sábado, 8 de outubro de 2016

“Santuário”
de Andrew Michael Hurley

O gótico fica-lhe tão bem


O universo da literatura de contornos mais “escuros”, de tendências mais ou menos góticas, pode, tendencialmente, cair no espetro dos lugares-comuns, com “vícios” de certa forma esperados. Com milhares de livros do género a serem lançados todos os anos o perigo do produto final ser pouco (ou nada) atrativo é mais real e convincente do que alguns dos seus enredos.

Mas, felizmente, existem exceções e quando isso acontece o prazer da leitura é pleno. Um exemplo disso é “Santuário” (Bertrand, 2016), livro de estreia do inglês Andrew Michael Hurley que aquando da sua primeira edição em 2014, num lançamento limitado de 300 exemplares, deixou leitores e crítica rendidos, logrando mesmo alcançar o Costa Book Award 2015 na categoria de romance de estreia, assim como o British Book Award 2016 enquanto melhor obra debutante e melhor livro do ano.

O mérito esteve, está, na boa gestão de um perfil que mistura ambientes de terror com sopros góticos, casas em ruínas com ambientes húmidos e escuros, viaturas avariadas com propositados dilúvios, a voracidade da Natureza com a mutilação de animais, padres, bruxaria, religião e muita, muita superstição. Mas o principal trunfo de Michael Hurley é conseguir tornar Loney, uma zona costeira a noroeste de Inglaterra que servia de santuário para tantos desejados milagres e o espaço onde decorre a ação de “Santuário”, no protagonista.

É ai que Smith, o narrador, regressa amiúde durante todo o livro e nos oferece fragmentos do seu passado na companhia de Hanny, o seu pequeno e protegido irmão mudo, os seus pais, o velho casal Belderboss e os párocos Wilfred, primeiro, e Bernanrd, e como primeira revelação, sabemos da descoberta de um cadáver de uma criança em Coldbarrow, na costa de Loney.

Algo de terrível parece ter acontecido e o resultado dessa tragédia são os restos encontrados na lama. Smith e Hanny, agora adultos, são forçados a recuar no tempo e a angústia entretanto esquecida regressa traiçoeira e assustadora. Ao leitor, resta envolver-se neste jogo bidimensional e ser embalado por uma juventude sublinhada pelas fortes vagas da costa de Loney e sentir o fel de outrora.

Ainda que longe fiquem os tempos em que os pais partiam em peregrinação pascal para o referido desalentado local, para pedir ajudada divina para o silêncio votada ao pequeno Hanny, as memórias continuam assustadoras.

Através de uma escrita inteligente e sedutoramente simples, “Santuário” envolve-nos na sua tenebrosa atmosfera e cada virar de página é um momento de ansiedade e incerteza, que assombra. E mais do que aquilo que está escrito, é o que é induzido, sugerido, que mais sufoca, estilo esse que nos remete para, por exemplo, o fantástico universo de “Nosferatu” de F.W. Mournau.

Estamos perante um exercício que deixa a imaginação correr livre através de uma fundamentada descrição que torna o ranger de uma porta, a avaria de um automóvel, uma singela rapariga numa cadeira de rodas ou um simples acenar num episódio opressivo construído à base de diálogos longe de estilos supérfluos e diretos ao âmago da trama.

Existe ainda tempo para colocar o dedo na ferida de algum misticismo associado à religião, ao exagerado espírito devoto que pode cegar em nome de uma fé gasta, perra e que teima em fugir do seu propósito, forçando a já ténue linha entre racionalidade e inverosímil e a esticar ao limite que pode mesmo significar a morte da crença.

A narrativa, construída à base de um isolamento físico e mental, é cozinhada numa espécie de limbo entre o supernatural e o estranho, onde o simples ato beato pode ser o princípio e o fim de uma qualquer certeza divina e que o não ingresso ao excesso de momentos movidos a sangue e horror apenas sublinham a mestria do seu escriba pois o gótico não pode ser confundido apenas com muita hemoglobina mas sim definido por um fino recorte de denso conteúdo.

