropes
06. The Turnaround
07. New Alphabet
08. Stick Together
09. True Original
10. Open My Present
11. You’re My Friend
12. I Am Building a Shine
13. Wonderful, Glorious

Classificação do Palco: 8,5/10

in Palco Principal

“A BALADA DE JOHNNY SOSA”
de MARIO DELGADO APARAÍN

O triunfo dos Blues


Era uma vez um preto que gostava de blues, uma loura que adorava o tango, um deserto que absorvia os calores e os males do mundo, um País à procura da liberdade, um povo amarrado ao seu passado e com saudades de um futuro nascido do confronto das armas e ideologias.

Era uma vez Johnny Sosa, um durão armado com uma guitarra Black Diamond, que a falta de uma dentadura o fazia encarar o futuro de forma sisuda, lamuriando as suas canções desapaixonadas e alicerçadas num Inglês de sotaque muito particular no palco de um bordel de Mosquitos, uma cidade assombrada pela própria existência onde a coragem pode relevar-se quando menos se espera.

Era uma vez um personagem à beira de um limite qualquer imposto pelo fantasma do seu ídolo de sempre, Lou Brakley, um preto azulado pela música que tocava, iluminado pelo seu sorriso branco com o mais belo dos marfins. Um Johnny de apelido Sosa que rejeita um sorriso falso, ao toque de boleros, em troca da sua integridade como ser humano.

Era uma vez uma história onde a música surge como um elixir para esquecer o que somos, onde estamos e, com sorte, para onde iremos. Um romance que é um apelo directo à dignidade humana, ao prazer pela vida. Uma luta entre o sentimento e o dever. Um desafio vencido contra uma ditadura militar e ideológica que é uma prótese imperfeita da vida.

“A Balada de Johnny Sosa”, do autor uruguaio Mario Delgado Aparaín, é tudo isto e muito mais. É um belíssimo romance com um toque de humor particular que nos faz devorar as páginas deste livro num ápice e do qual resultam personagens donas de uma riqueza à prova do calor do deserto.

Agora editado pela chancela da Quetzal, “A Balada de Johnny Sosa”, livro integrado na série américas, faz jus aos muitos elogios que a obra recebeu ao longo dos anos por parte do público e crítica – tendo sido galardoada com o Prémio da Literatura de Montevideu em 1988 -, e é um excelente ponto de partida para explorar a obra de Mario Delgado Aparaín.

in Rua de Baixo

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

JIM JARMUSCH & JOZEF VAN WISSEM
“THE MYSTERY OF HEAVEN”

Espaço sideral 



Longe de ser um novato nestas coisas da música, Jim Jarmusch, muito bem acompanhado por Josef van Wissen, lança “The Mystery of Heaven”, um disco fantasmagórico, repleto de tour de forces e que reforça o intimismo entre a música e a sétima arte.

Figura de proa da cena underground nova-iorquina dos anos 1980, Jarmusch, à época um realizador de cinema emergente, fez parte de algumas bandas locais onde o espírito punk era a filosofia. Pisou o palco do mítico CBGB e muita da inspiração que aí reuniu abriu-lhe as portas para os terrenos do cinema. Nesse campo Jarmusch era perentório: preferir a expressividade a qualquer laivo virtuoso.

Para além dessas premissas, Jim Jarmusch sempre quis fazer a ponte entre a imagem e o som, entre o cinema e a música. Para isso, desde sempre convidou alguns dos seus heróis musicais a participar nas suas películas. Joe Strummer, Iggy Pop e Tom Waits trocariam o palco pela tela ao serviço do realizador.

Estas escolhas não eram de todo inocentes. Músicos e realizador tinham em comum a luta contra o lado comercial da arte e para a história ficaram filmes como “Down by Law” (1986), “Dead Man” (1995), ou mais recentemente “Ghost Dog” (1999).

