sexta-feira, 31 de outubro de 2014

“O Amigo Andaluz”
de Alexander Soderberg

Crime à Escala Internacional



O espaço literário internacional dos romances tidos como policiais é frequentemente assaltado por uma next big thing oriunda dos países nórdicos. As expectativas são muitas mas na maioria das vezes, infelizmente, o que testemunhamos é uma constante repetição de fórmulas ainda que, por vezes, existam casos muito pertinentes.

Apelidado como “a nova voz do policial nórdico”, Alexander Soderberg – sueco natural de Estocolmo que tem experiência como argumentista na televisão do seu país e inclusive já tenha adaptado obras de Camilla Lackberg – faz-nos chegar “O Amigo Andaluz” (Porto Editora, 2014), o primeiro tomo da trilogia “Brinkmann” e que tem como figura central Sophie Brinkmann, uma enfermeira viúva que ao envolver-se com um ex-paciente vê a sua vida mudar completamente.

O culpado dessa alteração é Hector Guzman, um homem elegante e sofisticado que por trás de um charme irresistível lidera uma rede internacional de crime organizado. Fruto da sua condição, Guzman não é pessoa de aceitar um não como resposta e o vasto leque de recursos que apresenta é um garante de vitória face a qualquer obstáculo ou rival.

A viver uma situação emocional que caminha para um esperado equilíbrio face à perda precoce do seu marido, Sophie tem por melhor companhia e companheiro, Albert, o seu filho de 14 anos, mas a presença de Hector vai trazer um sol há muito esquecido.

Aos poucos, Guzman conquista a atenção e o coração de Sophie que se deixa levar. Mas o mundo do andaluz é escuro como as trevas. O tráfico de drogas não obedece a qualquer regra e nada melhor que possuir um poderoso manancial bélico para conseguir a vitória.

Enquanto a enfermeira está anestesiada com a atenção de Guzman, a sua casa está sob vigilância e a sua família em risco. A polícia abeira-se de Sophie para a ajudar mas esta está dividida. Em quem poderá confiar? Em um criminoso charmoso e apaixonante ou em um sistema policial que utiliza métodos estranhos e perigosos?

“O Amigo Andaluz” não é um livro fácil. Até o leitor encontrar o ritmo e a orientação correta para se inteirar desta obra de Alexander Soderberg aconselhamos vivamente o recurso a uma das primeiras páginas do romance que tem uma lista de personagens que são muitos e de variadíssimas nacionalidades.

Ao contrário da maioria dos romances policiais, nórdicos ou não, “O Amigo Andaluz” não tem uma narrativa “padronizada”. Neste livro não se procura um assassino de um crime em particular e o rumo da estória assemelha-se às camadas de uma cebola, tantas são as suas tramas. Suecos, russos, espanhóis e alemães disputam entre si a atenção e partilham um mundo sórdido no qual está retratada a fragilidade do ser humano.

Dividido em quatro partes, “O Amigo Andaluz” observa capítulos que divergem a sua atenção entre muitos, acreditem, personagens e locais do planeta. À medida que a tensa história se desenrola, melhor o leitor capta o seu ritmo ainda que neste primeiro volume da trilogia sejam deixadas muitas pontas soltas e a coerência de alguns acontecimentos e personagens fazem esperar que os próximos livros da saga “Brinkmann” sejam, de facto, esclarecedores.

No melhor e no menos completamente definido está a personagem de Sophie cujo crescimento e mudança de perfil durante as quase 500 páginas de “O Amigo Andaluz” assume-se como um dos pontos mais fortes em termos de expectativa para as próximas aventuras da enfermeira sueca e restante (imenso) elenco.

Livro de uma generosa complexidade, “O Amigo Andaluz” mistura traços épicos como situações que combinam momentos de ação e verdadeiro thriller que apontam para um lado mais espetacular e cinematográfico e pode transformar Sodergerg em mais um nome a ter em conta em termos do policial que vem do frio mas a sua confirmação deve, esperemos, chegar com a restante saga “Brinkmann”.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

“Pontes de Sarajevo”
Vários realizadores

Episódios de vida de uma Cidade



A Europa e o Mundo mudaram significativamente nos últimos 100 anos. Duas Guerras Mundiais passadas, muitos países nascidos e impérios terminados, alteram, definitivamente, a face de um planeta marcado pelos conflitos e as fronteiras políticas assumiram a forma de um intrincado puzzle depois um século de discórdia.

Assim chegamos a 2014, ano que lembra o centenário da morte do Arquiduque Francisco Fernando à mercê de Gavrilo Princip, um anarquista radical sérvio que “provocou” uma verdadeira revolução mundial.

A propósito nessa celebração, e sob a direção artística de Jean-Michel Frondon, treze cineastas europeus foram convidados a dedicar a sua câmara a Sarajevo e ao que a cidade significa para a cronologia da Europa nos últimos 100 anos.

Fruto de abordagens e filosofias díspares entre si, “Pontes de Sarajevo” é um projeto delicado cuja pertinência se revela através das perspetivas dos realizadores convidados cuja orientação e origem são sinónimo de uma muito pertinente análise de uma cidade que vive sob o efeito de uma retorcida e dilacerante memória que a assombra desde 1914.

Em uma viagem entre o passado e os traumas associados a um presente dorido, “Pontes de Sarajevo” – trabalho que teve a honrar de configurar na seleção oficial da mais recente edição do Festival de Cannes –, assume uma pretensão exorcista rumo a um estado de redenção.

O ponto de partida desta aventura, “Querida Noite”, um trabalho do búlgaro Kamen Kalev, retrata o próprio ato do assassinato de Francisco Fernando na noite de 28 de junho de 1914, perto da ponte romana da capital bósnia, episódio que dinamitou a política europeia e despoletou a Primeira Guerra Mundial.

Ao longo de cerca de duas horas, somos convidados a assistir a uma sucessão de eventos cronológicos que se pode traduzir (ou não) na história recente de Sarajevo e cabe a Kalev o privilégio de abrir a sequência com uma visão onírica que mistura uma profunda reflexão entre o destino, a providência e o livre arbítrio. Os grandes planos de Kamen Kalev revelam a intimidade de um ser (Francisco Fernando) à beira do sacrifício onde o medo se traduz na massa anónima.