In Rua de Baixo

“O Meu Nome é Lucy Barton”
de Elizabeth Strout

Anatomia urbana da solidão


 
Alguns livros revelam-se absolutamente irresistíveis logo após as primeiras páginas e a sensação de estarmos perante uma estória memorável tem efeito imediato. Essa premissa aplica-se, na perfeição, a “O Meu Nome é Lucy Barton” (Alfaguara, 2016), o mais recente livro de Elizabeth Strout que chegou recentemente às livrarias portuguesas e que tem tudo para ser uma das obras mais marcantes na rentrée.

Através de uma simplicidade narrativa absolutamente desarmante, Stout – autora que já arrecadou o Pulitzer, os prémios Los Angeles Times Art Seidenbaum Award e Chicago Tribune Heartland Prize, tendo sido também finalista do PEN/Faulkner e Orange Prize, em Inglaterra – volta ao universo do conto, no caso versão xl, e apresenta-nos um pouco da vida de Lucy Barton, uma mulher comum mas cujo extraordinário caráter e dúvidas existenciais nos remetem para um dos recantos mais íntimos do ser humano: a (sua) solidão.

Obra breve, “O Meu Nome é Lucy Barton” revela a existência de, claro está, Lucy, uma autora de contos, “agora”, bem-sucedida que na sequência a uma rotineira intervenção ao apêndice se vê na iminência de passar algumas semanas numa cama de um hospital. Como consolo, além de uma janela com vista para o edifício Chrysler e dos sons da cidade que nunca dorme, Lucy recebe a inesperada visita da mãe depois de muitos anos sem se verem, algo que vem atenuar as muitas saudades da família.E ao longo de cinco noites, mãe e filha têm aquilo que nunca tiveram, tempo e espaço para dedicar à outra.

Entre as entradas e saídas do pessoal médico, Lucy e a mãe exorcizam um passado marcado por várias formas de ausência e embrenham-se em mais ou menos longas discussões onde as relações humanas, e alguma coscuvilhice, brotam uma espécie de reconciliação verbal e, de certa forma, emocional.

Fazendo recurso de um intrincado estimulante exercício de memória, Lucy, no papel de narradora, cauteriza alguns dos acontecimentos mais marcantes da sua vida, como o isolamento e o sentimento de pobreza vividos na infância, a ausência de uma estrutura afetiva (e) familiar, a luta para se tornar escritora, o(s) matrimónio(s) e maternidade e, essencialmente, a relação conturbada com os seus pais, algo que desperta sentimentos prosaicos, dolorosos e reveladores de um amor distante.

Ao longo do livro há também lugar para uma amarga sensação por aquilo que foi uma infância dura em Amgash, Illinois, em que as principais memórias resvalam para a miséria humana onde os abusos, principalmente os emocionais, abriram feridas que nunca se fecham por completo. Esse retorno ao passado é um dos fios condutores de “O Meu Nome é Lucy Barton” e é com o seu progresso, por vezes cronológico, que somos presenteados com episódios avulso de uma vida que teima em não deixar que Lucy consiga, real e incondicionalmente, amar e amar-se, ainda que os sentimentos que nutre pelas filhas seja quase a única esperança para que tal aconteça.

Quase como se de um puzzle emocional se tratasse, Lucy revela, em forma de desabafo e desafiando passado, presente e futuro, por exemplo, como conheceu uma escritora numa loja de roupa, e que mais tarde seria uma das suas musas; a paixão pela comunidade índia e a injustiça e violência que fora alvo; a homossexualidade reprimida do seu irmão; uma inesperada paixão alheia pela figura de Elvis Presley; o quotidiano hospitalar que segrega os portadores de SIDA; os conselhos de uma médica que tem a fórmula para que não se torne parecida com a própria mãe; como é fácil a paixão por quem trata e se interessa por nós; estranhos unidos pela inteligência e perceção da condição humana.

Unem esses relatos uma infinita ternura e gentileza enraizada nas palavras de Lucy (ou Stout) que fazem chegar ao leitor uma tensão emocional que rapidamente contagia a veracidade com que se lê e faz com que um livro com pouco mais de 170 páginas se torne numa verdadeira enciclopédia sobre a vida real.