No que toca a “The Mistery Heaven”, segunda colaboração entre Jarmusch e van Wissen em 2012 (também editaram “Concerning, the Entrance Into Eternity”), estamos perante mais um interessante capítulo na carreira deste multifacetado artista. Tocante e bastante experimental, este disco vem um pouco no seguimento da anterior referida experiência musical entre os dois protagonistas e oferece meia dúzia de músicas intimistas, alicerçadas nos fantasmas cinematográficos de Jarmusch.

A primeira faixa do disco, «Etimasia», uma dolente e progressiva introdução, transporta a nossas mentes para atmosferas acústicas envolvidas por uma singela parede de distorção e reverberação muito bem conseguida, ainda que tímida, o que intensifica uma doce camada dramática e soturna.

A seguir, os cerca de onze minutos de «Flowing the Light of the Godhead» empurram-nos para um diálogo vibrante e sónico entre as guitarras de Jarmusch e van Wissen. Aqui, a distorção e o feedback resultam na perfeição e facilmente atingimos um patamar longínquo, um espaço sideral qualquer.

Em «Mystery of Heaven (Long Version)», a faixa seguinte, o som abre ligeiramente diferente, mais acústico, mais escuro, mas, aos poucos, somos levados para a mesma espiral minimal, em constante debate sobre si mesma. Estamos próximos de num ambiente western spaghetti de características drone.

Talvez a experiência mais “cinematográfica” do disco chegue com «The More She Burns the More Beautiful She Glows», um exercício que mistura os já referidos ambientes escuros do disco com um spoken word da responsabilidade da actriz Tilda Swinton que nos recita um texto medieval que tem a sua origem no distante século XIII. O resultado é um momento lírico assente no feedback de Jarmusch e no registo minimal e hipnótico de van Wissen.

A seguir da tempestade, a bonança. Em contraponto com os quase 11 minutos da faixa anterior, «Etimasia (reprise)» descansa ouvidos e mente ao longo de breves, mas muito bem-vindos, 104 segundos.

O disco termina com «Flowing Light of the Godhead (Eternal Sun)», a faixa mais longa do registo e é, no fundo, um eterno retorno ao ambiente minimalista e belo de todo o disco. Jarmusch e van Wissen, criam, mais uma vez, um disco intenso, delicado, escuro, belo.

Ao ouvirmos estas músicas somos transportados para um universo paralelo que tem como base um diálogo musical próprio. A música de Jarmusch não é “fácil”, claro, mas é profunda e sincera. A linguagem utilizada resulta de uma espécie de viagem espacial, poética e sónica. A nós, simples ouvintes, basta-nos sentar e seguir o caminho a que o som nos leva. Senhoras e senhores, estamos a flutuar no espaço, diriam alguns.


in Rua de Baixo

“BARBARA”
de CHRISTIAN PETZOLD

Conseguirá Barbara a sua redenção?



Começou hoje o KINO, Mostra de Cinema de Expressão Alemã, e estará em Lisboa até dia 3 de Fevereiro tendo como espaços dedicados o Cinema São Jorge, o Goethe-Institut e o Espaço Nimas.

“Barbara” de Christian Petzold, um dos cineastas mais conceituados do novo cinema germânico, esteve encarregue do arranque deste interessante ciclo de cinema. Apontado pelos responsáveis alemães para a vitória do galardão de Hollywood para o melhor filme estrangeiro, algo que não se concretizaria pois não chegou a ser um dos finalistas, este filme já arrebatou o Urso de Prata no recente Festival de Berlim.

Tendo como base os ecos da eterna Guerra Fria na Alemanha, ainda na era do muro, esta película conta a história de Barbara, representada por Nina Hoss, uma médica pediatra que, depois da tentativa falhada de passar para o bloco ocidental do País ao encontro do namorado, é colocada numa clínica do interior como castigo, deixando um dos hospitais mais afamados de Berlim Leste.