E é esse também o sentimento que o sérvio Vladimir Perisic tenta transmitir em “A Vontade das Sombras”, um exercício em surdina construído com o auxílio de um conjunto de confissões sublinhadas por uma câmara que avança por entre pedaços de uma memória coletiva aqui representada por um arquivo do género bibliotecário. Tal como em outros momentos de “Pontes de Sarajevo”, o papel do espetador encontra paralelismo em um peculiar instrumento voyeur que versa sobre um acontecimento transversal que é a história da génese do conflito dos Balcãs.

O terceiro tomo deste conjunto fílmico é da responsabilidade do italiano Leonardo di Contanzo e “O Posto de Vigia” leva-nos até a uma trincheira da Primeira Guerra Mundial onde um pequeno pelotão de soldados italianos tenta reconquistar um posto de vigia que está assombrado pela exímia pontaria de um atirador inimigo.

O cheiro a morte, a desespero, a medo puro e duro, sente-se em “O Posto de Vigia” e é sinónimo do dilema do soldado em enfrentar a morte ou optar pelo cobarde ato suicida. A honra da guerra é a medalha dos destemidos e a cruz dos anónimos.

Já “Princip, Text”, da alemã Angela Schanelec, espelha algumas passagens de uma entrevista de Gavrilo Princip que se confunde com laivos de urbanidade contemporânea e fala do fim da Sérvia e de um ideal político que representa a salvação da alma. Os grandes planos dos rostos do jovem casal que lê os excertos de Princip são o espelho dessa dicotomia entre a paz e o conflito (interior).

“Europa”, do romeno Christi Puiu, revela um ambiente natalício que tem como figuras centrais um casal que no conforto da cama reflete sobre o livro “A Análise Espetral da Europa”, um misto de reflexão sobre os conflitos raciais dos Balcãs e uma atribuição de culpa, mas que deixa também espaço para a especulação de datas e o fator coincidente do aspeto numérico das mesmas. Mais uma vez, a câmara espreita a narrativa de uma perspetiva distante mas atenta e assim o espetador entra pelo quarto do casal fruto de uma porta convenientemente aberta e que convida à partilha.

Cabe ao franco-suíço Jean-Luc Godard um dos exercícios mais complexos de “Pontes de Sarajevo”. Dono de uma linguagem cinematográfica muito própria e experimental, Godard transforma “A Ponte dos Suspiros” em uma narrativa que resulta de um sucessivo quebranto de sons e imagens que mistura o bem e o mal, a morte e a sobrevivência, a violência e o conflito, através de uma forma documental. Faz-se o elogio de uma abordagem que coabita matéria e espírito e onde o poder da imagem (no caso a Fotografia enquanto expressão) capta uma realidade em estado bruto.

Tendo como pano de fundo um bonito preto e branco, o ucraniano Sergei Loznitsa oferece-nos “Reflexo(e)s”, um interessante esboço que faz entender as duas perspetivas de uma mesma imagem e que reúne em si a sobreposição de uma fotografia sobre um episódio quotidiano.

Tendo como matéria-prima fotografias dos defensores sérvios da autoria do bósnio Milomir Kovacevic, Loznitsa cria um ambiente que convida à abstração da visão face ao elemento da memória. Neste caso, é a simplicidade que se revela o maior trunfo.

“A Viagem de Zan”, do espanhol Marc Recha, conta-nos a epifania de um rapaz que vive com a sua família no interior da Catalunha que tenta entender um conflito responsável pelo abandono da sua terra natal. Para conseguir o desejado equilibro, Zan conta com as memórias que ganham vida pela voz dos relatos do seu irmão.

Recha consegue um filme de uma beleza fotográfica impar e joga com aquilo que o Homem tem de mais sagrado: os seus sentimentos. Um dos momentos mais inspirados de “Pontes de Sarajevo”.

Já a bósnia Aida Begic não segue esse lado mais narrativo e aposta num género documental que torna “Álbum” em um testemunho emocional da relação entre a cidade e os seus habitantes, entre as memórias de um conflito e a esperança de um futuro melhor. Sarajevo é, através da lente de Begic, uma paixão, um primeiro amor que nunca se esquece mas que entretanto terminou.

“Sara e sua Mãe”, da autoria de Teresa Villaverde, mostra a mudança de casa de uma família que conta com a ajuda de uma amiga da pequena Sara. Enquanto se abrem caixotes e se arrumam coisas, são as memórias que se sentem, umas partilháveis outras sob a forma de íntimo segredo. A realizadora mostra também como a cultura é um fenómeno que caiu no esquecimento da Sarajevo contemporânea que encerrou os seus museus e outros espaços lúdicos castrando assim o lado cultural de um povo.

“A Ponte”, do italiano Vicenzo Marra, revela um casal sérvio que abandonou o país aquando do cerco de Sarajevo e durante duas décadas conseguiu equilibrar-se em uma terra estranha e não deixando que as diferenças (ele muçulmano, ela cristã) assombrassem a sua existência.

Marra filma a saudade entendida de diferentes ângulos, sentimento esse que apenas é desafiado pela morte de um ente querido que faz o casal recuar ao passado e sentir a dor da perda antigas…

De França, sob a batuta de Isild Le Besco, surge um dos mais emocionantes relatos de sobrevivência de “Pontes de Sarajevo” e a história de um menino de cinco anos, órfão de pais e que vive com a avó, e que luta pela sua vida social e fraterna, é muito comovente.

Em uma cidade vítima de um conflito quase eterno, o nosso pequeno herói vagueia pela urbe e serve-se desse anonimato para se assumir como uma peça fundamental em um cenário em tons cinza. A camara de Besco acompanha esses atos de bravura com descrição e uma apaixonante sobriedade.

“Pontes de Sarajevo” tem como último capítulo “O Silêncio de Mujo”, da suíça Ursula Meier e mostra um treino de futebol onde Mujo, uma criança de dez anos, torna-se no protagonista ao falhar uma grande penalidade e ser obrigado a procurar a bola para lá da cerca.

Paredes meias com o campo, está um cemitério que mostra a triste realidade de uma cidade dividida entre muçulmanos e católicos e cujas lápides revelam vidas perdidas de forma precoce. Nesta viagem ao “reino dos mortos”, Meier transporta Mujo para o seio de uma realidade que mostra as divisões provocadas entre a vida e a morte e como um abraço anónimo pode ser sinónimo de um esparso momento reconfortante.

