segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

“O Retiro” de Rodrigo Leão + Orquestra e Coro Gulbenkian

Elogio à melancolia


Há discos que não tem início, meio, e, principalmente, fim. A harmonia geral confere ao mesmo uma espécie de constante beleza, uma perpetuação da própria vida sonora, independentemente do “número” do alinhamento, da sua ordem de apresentação.

E isso acontece em “O Retiro”, primeiro trabalho de Rodrigo Leão com selo Deutsche Grammophon, um disco ambicioso, pensado e trabalhado pelo músico e compositor português e que contou com a colaboração dos mais de 100 elementos que constituem a Orquestra e o Coro Gulbenkian.

O resultado é um verdadeiro hino à melancolia, em 13 tomos, que desafia o próprio trajeto musical de Leão, que já navegou por oceanos pop e minimalistas cujas vagas eletrónicas alternavam com ventos mais contemporâneos ou clássicos. Neste novo trabalho, que na discografia do homem que integrou bandas como “Heróis ou Mar”, “Sétima Legião” ou “Madredeus”, regista-se, propositada e conscientemente (ou não), um laivo reativo ao mais eletrónico “A Vida Secreta das Máquinas”, recebendo-se, de ouvidos bem abertos, composições muito emotivas onde a expressão sussurrada é um dos elementos mais presentes.

Um dos maiores exemplos disso, é “Florestas Submersas”, derradeira faixa do disco e música composta a pensar na exposição patente no Oceanário de Lisboa do fotógrafo e aquarista nipónico Takashi Amano, entretanto falecido no verão passado, e que é sinónimo de mais de 12 minutos de puro deleite auditivo que mistura ecos de esperança e solenidade, sob a forma de um sintetizador singelo e omnipresente, que cresce de importância à medida que a restante orquestra se faz sentir presente (ou temporariamente “ausente”).

O início do disco, inebriante, denso, reconfortante, faz-se com a faixa título, um crescendo seguro que procura um equilíbrio entre música e voz, entre o sintetizador de Leão e os múltiplos ecos latim do coro, que determina um casamento perfeito. “Respirar”, a composição seguinte, continua o referido percurso harmonioso, agora com violinos e sopros a reclamar maior atenção. Há ainda espaço para salpicos do acordeão de Celina da Piedade, parceira de “luta” de Leão há já muitos anos, que nos remete para um universo de uns Madredeus do disco de estreia ou de “Ave Mundi Luminar”, primeiro trabalho de Leão a solo.

Já momentos como “O Peregrino” ou “Julgamento”, mais encorpados e épicos, muito por culpa da participação vocal do Coro Gulbenkian, são como que uma aproximação às (bem-sucedidas) experiências de Rodrigo Leão ao universo das bandas sonoras, e servem de contraponto face a músicas mais introspetivas como “Inverno Triste”, “Um Homem Estranho”, “Restos da Vida” ou “Melancolia”, esta última música que conta com a participação da voz de Ana Carolina e nos reporta para ambientes próximos da filosofia de discos como “Cinema” ou da banda sonora da série “Equador”.

Outros dos grandes trunfos de “O Retiro” reflete-se na capacidade de Rodrigo Leão conseguir um compromisso entre linguagens mais simples e registos mais eruditos, com ou sem aspas, mas sempre donos de uma intrínseca e obsessiva (entenda-se de uma forma positiva) noção de tranquilidade.

Exemplos disso são composições como “Bússola” ou “As Pessoas” que resultam de uma mestria que nasceu de uma experiência que remete para as mais de três décadas de carreira. Ouvir “O Retiro” é partir numa viagem pelo mundo que Rodrigo Leão criou à conta de muita criatividade, competência e sentido humano pois é mesmo esta última característica que mais simboliza a sua música: a humanidade.

Mas também um forte e acutilante sentido de universalidade (neo)clássica que transforma este disco num dos melhores de uma carreira que teima afirmar Rodrigo Leão como um dos maiores compositores da sua geração, à imagem de nomes como Ólafur Arnalds, Max Richter, Jóhann Jóhannsson ou Dustin O'Halloran.