Sempre vigiada pelas autoridades, Barbara vê-se numa nova realidade mas sempre com a ideia da fuga, da liberdade, plano que está a ser levado a cabo por Jorg, companheiro da pediatra. Refugiada em si própria, Barbara revela-se fria, distante, algo que deixa de acontecer quando entra em contacto com os pacientes como que vivendo as suas histórias sempre na tentativa de apaziguar os seus medos, talvez porque não consegue dominar os seus.

Para além de ter um novo apartamento, outro local de trabalho e novos colegas, Barbara precisa de se reencontrar, de traçar um novo rumo, ainda que tenha a ideia fixa de deixar a Cortina de Ferro. Pelo caminho surge André, Ronald Zehrfeld, pediatra local que se tenta aproximar da fria nova colega e que vai desempenhar um papel fundamental no quebrar do gelo de toda a história.

Desconfiada de tudo e todos, Barbara não sabe como encarar a afabilidade do colega mas, aos poucos, vai perdendo esse medo e descobre uma luz que até aí desconhecia ter dentro de si.

Hoss e Petzold, dupla que trabalha junta pela quarta vez, são os trunfos maiores desta muito interessante e competente longa-metragem e do “diálogo” entre realizador e actriz nasce uma história muito compacta. Petzold consegue, como poucos, induzir no espectador sensações, medos e sentimentos que o grande ecrã não mostra de forma declarada. A insegurança e o pânico que daí resultam são mais sugeridos que “palpáveis”. É o poder de sugestão que domina, e alimenta, o cinema e a construção do discurso da arte do realizador.

Para passar a sua mensagem, o realizador utiliza a gramática da ausência face à presença, a sintaxe do vazio em detrimento do facto vivido in loco.

O triângulo entre Barbara, André e o público, bem como a incerteza do final da trama, segura-nos até ao último momento e, ao contrário de outros filmes, não conhecemos o jogo na sua plenitude, o que sugere um sentimento claustrofóbico. Este puzzle de Petzold descobre-se a si próprio numa cadência particular reservando um final em forma de revelação. Mas este é um filme cujo mistério que é alicerçado na insegurança que resulta do acto de espionagem, da falta de confiança em si próprio e de conhecer quem é o verdadeiro inimigo.

A conjuntura política opressiva dos anos 1980 está registada em “Barbara” de uma forma ténue, nunca se revelando em demasia. A tensão é transmitida ao espectador muito subtilmente, obrigando o espectador a ultrapassar o labirinto da ambiguidade pois tudo é, ou pode ser, manipulado.

Nina Hoss é quem mais se salienta neste filme, construindo uma personagem forte, que vai saindo do seu casulo de bipolaridade à medida que o filme avança, conforme vai sentindo mais confiança em si própria, na sua vida, mesmo que isso coloque em causa aquilo que tinha como certo, como garantido.

Barbara, personagem muito rica, ganha uma outra beleza com o passar dos minutos. Os seus cabelos louros acentuam o seu brilho, os olhos azuis tornam-se mais bondosos, a boca consegue sorrir.

O crescimento do personagem central do filme, inicialmente segregado, revela também a grande interpretação de Hoss que aos poucos ganha humanidade. Os percursos de bicicleta pelas florestas vizinhas, por exemplo, servem de via-sacra de forma a fugir de um calvário decretado por terceiros.

Conseguirá Barbara a sua redenção?

in Rua de Baixo

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

YO LA TENGO
"FADE"

Estes corações batem em uníssono 



Quase três décadas depois de lançarem “Ride the Tiger”, álbum de estreia que saiu para a rua em 1986, o trio nascido em Hoboken, Nova Jérsia, oferece-nos o novo “Fade”, um disco com dez canções diluídas em 45 minutos.

Georgia, Ira e James, uma das mais bonitas famílias musicais do nosso tempo, que vem a Portugal nos primeiros dias de março (dia 1, Aula Magna; dia 2, Casa da Música), colocam agora na rua o 13º álbum da sua equilibrada e consistente carreira, depois de um pouco consensual e algo burguês “Popular Songs”, de 2009.