Pelo meio das curtas, surgem animações da autoria de Francois Schuiten e Luis da Matta Almeida que servem de interlúdio e fazem a ligação entre as referidas 13 obras que mostram algumas das feridas de uma cidade que teimam em não sarar.

No seu todo, “Pontes de Sarajevo” faz a ligação entre a memória e o presente sem descartar uma ambiência nostálgica, mas sempre com um sentimento de esperança, otimismo e fé, nunca esquecendo o lado cultural de um povo que, gradualmente, volta a reclamar tal desígnio. O futuro a todos pertence e estes trezes pedaços de história vão fazer parte dele.

In Rua de Baixo

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Mão Morta em entrevista

"A música salva-nos a alma - e de que maneira!" 



No ano em que comemoram três décadas de existência, os Mão Morta lançaram “Pelo Meu Relógios são Horas de Matar”, um registo pesado e lento, que nos traz de volta o peculiar universo musical da banda de Adolfo Luxúria Canibal. E foi o vocalista da banda que nos revelou alguns dos pormenores que levaram à génese deste disco, cujo perfil metafórico e acutilante apela à transformação e renovação de uma sociedade entre a crise e a parede, castrada de alternativas.

Palco Principal – Tal como prometido, “Pelo Meu Relógio são Horas de Matar” é um disco mais pesado e niilista, comparativamente aos últimos trabalhos dos Mão Morta. Podemos assumir o mesmo como um álbum conceptual, como um exercício simbólico de pensar a crise que nos assola? 

Adolfo Luxúria Canibal - Estou de acordo que é um álbum mais pesado, sobretudo tendo em conta o disco anterior, mas de maneira nenhuma é mais niilista – bem pelo contrário, é um registo cheio de energia redentora, que a partir de uma situação negativa traça possibilidades para a sua superação. Não chega a ser um álbum conceptual – conceptual era o “Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar se Tornou Irrespirável” –, mas sim um disco temático, como o são grande parte dos discos dos Mão Morta. E é efetivamente um exercício de pensamento sobre a realidade portuguesa, sobre o quotidiano que nos destrói.

PP – Ao longo do disco, está presente um sentimento de vertigem associado ao Homem enquanto ser social, que perdeu a sua individualidade, a capacidade de pensar, sendo subjugado a interesses conjunturais. “Hipótese de Suicídio” espelha, por exemplo, essa ideia. Qual será a solução para sair desse labirinto? Hoje, “viver é arrastar este morrer”? 

ALC - A sociedade pós-industrial atomizou o indivíduo e transformou essa atomização num valor desejado e num símbolo de liberdade e autonomia – na realidade, essa atomização apenas serviu para melhor o subjugar, ao cortar-lhe os laços sociais e, com isso, afastá-lo do contacto com o real, para o substituir pelas imagens mediatizadas desse real. As soluções são sempre muitas e longe de mim querer apontar uma, mas o “Hipótese do Suicídio” serve exatamente para levantar a questão, para abrir a porta da superação desta escravatura contrária à vida em que se transformou o quotidiano dos produtores-consumidores, não através da morte – que essa, simbolicamente, já aí está presente –, mas pelo vencer do medo que os impede de dizer não à desdita e avançar pela aventura do desconhecido.

PP – No vídeo promocional do vosso disco, o privilégio de abertura cabe a Marcelo Caetano, figura devidamente homenageada, musicalmente, no minimal “Os Ossos de Marcelo Caetano”. Sentem que, politicamente, Portugal regrediu?

ALC - Aquilo que é a essência de uma democracia, que é a possibilidade de escolha e de alternativa, foi profundamente esvaziado com a desculpa da crise financeira e com a culpabilização dos cidadãos por essa crise, acusados de viverem acima das suas possibilidades, e por isso merecedores de castigo e, como tal, condenados num processo arbitrário e sem garantias mínimas de defesa. Agora, que o mal está feito, sabemos que a crise foi consequência da especulação financeira e da atividade bancária à base de produtos fictícios a que os Estados, dominados ideologicamente por posturas desreguladoras, vieram dar o seu aval, transformando o que era financeiro em soberano. Agora, vai ganhando forma e, a custo, rasgando a cortina do pensamento único, a noção de que poderá haver outra maneira de gerir a crise instalada e a economia destroçada. Agora, titubeante, começa a despontar um desígnio democrático. Mas, até agora – e hoje ainda com predomínio acentuado –, o que imperou foi o despotismo da falta de alternativa, numa equivalência da chamada Primavera Marcelista que, nos anos finais do fascismo, quis fazer vingar a ideia de que estava a acontecer uma abertura democrática quando o Estado continuava profundamente mergulhado no atavismo do pensamento único. Isto é, claramente, uma regressão, não só política mas também civilizacional, à essência dessa época funesta.

PP – Ainda a respeito desse vídeo, colocaram o mesmo no ar no dia 13 de maio, uma data forte do calendário religioso nacional. Queriam que o mesmo funcionasse como uma forma de manifesto?

ALC - Não, foi um mero acaso. Somos tão pouco beatos que nem reparamos na data. E acredito que tenha sido a um 13 de maio porque o diz, já que, de facto, não faço a mínima ideia em que dia concreto o vídeo foi tornado público.

PP – No que toca à musicalidade, “Pelo Meu Relógio…” traz à tona composições como “Hipótese de Suicídio” e, principalmente, “Nuvens Bárbaras”, dois tour de force intensos que relembram o ambiente de clássicos como o “O Divino Marquês”. Essa forma de narrativa combina um discurso acutilante como uma exploração musical onde o piano e as guitarras dão especial envolvência. Sentem que a mensagem passa melhor dessa forma ou através de canções mais “diretas”, como “Horas de Matar” ou “Mulher Clitóris Morango”? 

ALC - A nós não nos preocupa a comunicação de mensagens nem sequer equacionamos qualquer mensagem a ser transmitida. Gostamos de pensar um disco como um todo, em que cada uma das canções que o compõem têm uma relação com cada uma das outras, tal como gostamos de pensar cada canção como uma obra única, composta por diversos elementos, é certo, nomeadamente letra e música, mas ainda assim única, em que os diversos componentes em que pode ser decomposta concorrem em igualdade de importância para a sua unidade. Assim, não se trata de tentar encontrar a maneira mais eficaz de passar uma mensagem – palavra que me arrepia –, mas de perceber o que faz sentido para que a fusão entre letra e música aconteça.