Alinhamento:
1. O Retiro
2. Respirar
3. O Peregrino
4. O Tempo do Fim
5. Jardim Misterioso
6. Inverno Triste
7. O Julgamento
8. Melancolia
9. Restos da Vida
10. Um Homem Estranho
11. Bússola
12. As Pessoas
13. Florestas Submersas

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal
“O Fantasma” de Jo Nesbo


Harry Hole é um dos mais interessantes e entusiasmantes personagens dos policiais contemporâneos. Jo Nesbo, seu criador, além de um dos autores mais completos e competentes das últimas duas décadas, tem o condão de aliar uma ímpar mestria de criar thrillers à construção de ambientes envoltos de um negrume típico das sociedades modernas.

Estas são algumas das razões para abraçar “O Fantasma” (D. Quixote, 2015) com a habitual paixão que qualquer fã de um bom policial, nórdico ou não, habitualmente dedica às criações nascidas da mente do autor norueguês.

Ao nono episódio (note-se que a editora D. Quixote tem apresentado os tomos da saga Harry Hole não necessariamente por ordem cronológica, sendo que “Cockroaches”, segundo capítulo da colecção, tem edição portuguesa prevista para o próximo mês), Nesbo faz regressar o ex-polícia à sua Oslo depois de uma passagem por Hong Kong.

Hoje, envergando uma atroz cicatriz na face e com um dedo de titânio, o antigo inspetor enfrenta mais uma terrível provação que o leva a reviver dramas e tramas do passado. Inesperadamente, Oleg, filho de Rakel, é preso. A principal acusação coloca o jovem na pele do principal suspeito de um homicídio. Hole recusa a aceitar a situação, pois o rapaz que ajudou a criar não encaixa no perfil do assassino, decidindo investigar por sua conta e risco todo o mal explicado processo para encontrar o verdadeiro culpado.

Ainda que os tempos de polícia sejam parte do passado, as amizades que Harry ganhou e fomentou enquanto agente da autoridade são agora os aliados “perfeitos” para desvendar este intrincado caso. Só assim poderá embrenhar-se no perigoso e escuro mundo do tráfico de droga que, por estes dias, tem como substância rainha a violin, uma poderosa e viciante forma de afastar a realidade e entrar num mundo de sonho que rapidamente se torna num pesadelo.

Entretanto o perigo espreita a cada esquina de Oslo. O rei do submundo das ruas é conhecido por Dubai, uma espécie de fantasma omnipresente que poucos viram a face mas que todos temem. Conseguirá Hole resolver mais um enigmático e perigoso puzzle?

Para encontrar a resposta resta devorar as mais de 500 páginas de “O Fantasma”, mais um excelente livro de Nesbo que traz aos escaparates uma trama terrífica, com um enredo irrepreensível e um poderoso final construído com ingredientes que misturam corrupção, assassinatos, política e um conflito de interesses egoístas que tornam as pessoas simples peões de um jogo sem regras ou tréguas, onde a confiança é um bem precioso e a traição um modo de vida.

Harry Hole, ex-polícia, ex-marido ou ex-“pai”, sente todo este negrume na pele e na sua mente redopiam verdades, mentiras e medos alimentados por memórias que crescem à boleia de vícios como o álcool, a droga e a sempre presente música.

Todos, directa ou indirectamente, são afectados pelo vício, mas o escritor norueguês aponta também o dedo a outro flagelo: a corrupção que leva políticos a querer pintar uma nova Oslo destinada ao turismo e à promoção económica, preferindo varrer outros problemas para debaixo do tapete.

Neste favorável contexto, as ruas são o palco para rixas entre gangues rivais que controlam cada esquina, cada vida à beira de ser devorada por uma qualquer ratazana (humana). Resta portanto a Hole tentar repôr uma certa justiça para conseguir salvar o nome e a honra de Oleg, seu “filho”, e hoje mais um toxicodependente que aspira por mais uma dose.

As perguntas são muitas, as dúvidas surgem a cada minuto, e Harry vai ter de lutar contra um dos mais empenhados criminosos nascidos da mente de Nesbo. Mais do que uma questão de justiça ou de honra, Harry está determinado a lutar contra o Mal a bem da verdade. Mas será que Hole é hoje um homem capaz de encarar esta verdade?

In deusmelivro