Para a história ficaram, por exemplo, álbuns charneira que marcaram o panorama indie internacional como “Fakebook” (1990), “Electro-O-Pura” (1995), “I Can Hear the Heart Beating as One” (1997) e “And Then Nothing Turned Itself Inside Out” (2000).

Depois de muita expectativa, uma primeira audição a esta dezena de canções revela um trabalho à imagem dos melhores Yo La Tengo. No fundo, temos em mão um álbum típico da genialidade da banda norte-americana, que se alicerça num misto de honestidade, simplicidade, despretensiosismo e, acima de tudo, talento.

“Fade”, ao contrário do que a banda fez na década de 1990, faz salientar a importância das guitarras e dos feed-backs agridoces. Canção após canção, sentimo-nos num universo que deambula entre fragmentos oníricos inofensivos e melodias com muita sacarose. Este é um disco feito a olhar para o umbigo, um trabalho interior feito para agradar aos fãs mais dedicados e gulosos e, desta vez, com a preciosa ajuda na produção de John McEntire, homem que deixou a sua marca, por exemplo, nos Tortoise e Sea and Cake.

Despreocupados, como sempre foi seu apanágio, pelas opiniões e pressões alheias, os Yo La Tengo cozinharam este disco para paladar próprio, provando a si próprios, claro, que conseguiram um prato auditivo no ponto, sem deixar esturricar ou cozer em demasia, ficando um sabor apetitoso nas “papilas” auditivas.

“Ohm”, a canção que abre o disco, e a mais longa de todo o álbum, é um exercício funk que condensa toda a mestria do rock de cariz indie errante. “Sometimes the bad guys go out on top / Sometimes the good guys lose” - são as frases sussuradas por entre riffs tímidos que abrem o disco. Procuraram os Yo La Tengo a redenção?

A seguir, a viagem segue com “Is Not Enought”, uma das mais orquestradas e bem tocadas canções do disco, que tem na voz de Ira e nos coros de Georgia as paredes-mestras de um edifício à beira do colapso amoroso, resultante de um matrimónio entre cordas várias. O passo seguinte é “Well You Better”, uma espécie de ultimato envolto numa bem-disposta e ritmada composição secundada com uns teclados ora dolentes, ora mais ritmados.

Mais à frente, “Paddle Foward”, um dos momentos mais bonitos do disco, revela-nos uma pop pujante com as guitarras a roçarem a ousadia de visitar parentes mais pesados. O resultado é uma viciante experiência que nos toca de uma maneira que só os Yo La Tengo conseguem.

Por sua vez, “Stupid Things”, suave nos primeiros acordes, incorpora na guitarra, desgarrada, ecos de uma certa juventude sónica, com a voz de Ira a dirigir-se a um planeta mais low-fi, que tem como satélite natural o krautrock. Se dúvidas se tivessem sobre a excelência deste disco, aqui, elas dissipam-se.

Mas este é também um disco onde a toada acústica, principalmente na segunda metade, é uma doce tentação. “Ill Be Around” e “Cornelia anda Jane” são peças musicais pouco recomendadas a diabéticos. Se, na primeira, é Ira que destila, não veneno, mas um açucarado discurso, já na segunda é Georgia que nos faz acelerar o coração com uma daquelas canções feitas mesmo, mesmo à sua (nossa) medida.

Seguem-se as muito competentes “Two Trains” e “The Point of It”, que servem também como a antecâmara para “Before We Run”, um exemplo acabado de uma excelente canção que só este trio consegue fazer e, aqui particularmente, com a ajuda de uma simpática orquestração que sustenta a beleza simples da estrutura desta última canção de “Fade”.

Podemos, em janeiro, dizer que estamos perante um dos melhores discos do ano? Sim, tanto para mais quando a certeza que nos acolhe é uma deliciosa realidade. Venham de lá mais discos assim, que os nossos sentidos agradecem. Ah, e março está mesmo a chegar...