PP – “Pelo Meu Relógio…” é o vosso álbum mais político. Como acham que a comunidade artística portuguesa está a digerir a profanada crise? Existe um caminho para a salvação da alma através da música?

ALC - Não faço a mínima ideia de como é que a comunidade artística portuguesa está a digerir a crise, nem me interessa muito saber. Os ecos do que a comunidade artística portuguesa, supondo que tal monstro existe, está a fazer ou a não fazer não chegam ao recôndito Minho… Para nós, Mão Morta, a música é o nosso recreio, o lugar onde nos evadimos do mundo, pensando sobre ele e sobre nós, e sobretudo onde nos divertimos - e muito! Nesse sentido, salva-nos a alma – e de que maneira!

PP – O disco abre com “Irmão da Solidão”, uma canção que faz o apelo à catarse mas que reforça a noção da perda do sentido opinativo. Estará o Homem moderno condenado a uma felicidade segmentada?

ALC - A felicidade não é sempre segmentada? O discurso mediático cria a ilusão de que a felicidade é uma espécie de nirvana permanente, mais da ordem do ser do que do estar, e – já agora – que está intrinsecamente associada à posse dos mais díspares produtos e objetos. Mas isso não passa de falácia de vendedor de carros usados…

PP – O disco, no seu todo, é muito coeso, e música e mensagem apresentam uma grande coerência. Como se realizou o processo de composição? Primeiro pensaram a música, as letras ou no conceito?

ALC - Tudo partiu de uma vontade de experimentar como ficaria a música, uma qualquer composição rock, se o seu tempo fosse desacelerado. Fizemos uma primeira experiência usando uma letra antiga, de uma canção que pertencera aos Auaufeiomau e, a partir do resultado obtido e da impressão positiva que nos causou, tudo o resto foi mais ou menos em simultâneo e em catadupa: o tema, a ideia da narrativa geral para o disco, a composição das músicas, em sucessivas declinações da ideia original de desaceleração do tempo, e as letras concretas para cada uma dessas composições. Foi um processo muito homogéneo e daí, talvez, essa coesão final que conseguimos atingir.

PP – A metáfora é uma das formas de poesia mais utilizadas para a composição dos Mão Morta. Pelo vosso relógio é mesmo hora de matar?

ALC - São sempre horas de matar, entendendo-se aqui matar no sentido que as cartas do Tarot dão à morte – que é um momento de transformação e de renovação –, sobretudo quando, como atualmente, o presente se mostra tão negativo.

In Palco Principal

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

“Montedor”
de J. Rentes de Carvalho



O cenário de crise em Portugal está, infelizmente, envolvido numa dinâmica de eterno retorno. Ciclicamente, somos arrastados para um profundo estado de apatia no que toca ao desenvolvimento económico, social e pessoal.

Hoje, a profunda depressão que a sociedade portuguesa atravessa é como um dilacerante sentimento de déjà vu. O desemprego teima em manter-se elevado (ainda que alguns tentem desmenti-lo com base em subterfúgios envoltos de características pontuais ou sazonais), a confiança está no limiar do desespero e, uma das soluções encontradas por milhares, é a emigração.

É esse um dos paralelismos que encontramos em “Montedor” (Quetzal, 2014), o primeiro romance de J. Rentes de Carvalho, um livro que nos apresenta um anónimo personagem que, na distante década de 1960, sentia na pele a desesperança de muitas famílias portuguesas que, depois de muita luta, não encontra uma saída, um rasgo de futuro.

A solução passa por sonhar, por não desistir de um qualquer objetivo mas que, ainda assim, se desmorona com o passar do tempo. Ao viver uma vida onde a frustração é apenas erradicada (e a muito esforço) através de laivos de uma irrealidade momentânea, o presente pode ser sinónimo de uma morte lenta, de um impasse que corrói a alma e pode levar a quebrar fronteiras morais.

Ainda que através de uma (des)confortável lupa, “Montedor” reflete também uma das fases da vida de Rentes de Carvalho, quando foi obrigado a sair do país por questões políticas e que o tornou em um cidadão do mundo ao palmilhar as Américas passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Nova Iorque, como também alguns canto da Europa como Paris ou Amesterdão – esta última cidade que ofereceu ao homem nascido em Vila Nova de Gaia a oportunidade de se licenciar em Literatura Portuguesa, disciplina que lecionou entre 1964 e 1988.

Enquanto paira no ar um sentimento que traz à tona uma tensão constante, “Montedor” é um retrato onde o destino é adiado de forma crua e o medo está ao virar de cada canto da existência. Viver é, assim, entendido como uma luta entre o fantasma do “tentar ser” e a (triste) consciência do que se “é”.

Em uma sociedade que tem no “tacho” uma das mais tradicionais formas de sobrevivência social, o nosso personagem procura uma espécie de El Dourado. Os estudos fracassam, a tropa revela-se pouco útil e as austrálias, tão longe, não são alternativas reais. O recurso ao padre – em troca de uma franga – é sinónimo de um embaraço da desventura, uma forma de pedalar uma bicicleta que percorre um trajeto repleto de obstáculos entre o café e o local a que se ousa chamar de “casa”.

Viviam-se (tal como hoje) tempos onde a miséria de espírito é um reflexo da precariedade social de um país fechado em si mesmo sob a égide da ditadura. Ao “herói” de “Montedor” resta pouco mais do esconder-se no refúgio fugaz da felicidade, aqui entendido como o leito, bem como nas páginas de livros e jornais na esperança de antecipar o tal estado onírico que tarda.

Nas entrelinhas percebe-se também uma crítica mordaz ao hábito da Igreja que, no caso, não faz o monge. Mas talvez a salvação, ou não, passe mesmo por um matrimónio a contra gosto e a vida que mais parece a dor de um parto precoce e indevido possa endireitar por linhas tortas.

Com uma prosa direta, simples e repleta de uma portugalidade que se vive ainda fora dos grandes meios urbanos, “Montedor” é um livro fabuloso e a sua leitura é obrigatória.

Galardoado recentemente com os prémios APE (Associação Portuguesa de Escritores) para a Escrita Biográfica e Crónica, Rentes de Carvalho é, sem dúvida, um dos autores mais emblemáticos de língua portuguesa. Esta edição da Quetzal reflete esse estatuto e dimensão.