In Rua de Baixo

“O Silêncio do Mar”
de Yrsa Sigurðardóttir

Perfume (d)a morte


Alguns dos melhores enredos narrativos não precisam de muita complexidade bastando simples linhas de sóbria contextualização. É essa a filosofia que fez nascer “O Silêncio do Mar” (Quetzal, 2016), o mais recente livro da islandesa Yrsa Sigurðardóttir.

Tudo começa, ou termina, quando um iate de luxo de nome “Lady K” embate contra o cais do porto de Reiquiavique. Da tripulação inicialmente composta por sete passageiros, e que partiu de Lisboa decidida a enfrentar o frio mar invernoso a caminho da Islândia, não resta vivalma.

Sem esperança de resolver este mistério, e de encontrar o paradeiro dos que vinham a bordo, os pais de um dos passageiros desaparecidos contratam a advogada Thóra Gudmundsdóttir na esperança de ainda conseguirem acionar o seguro de vida do filho e assim conseguir assegurar o sustento da neta, único membro de uma família de cinco que não embarcou nesta viagem devido à sua tenra idade.

O desespero invadiu o casal idoso e o desconhecimento que o desaparecimento de Aegir, seu filho, assim como da nora e das netas gémeas Arna e Bylgja, provocou uma série de dúvidas sobre o paradeiro dos familiares.

Estão assim lançados os dados para um dos livros mais negros da rentrée cuja narrativa se divide entre capítulos que narram a própria viagem e o presente, e vai manter o leitor completamente agarrado a um obra construída à base de um misto de medo, mistério e uma interessante leitura do estado da economia vivida na Islândia.

E foi essa instabilidade financeira que fez com que o “Lady K” tenha mudado de donos e Aegir entre em cena depois de um dos membros da tripulação ter partido uma perna não podendo assim assegurar os serviços a bordo. A viagem que deveria ser agradável e uma extensão das férias da família de Aegir – cinco dias a bordo de um iate de luxo é um privilégio de poucos – transforma-se num pesadelo para quem teve por destino fazer este malfadado percurso.

Gudmundsdóttir utiliza a sua habitual mestria narrativa para transformar a leitura de “O Silêncio do Mar” numa espécie de exercício pendular entre passado e presente com Aegir e Gudmundsdóttir a assumirem o papel de narrador em cada uma dessas dimensões.

Se, por um lado, vamos sabendo mais pormenores sobre a própria viagem, por outro surgem dados nascidos da investigação da advogada que contextualizam o todo. Outro dos trunfos deste livro é a atmosfera arrepiante que brota a cada página e que é muito bem sublinhada pela sinistra tripulação do iate assim como, e principalmente, pela presença das gémeas.

Dizem que o iate está perseguido por uma espécie de maldição desde a sua construção, ainda que alguns recusem tal destino, e o cenário de tragédia à sua volta não deixa ninguém indiferente, assim como o clima claustrofóbico que vai crescendo ao longo dos episódios ocorridos a bordo que jogam na perfeição com a gradual descoberta dos personagens. E nesse particular Aegir ocupa plano de destaque devido a uma personalidade dúbia mergulhada em incerteza, medo, culpa, tristeza e, finalmente, desespero.

A escrita honesta e por vezes visceral de Yrsa Sigurðardóttir torna ainda tudo mais assustador, adensando a gravidade das tempestades vividas em alto mar, os percalços com o equipamento do iate e o isolamento que cresce na alma de todos. Ninguém está a salvo a bordo do “Lady K” e a diferença entre heróis e vilões é cada vez mais ténue a cada capítulo e a morte assume-se como uma esperada certeza, enredo que lembra, assustadoramente, “As Dez Figuras Negras”, um clássico intemporal da mestre dos policiais Agatha Christie, e este é, sem dúvida, o maior elogio que se pode fazer a este livro que vai deixar abismados os fãs de um bom thriller.

In Rua de Baixo