Alinhamento:
01 “Ohm”
02 “Is That Enough”
03 “Well You Better”
04 “Paddle Forward”
05 “Stupid Things”
06 “I’ll Be Around”
07 “Cornelia And Jane”
08 “Two Trains”
09 “The Point Of It”
10 “Before We Run”

 Classificação do Palco: 9/10

in Palco Principal

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

MUSE
"The 2nd Law"




Alinhamento:
01. Supremacy
02. Madness
03. Panic Station
04. Prelude
05. Survival
06. Follow Me
07. Animals
08. Explorers
09. Big Freeze
10. Save Me
11. Liquid State
12. The 2nd Law - Unsustainable
13. The 2nd Law - Isolated System

O regresso dos Muse aos escaparates era aguardado com alguma relutância depois de “The Resistance”, um exercício maior que a própria que se revelou vazio e com poucos motivos de interesse. Três anos depois, “The 2nd Law”, título que nos remete para a Segunda Lei da Termodinâmica e a consequente leitura da mesma por parte de Matt Bellamy para encarar uma eventual saída da crise mundial que nos assola, revela-nos um disco coeso, ainda que muito longe da genialidade e frescura dos primeiros trabalhos da banda.

Ao sexto registo de originais, e assumindo-se como um dos grupos musicais mais bem-sucedidos da atualidade e fanáticos pelo lirismo sinfónico, os Muse resgatam um pouco da energia acumulada e, sem disserem adeus, esquecem um pouco o fantasma dos Queen ainda que os instantes iniciais de canções como “Panic Station” pareçam reproduzir uma conhecida malha de baixo de um tema de Freddy Mercury e seus pares e “Prelude” ser um instrumental perigosamente perto do universo dos seus mestres.

Deste disco vão sair, obrigatoriamente, alguns hinos que se vão ouvir um pouco em toda a história dos Muse que têm nos concertos de estádio o seu habitat natural. Os cantos operáticos de canções como “Survival” vão contrastar com a toada mais minimal e contida e dubstep de “Madness”, num registo próximo da pop à base de sintetizadores, e o destino vai ser a escalada ao topes musicais do planeta. Já a potente “Liquid State” pode fazer sorrir os que gostam de uns Muse mais rock puro e duro.

Homem mais consciente, adulto e recentemente pai, Bellamy faz questão de vincar o seu olhar pelo mundo. Se em “Animals”, o final do tema leva-nos a um ambiente típico dos mercados bolsistas retratando a ganância do capitalismo económico, “Follow Me”, abre com o bater de coração de um bebé, clara alusão ao rebento do vocalista.

Genericamente, o que de melhor nos traz este disco é a energia inata deste trio de músicos que está a tocar cada vez melhor e que libertam, sem qualquer constrangimento, uma forte energia e cadência sexual a cada acorde, assim como as influências transformadas em reportório (pouco) próprio. Músicas como “Supremacy” começam com um riff poderoso para, lentamente abraçar um ritmo de mais uma banda sonora de um qualquer James Bond. Para quem gosta de baladas, os Muse oferecem “Explorers”, um tema tão doce que deve por os fãs de primeira hora dos Muse de cabelos em pé. Por sua vez, “Big Freeze” soa tão U2 que pode levar-nos a pensar que estamos na companhia da banda de Bono Vox. Aproveitando a toada de “tributos”, “Saves Me” revela-nos o baixista Chris Wolstenholme perto da sonoridade vocal de Brain Wilson.

Surpreendentemente, ou não, as duas últimas faixas do fim do disco, “Unsustainable” e “Isolated Systhem”, estão mais próximas de um cenário de ficção científica, em género de banda sonora, e acabam por resultar bem no final de um disco que revela altos e baixos ainda que alguns furos acima do antecessor. Os Muse querem resistir, nós até os queremos ouvir mas sabemos que, dificilmente, regressaremos aos mais excitantes períodos do início da sua carreira.