In deusmelivro

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

“As Raparigas Cintilantes”
de Lauren Beukes

Assassino intemporal




Enquanto Chicago sente as dilacerantes consequências da Grande Depressão, Harpes Curtis, um vagabundo violento e paranoico, encontra uma casa que reserva em si um segredo que mistura magia e tormento. De exterior decrépito, a invulgar habitação observa um interior opulento. Para além disso, um cadáver estendido em um dos corredores adensa o mistério.

Ao explorar o local, Harper dá de caras com uma grande quantia de dinheiro assim como com uma coleção de objetos que pertencem a dispares períodos temporais. Mas o mais intrigante é um portal que possibilita viajar entre o passado e o futuro.

A ligação entre a Casa e o vagabundo adensa-se e Curtis começa a entender o que o chamou a tal local. A mensagem é clara: Harper deve encontrar raparigas que “brilham” e as mesmas estão espalhadas ao longo de uma peculiar linha cronológica. Sem olhar a credos ou afins, Harper interioriza a sua demanda. As raparigas devem morrer e sentir a força da sua faca. Alice, Julia, Margot, Jin-Sook, Zora, Willie, Misha e Catherine cintilam e esperam a morte. Mas nem tudo corre na perfeição ao plano de Curtis…

Kirby Mazrachi está a passar pela maior provação da sua vida. Vítima de uma brutal tentativa de assassinato, salva-se miraculosamente mas depois de recuperar, em parte, a sua vida, olha ao espelho e cada cicatriz que sente no corpo é uma razão para não desistir de procurar o seu agressor.

Vivem-se os anos 1990 e Chicago continua uma cidade emersa em si mesma. Kirby, aspirante a jornalista e dona de uma alma (e visual) punk, consegue um estágio na editoria de desporto no Chicago Sun-Times, ficando à responsabilidade de Dan Velasquez, um antigo repórter criminal. Paralelamente ao seu trabalho no campo do desporto, Mazrachi serve-se do arquivo do jornal para procurar mais informações sobre outras raparigas assassinadas e aquilo que descobre desafia a compreensão humana.

Por entre linhas que se bifurcam entre o thriller policial, o fantástico e o terror, “As Raparigas Cintilantes” (Porto Editora, 2014) assume-se com a estreia nos escaparates nacionais da obra da sul-africana Lauren Beukes que acumula as funções de argumentista, realizadora de documentários, autora de livros de banda desenhada e jornalista com a nobre arte de escrever romances.

Beukes que teve a honrar de receber o consagrado Prémio Authur C. Clarke por altura da publicação do seu romance visionário “Zoo City” – que brevemente será alvo de uma adaptação cinematográfica – faz-nos chegar um livro que vai fazer as delícias dos que procuram emoções fortes e não se deixam intimidar com cenas que combinam brutalidade, terror e uma demência atroz e que se serve de constantes flashbacks que tornam a narrativa muito dinâmica e apelativa principalmente devido aos curtos capítulos que alternam entre realidades, personagens e linhas cronológicas.

O segredo do sucesso deste livro está na atribulada relação do trio Harper-Kirby-Dan, ainda que não exista um grande trabalho em termos de densidade emocional no que toca à caracterização dos personagens por parte de Beukes. Ainda assim, no seu todo, “As Raparigas Cintilantes” é uma obra interessante que mexe com a memória e as cicatrizes (metafóricas ou reais) cravadas no corpo de assassinos e vítimas, sendo a sua leitura uma espécie de redenção.

In Rua de Baixo

terça-feira, 21 de outubro de 2014

“Duas Vidas”
de Georg Maas

A verdade da mentira



Em novembro de 1989, Berlim tornou-se, por alguns dias, no epicentro do mundo. Quase três décadas depois da sua construção, o Muro de Berlim, para muitos apelidado de Parede da Vergonha, era derrubado. Berlim e a Alemanha (e por que não dizer o mundo) regressavam ao ponto de partida, sem divisões. Por terra caiam as repúblicas federais e democráticas, a Guerra Fria terminava.

O muro que dividia a Europa entre ocidente e a influência de leste foi destruído em clima de euforia. A liberdade chegava, finalmente, mas, ainda assim, nem todas as questões associadas à Cortina de Ferro ficaram resolvidas. A política, como sempre, é dona de longos tentáculos e os seus fins justificam alguns meios.

É na ressaca do eco dos acontecimentos registados a 9 de novembro de 1989 que “Duas Vidas”, a segunda longa-metragem do alemão Georg Mass, toma palco tendo como fonte inspiradora um romance baseado em fatos verídicos da autoria de Hannalore Hippe.

A ação leva-nos a terras norueguesas no raiar da década de 1990 e Katrine Evensen Myrdal (Juliane Katrine) é uma mulher feliz e o centro de uma família estável. Trabalha numa empresa de design gráfico e é casada com Bjarte Myrdal (Sven Nordin), um capitão naval. O casal tem como maior preocupação a filha Anne (Julia Bache-Wiig), estudante universitária e mãe solteira. O outro elemento da família é Ase Evensen (Liv Ullmann, uma das divas de Ingmar Bergman), mãe de Katrine e uma bisavó muito presente.

Tudo está tranquilo até à chegada de Sven Solbach (Ken Duken), um idealista advogado com uma nobre causa e que quer processar o Estado norueguês. Com a reunificação alemã em progresso, são possíveis alguns ajustes de contas jurídicas pela (nova) Europa.

Ainda que a família não tenha muito presente o fato, Katrine é fruto de uma relação proibida, é um bebé “Lebensborn”. Também apelidadas de “crianças da vergonha”, muitos foram os bebés cuja génese foi a relação entre a uma mãe (norueguesa) e um oficial nazi durante a ocupação na Segunda Grande Guerra.
Ase engravidou de um soldado alemão e Katrine nasceu em um período conturbado. A vitória dos Aliados teve as suas consequências e muitos foram mortos ou acusados e presos por serem colaboracionistas das forças de Hitler.

Antes, os bebés foram encaminhados para um orfanato especial na Saxónia que funcionava como uma espécie de “laboratório da raça ariana”. O Terceiro Reich conseguiu seduzir muitos noruegueses a fazerem parte da mistura étnica que resultaria na supra raça ariana. Mas o conflito terminaria e a Cortina de Ferro separou tudo e todos. As crianças perderam o rasto dos pais.