Classificação 6/10


in Imagem do Som


domingo, 3 de fevereiro de 2013

ANTONY & THE JOHNSONS
"Cut The World"




Alinhamento:
01. Cut The World
02. Future Feminism
03. Cripple and The Starfish
04. You Are My Sister
05. Swanlights
06. Epilepsy is Dancing
07. Another World
08. Kiss My Name
09. I Fell in Love With a Dead Boy
10. Rapture
11. The Crying Light
12. Twilight

Em alegre sintonia com a Lua e o Mundo

Com quatro álbuns de originais gravados, e alguns EP’s, Antony Hegaty, uma das mais brilhantes vozes da atualidade, surge agora em versão ao vivo. “Cut the World” é o nome da nova pérola deste multifacetado performer, ícone pop e ativista social, que na companhia da Danish Chamber Orchestra gravou, em 2011, uma série de temas em território dinamarquês, composições que ganharam novos contornos com os brilhantes arranjos da responsabilidade da referida orquestra.

Este trabalho faz como que uma revisão aos anterior discos de Mr. Antony, sem o estigma ou a “pretensão” de um formato “o melhor de…”, e apenas tem a faixa que dá título ao álbum como novidade, a primeira música deste cd, peça essa que faz parte da banda sonora do mais recente filme do cineasta Robert Wilson, “The Live and Death of Maria Abramovic”.

Depois, Antony passa da música às palavras e “Future Feminism” é um discurso que reflete sobre a sempre polémica e fraturante questão da homossexualidade alicerçado em alguma ironia e sarcasmo. Segue-se “Cripple and Starsfish”, do álbum homónimo, de 1998, e a voz de Antony é antecedida por uma magnífica introdução da orquestra dinamarquesa. “You are my Sister”, de “I Am a Bird Now”, é a senhora, ou senhor, que se segue e, se dúvidas existissem sobre a complementaridade entre voz, piano e o restante apoio musical, aqui ficariam por terra e estamos perante um dos momentos mais altos do disco.

“Swanlights”, do disco com o mesmo nome, assume características épicas e até o som de alguém que tosse na audiência torna a atmosfera mais humana, especial. A música, com estes intérpretes, é uma das formas supremas de comunicação. Tudo é sentido, tudo é simples apesar de misterioso, como o próprio Antony afirma. É também ao som de piano que Antony ataca agora “Epilepsy is Dancing”, de “Crying Light”, aquela que é a mais curta prestação do álbum. Ainda com base no reportório do referido álbum de 2009, “Another World” segue a mesma bitola qualitativa e Antony faz uso da sua faceta revolucionária e pede um mundo melhor pois este, tal como o conhecemos, como diriam os R.E.M., está a acabar, felizmente.

Depois da calmaria, surge “Kiss My Name”, outro título de “The Crying Light”, numa toada mais marcial e com um final de “fanfarra”. O piano dá agora lugar às cordas e a música flui. “I Feel in Love With a Dead Boy”, do EP de 2001, outras das músicas mais dramáticas de Antony, arrepia.

O amor proibido é o mais apetecido, não importa o sexo. “Rapture” leva-nos de volta ao primeiro álbum e sentem-se lágrimas a cair pela face. Bonito, intenso, único. Para o final do disco estão reservadas mais duas músicas: “The Crying Light” e “Twilight”. Se a primeira remete-nos para um período de “consagração” de Antony, “Twilight” é o (re)começo da aventura deste fantástico cantor que assinalou a primeira faixa do álbum de estreia de Hegarty. Acaba a música e soam as palmas. Antony agradece, deseja boa noite e nós sentimos que fomos engolidos pelas sombras que brilham.

Classificação 8/10

in Imagem do Som

sábado, 2 de fevereiro de 2013

DEAD CAN DANCE
ANASTASIS

Filhos de um Sol Maior 




Depois de um hiato de 16 anos, os Dead Can Dance, ou melhor dizendo Brendan Perry e Lisa Gerrard, regressam com mais um (in)esperado disco de originais. Anastasis, termo de origem grega que significa “renascimento” ou “ressurreição”, chega-nos através da Pias Records e, musicalmente, vem no seguimento daquilo que Perry e Gerrard têm feito nos últimos tempos a solo, sendo que o primeiro teve a gentileza de passar por terras lusas aquando da digressão de Ark, o seu mais recente trabalho, ainda e sempre com o carimbo da mítica 4AD. Lisa Gerrard, a outra face da banda e uma das eternas musas do universo indie, tem revelado ao mundo uma produção e criatividade notáveis e, entre participações em projetos paralelos e bandas sonoras, os trabalhos desta australiana de 51 anos são sinónimo de um talento inesgotável.

Se antes do lançamento de Anastasis os Dead Can Dance iam deliciando os fãs com os volumes dos já famosos Live Happenings (EPs com atuações ao vivo da banda que podem ser descarregados através do sítio oficial da banda), este novo punhado de oito peças musicais revela-se uma agradável surpresa.

Anastasis começa com Children of the Sun, um misto de ambientes eletrónicos com cordas que e serve de mensagem de boas vindas a mais uma aventura e, desde logo, sente-se a atmosfera única desta banda. Brendan Perry canta: “We are the children of the Sun / Our Journey’s have just began … / There is room for everyone”. Confortavelmente instalados, de ouvidos bem atentos, somos levados para um universo paralelo, um local místico e onírico onde a beleza acolhe-nos de braços abertos.

A seguir, Anabasis, a segunda e belíssima faixa, traz-nos o “lamento” vocal de Lisa Gerrard, um autêntico canto de sereia. A voz de Gerrard surge como um elo de ligação entre o sonho e a realidade, o palpável e o inteligível. O som tem por base ambientes oriundos do Médio Oriente e fragmentos da Índia, muito a fazer lembrar algumas das criações de Spiritchaser, álbum de 1996. Ao terceiro tema, Agape, o céu abre as portas e entramos, de cabeça, no misticismo arabesco das mil e uma noites. O ritmo é contagiante, os sons envolvem-nos.

Amnesia, um tema de ambientes góticos assombrado pela voz de um Brendan Perry cada vez mais seguro da sua função de cantor, ganha contornos épicos com os arranjos orquestrais que remetem para os Dead Can Dance nos anos 80. Kiko, um dos temas mais fortes e escuros de Anastasis, mistura arranjos e texturas electrónicas e reminiscências asiáticas. A voz de Lisa faz o resto.

Opium traz de novo Perry ao microfone e resulta num tema de características new wave que aguça os sentidos. As palavras tomam forma e o cérebro fica inebriado por sons que nos levam a lugares, a sítios, a memórias perdidas ou a sentimentos familiares. Chega agora a vez de Return of She-King, numa toada épica carregada de lembranças fantasmagóricas de um universo medieval, assombrado. O registo vocal de Lisa Gerrad multiplica-se, sobrepõe-se, agarra-nos. Um autêntico hino à beleza que junta, pela primeira vez em Anastasis, as vozes dos dois líderes da banda que sempre se complementaram de uma forma transversal.
Mais uma vez tons orquestrais e eletrónicos convivem em harmonia. All in Good Time, música que encerra o disco, remete-nos para um universo simular ao que acontecia em Into the Labyrinth, de 1993, e a voz masculina do “casal” sobrepõe-se ao ambiente de tendências sónicas e o silêncio aproxima-se devagar, de forma tranquila, naturalmente.

Globalmente, Anastasis, mais de três décadas depois da formação desta dupla de sonho, vem confirmar a genialidade dos Dead Can Dance, uma banda que nada tem a provar mas que faz gala em fazer música inteligente, sagaz, que alimenta espírito e alma. Num ano em que, pela primeira vez, atuam em Portugal (Casa da Música, 24 de outubro), este novo álbum vem aguçar ainda mais a vontade de ver em palco um dos projetos musicais mais inovadores e carismáticos do universo musical.

Nota final: 8,5

in Espalha Factos