Mas a conjuntura mudou e a verdade pode ser reposta ainda que tal acarrete custos. Depois de muita insistência, Sven Solbach consegue levar Katrine a testemunhar em tribunal a sua experiência de vida e na sequência de tal a realidade começa a ficar ligeiramente distorcida. O que leva alguém a esconder algo durante uma vida inteira? Pode alguém assumir uma identidade falsa em nome de uma missão?

Como uma narrativa de construção semelhante às obras de mestres do suspense e espionagem como John le Carré, “Duas Vidas” aposta na duplicidade de uma personalidade que luta interiormente entre a verdade e a conveniência, entre a vida e uma missão. Nesta adaptação de Mass face ao romance de Hannalore Hippe são caras as aproximações à espionagem nos tempos da Guerra Fria e ao longo do filme o espetador é convidado a desbravar as várias camadas de uma mesma estória. Com o recurso a muitos flashbacks, “Duas Vidas”, assume a forma de um puzzle com uma leitura cronológica difusa mas que permite, gradualmente, um conveniente entendimento.

A par dos referidos regressos ao passado – período que tem Klara Manzel a interpretar o papel da jovem Katrine -, Maas aposta numa filmagem segura a formal mas, a espaços, concede à câmara uma liberdade que a faz deslizar sobre a belíssima paisagem nórdica ou colocar, com distinção, os atores como figuras preponderantes face a uma narrativa que aqui e ali parece carecer de um ou outro pormenor ainda que tal seja ultrapassado com competência no seu todo.

De forma propositada ou não, ao longo do filme somos levados a pensar se Maas terá tido como propósito assentar a sua perspetiva sobre um perfil de espionagem pura ou fazer realçar mais a questão dramática dos acontecimentos que receberam o nome do ideal nazi apelidado de “Fonte da Vida”.

Acima de tudo, “Duas Vidas” foca-se na exploração levada a cabo pela Stasi, os serviços secretos da ex-RDA, na tentativa de forjar falsas identidades aos seus agentes recrutados ao programa “Lebensborn”.
Escolhido como o candidato alemão ao Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro em 2014, “Duas Vidas” – que já arrecadou galardões como o Melhor Filme no Festival de Cinema Alemão – é um filme muito interessante e conta com um fortíssimo e coeso elenco com destaque para Kohler e Ullmann que muitas vezes não precisam de quaisquer palavras para expressar os seus sentimentos, sendo as suas faces verdadeiros espelhos da alma.

A banda sonora de Christoph Kaiser e Julian Maas também dá um forte contributo ao filme e faz da música um elemento preponderante na evolução narrativa do filme, papel que deve ser dividido com a fotografia de Judith Kaufmann que trabalha com mestria os díspares momentos da própria trama.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

“Bolota”
de Yoko Ono



Cantora, artista plástica e cineasta, a japonesa Yoko Ono ficou, acima de tudo, conhecida por ser a ex-mulher de John Lennon e, para muitos, a principal responsável pelo fim dos The Beatles. Mas tal epíteto é manifestamente injusto.

Depois de uma juventude dividida entre o Japão e os Estados Unidos da América, Ono decidiu fixar-se em Nova Iorque no início da década de 1950. Foi nessa cosmopolita metrópole que conheceu alguns dos maiores vultos da cultura vanguardista entre os quais se destacava, por exemplo, o músico John Cage.

De profundo espírito independente, rejeitaria o apoio e o apelo da sua milionária família para regressar ao Japão, optando por ensinar arte japonesa e música em algumas escolas públicas norte-americanas. Paralelamente, está na génese da formação de um novo movimento vanguardista denominado Fluxus, onde explorava ideias que juntavam conceitos dadaístas e construtivistas.

otalmente embrenhada na exploração da arte enquanto forma de expressão universal, Yoko Ono lança em 1964 o livro “Grapefruit”, obra que exemplificava o expoente da arte conceptual através de uma nova filosofia e perspetivas. Hoje, quase cinco décadas depois, Ono regressa com “Bolota” (Pergaminho, 2014), uma espécie de elemento de continuidade face a “Grapefruit”, que nasceu para integrar um evento de uma plataforma online e, depois, assumiu a forma de livro. No fundo, o propósito foi, nas palavras da autora, «viajar numa máquina do tempo que me transportasse para a forma antiga de fazer as coisas.»

Como uma semente que deve ser enraizada nas entrelinhas da história de Yoko Ono, “Bolota” condensa pensamentos, poemas, meditações e desenhos (entre a bizarria e a abstração) ponteados da japonesa, que assim incita à reflexão. As palavras fluem de forma serena e mordaz e ao leitor está reservado um papel fruidor e humanista que possibilita uma viagem entre o céu, a terra e a cidade, passando por tangentes face às estações do ano, à magia dos sons e silêncios ou à própria vida.

in deusmelivro

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

“Sara Prefere Correr”
de Chloé Robichaud

Pista de obstáculos



Sara Lepage (Sophie Desmarais), 20 anos, tem um sonho: alcançar a glória do atletismo. Menina calma, de olhos grandes, Sara recebe um convite para treinar em uma das mais referenciadas equipas de atletismo universitário do Canadá. Apesar das reticências da mãe (Helene Florent), Sara ruma a Montreal na companhia de Antoine (Jean-Sebastien Courchesne), colega de trabalho no restaurante onde Sara faz um part-time, e aposta tudo no sonho de menina.

As dificuldades financeiras fazem com que Antoine sugira a Sara um esquema utilizado pelos jovens universitários. Assim, os amigos tornam-se marido e mulher de forma a conseguir um subsídio do Estado que apoia jovens casais estudantes. A esperança invade o universo de Sara e Antoine mas a vida revela-se numa tortuosa pista de obstáculos.

Apresentado na mais recente edição do Festival de Cannes e integrado na Seleção Oficial Un Certain Regard, “Sara Prefere Correr” é a mais recente aposta cinematográfica da canadiana Chloé Robichaud (que assina a realização e argumento) e valeu à realizadora natural do Québec o Prémio Signis, no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, assim como o galardão de Melhor Filme no Baja International Film Festival. Sophie Desmarais também viu o seu trabalho reconhecido ao arrecadar o Prémio de Melhor Atriz no já referido certame argentino.

Ao longo de cerca de hora e meia, somos convidados a acompanhar uma fatia da vida de Sara Lepage que sonha ser uma atleta de referência. O seu dia-a-dia é feito na companhia das colegas de aventura, entre o ginásio e a pista. A paixão pela corrida é a grande razão de viver destas raparigas que centram a sua existência no desporto rejeitando outros sonhos ou perspetivas.

Quando surge o convite para Sara ir para Montreal para se juntar à equipa universitária de McGill tudo muda, ou melhor, o sonho é cada vez mais real. Depois, o já referido matrimónio de conveniência adensa a fragilidade emocional do “casal”. Com diferentes perspetivas da vida, Sara e Antoine unem-se pela fuga de si próprios.

Uma das colegas mais chegadas de Sara, e também atleta, Zoey (Genevieve Boivin-Roussy) confronta a amiga com o que esta pensa fazer da vida. A resposta não surpreende. Sara quer correr, apenas correr.
O personagem de Sara, excelente diga-se, é a trave mestra de um filme que coloca a nu as fragilidades de uma menina de 20 anos cuja vida apenas tem sentido quando corre. Mas tal como Sara tem dificuldade em impor a sua personalidade em termos sociais, também Chloé Robichaud tem problemas em tornar “Sara Prefere Correr” em um filme que mantenha a clarividência do início ao fim.

Ainda que a metáfora do atletismo assente que nem uma luva na pessoa de Sara Lepage, a narrativa de Robichaud, perde-se em um excesso de grandes planos e cenas de pormenor que, ainda assim, a espaços, permitem ao espetador absorver, com competência, o meio ambiente sem grande informação adicional.
A constante fragilidade de Sara, enquanto figura maior da película, leva a uma anulação da mesma, conduzindo o filme para momentos onde a frustração social e íntima da personagem principal acaba por colocar em causa o fio condutor de um filme que tende a perder-se em análises superficiais que não procuram um (mais) profundo trabalho patológico ou uma tentativa de revelação.

Ainda assim, Robichaud consegue dar mais “vida” a Antoine que se revela mais humano, mais sensível e emocionalmente também mais interessante. Tal é comprovado nos momentos mais tensos de “Sara Prefere Correr” onde o drama e o humor, ainda que fugidio, afastam uma certa opacidade fílmica no trabalho da realizadora canadiana.

A câmara, por vezes timidamente subjetiva e de características indie, trabalha bem os silêncios e os planos que seguem Sara pelas costas provocam um sentido de intimidade ao espetador. É também na quietude que Sara pensa e transmite a sua mensagem através da lente de Robichaud. Por vezes não são necessárias palavras para testemunhar um sentimento, uma emoção, e os melhores momentos do filme são aqueles em que quem está na sala de cinema assume o papel de testemunha de uma ação digerida entre uma muito interessante dança entre planos de pormenor, a música e a contrição de uma personagem cujo coração a atraiçoa.

Apesar de “Sara Prefere Correr” não ser uma obra-prima, é um objeto narrativo interessante. Os grandes planos assumem-se como “intertítulos” (as mensagens dos bolinhos da sorte são o melhor exemplo disso) mas por vezes condenam o filme a uma toada algo contraproducente. Por outro lado, a meticulosa formalidade de Sara resulta na maior parte do filme mas também retira vestígios de um crescimento íntimo da personagem.

Muito bem filmado, “Sara Prefere Correr” apresenta-se como um retrato que não define o seu perfil. São frequentes as oscilações entre excelentes momentos e períodos mais passivos e apesar da boa química entre Desmarais e Courchesne, os diálogos minimalistas entre ambos condenam uma maior profundidade dramática.

Numa corrida com alguns obstáculos, Sara e Robichaud, dão boas indicações para o futuro apesar de neste filme não irem além dos tempos mínimos. No futuro, esperemos, esta dupla pode bater recordes.

In Rua de Baixo

terça-feira, 14 de outubro de 2014

“Como Sentimos”
Giovanni Frazzetto



O estudo das emoções teve como primeiro impulsionador o naturalista britânico Charles Darwin que, em 1872, publicou um volume intitulado “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”. Darwin baseou o seu estudo em descrições de vários testemunhos que descreviam e comentavam as emoções que sentiam ao observar um conjunto de fotografias.

Este, que foi um dos primeiros inquéritos da história da ciência moderna, tornou-se no ponto de partida para o estudo das emoções. Depois disso, nomes como William James, Sigmund Freud ou António Damásio, entre muitos outros, tentaram entender os sentimentos e emoções face às reações do ser humano face a episódios da sua existência.

Profundo entusiasta do tema, o italiano Giovanni Frazzetto, neurocientista e um dos fundadores da European Neuroscience & Society Network e criador do projeto transdisciplinar Neuroschools – iniciativa que garantiu a Franzzetto o Prémio John Kendrew para Jovem Cientista, em 2008 -, faz-nos chegar “Como Sentimos” (Bertrand Editora, 2014), um ensaio pertinente sobre a vida quotidiana e as emoções que a mesma provoca e a que está sujeita.

Obra dividida em sete capítulos – cada um exclusivamente dedicado a uma emoção em particular -, “Como Sentimos” usa uma linguagem assertiva e deveras acessível ao comum dos mortais, levando o leitor a embrenhar-se numa viagem que mistura o conhecimento científico com a experiência do dia-a-dia e que é sinónimo de uma perspetiva singular, que vagueia entre o ceticismo/dogmatismo contrastante de temas como a racionalidade e os sentimentos que advém de artes como, por exemplo, a pintura, a poesia, a música ou o teatro. É desse intrincado jogo que resulta uma melhor compreensão da forma como sentimos enquanto pessoas, enquanto ser falíveis que têm no cérebro um órgão decisor.

Ao longo das páginas dedicadas à raiva, culpa, ansiedade, luto, empatia, alegria e amor, o leitor conhece uma série de dilemas que Giovanni Frazzetto pretende desmistificar. As perguntas são muitas: Pode a poesia ensinar a mecânica da alegria? A obra de Heidegger ou a observação de ratos em laboratório são ferramentas que permitem lidar de forma mais eficaz com a ansiedade que deriva da crise económica global? Uma pintura de Caravaggio pode levar a uma reação idêntica que deriva de um exame ao cérebro face ao sentimento de culpa?

Estas e muitas outras questões são abordadas em “Como Sentimos” com uma assinalável competência, de uma forma prática e bastante acutilante e a escrita leve de Frazzetto leva-nos a embrenhar o nosso interesse em assuntos como os genes MAOA, os resultados de uma Ressonância Magnética – que se assemelham a vulgares imagens de paparazzi cerebral -, a pertinência dos biomarcadores, o balanço ativo da serotonina, a sinapse enquanto dialética, os sistemas de neurónios-espelho, os processos de recompensa, a estimulação bipartida dos hemisférios cerebrais ou a quantificação da felicidade.

Mais que uma obra fechada em si própria, “Como Sentimos” dá ao leitor uma liberdade interpretativa que apenas um génio de um homem como Giovanni Frazzetto pode fazer. Mais do que saber o que a neurociência pode ou não dizer sobre as nossas emoções, este livro faz-nos entender o cérebro como nunca o tínhamos visto e, acima de tudo, demonstra que a ciência é insuficiente para conseguir explicar a pertinência das emoções, pois o meio ambiente e a experiência pessoal são armas poderosas nesta luta entre razão e sentimentos.

In deusmelivro

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Interpol
“El Pintor”



Pinceladas de Génio

Quando os Interpol lançaram “Turn on the Black Lights”, em 2002, temas como "PDA", "NYC", "Obstacle 1" ou "Say Hello to the Angels" invadiram profundamente o perímetro auditivo dos mais atentos. No ar ficavam fragmentos de uma música inspirada num certo negrume, que tem no literalmente assombroso mundo dos Joy Division a sua maior fonte. De certa forma, nascia um novo movimento musical, uma espécie de herança melancólica sonora que juntava num mesmo barco bandas como os The National, She Wants Revenge, White Lies, Editors ou The Horrors, e que dividia a sua génese entre apontamentos que faziam a apologia da formação clássica guitarra-baixo-bateria ou momentos mais sintéticos.

Hoje, quatro anos depois do homónimo “Interpol”, a banda nova-iorquina - hoje em formato trio, depois da saída do baixista e fundador Carlos Dengler – regressa na máxima forma com “El Pintor” (o título assume a forma de um anagrama face ao nome da banda), um disco que mistura de forma extremamente competente os ambientes mais escuros do indie rock com uma languidez melódica (e algo dançável), que resulta das raízes pós-punk.

Claramente apostados em renascer das “cinzas”, os Interpol assumem-se diferentes em 2014, ou seja, mais motivados enquanto banda, mais sábios, e afastam para longe os fantasmas da eventual crise criativa que o anterior “Interpol” significou para os mais céticos. O álbum abre com “All the Rage Back Home” e os primeiros segundos, os mais contidos e contemplativos da canção, escondem, deliberadamente ou não, uma explosão que toma forma com as primeiras batidas, oriundas de uma bateria que abre o caminho para uma “fúria” sonora, que leva os Interpol de volta a momentos claramente inspirados, tal como acontecia nos seus primeiros trabalhos. Paul Banks não deixa quaisquer dúvidas ao cantar “It's all the rage back home”, frase que compõe o refrão do primeiro tema de “El Pintor” e celebra a nova missão do trio norte-americano. A seguir, sem perder o fôlego, “My Desire”, a segunda faixa do disco, mistura uma guitarra que sublinha um poema, que, por sua vez, mistura desejo com frustração, melodia com sons descarnados que se unem em prol de uma grande canção.

É certo que, depois da saída de Dengler, sentimos um certo abandono do baixo e não esperamos linhas fortes como a maravilhosa “Stella Was a Diver And She Was Always Down”, mas, ainda assim, o trabalho de Banks enquanto baixista de estúdio não deixa de ser louvável - e tal sente-se na frenética “Anywhere”, uma das composições mais orelhudas de “El Pintor”, aqui não tanto pelo que faz ouvir mas pela segurança que dá a uma bateria que se bate, sem complexos, frente à extrovertida guitarra de Daniel Kessler. Ainda assim, em momentos como “Everything is Wrong“ é mesmo o baixo a assumir as rédeas da musicalidade em vários momentos.

“El Pintor” faz-se de uma transversalidade melódica assente numa base segura e permite ligeiras oscilações de intensidade, e tal não acontece apenas em termos de instrumentos. Em “Blue Supreme”, por exemplo, Banks varia entre uma abordagem digna de um barítono até uma aproximação em falsete.

“Breaker 1” e “Same Time, New Story”, com as devidas idiossincrasias sonoras, mostram o que os Interpol querem hoje da sua música e apresentam um jogo sonoro que mistura várias camadas emotivas, entre a agitação e a acalmia, entre a luz e a escuridão, entre a certeza e uma elevada dose de insegurança. E é dessa esquizofrenia que nasce o equilibro da música, da arte dos Interpol. É também por isso que, embora não rejeitando o passado, “El Pintor” apresente peças como “Ancient Ways”, um claro aceno de despedida ao que ficou para trás, envolvido num distorcido movimento entre guitarras e bateria, fruto de um assinalável sentido de urbanidade.

Os cerca de 40 minutos de “El Pintor” passam a correr e, quando chegamos à serena e épica “Twice As Hard”, custa-nos a crer que o disco tenha chegado ao fim. Quando sentimos a distorção final do derradeiro tomo do quarto trabalho dos Interpol, queremos agarrar o som que resta, até ao último acorde, até à última palavra.

Por vezes, as alterações de alinhamento no seio de uma banda, ainda que impliquem mudanças de paradigma, são extremamente benéficas, e “El Pintor” resulta de um hiato que agora pode ser encarado como deveras positivo. Com canções como esta dezena que figura neste disco, os Interpol, vão, musicalmente, de certeza, onde querem. É difícil destacar elementos em separado, tal é o sentimento uno de um álbum que vai fazer as delícias dos mais exigentes fãs do trio nova-iorquino, mas é obrigatório afirmar que “El Pintor” é, talvez, o trabalho mais inteligente da banda de Paul Banks. A sua densidade, e por que não dizer genialidade, é a súmula entre simplicidade, entrega e talento. No fundo, “El Pintor” é uma viagem ao coração descarnado dos Interpol.

Alinhamento:

1."All the Rage Back Home"
2."My Desire"
3."Anywhere"
4."Same Town, New Story"
5."My Blue Supreme"
6."Everything Is Wrong"
7."Breaker 1"
8."Ancient Ways"
9."Tidal Wave"
10."Twice as Hard"

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

E o Nobel da Literatura vai para…



Modiano, Patrick. Francês, nascido em Boulogne-Billancourt, perto da capital francesa, em julho de 1945. É ele o mais recente nome a figurar entre os privilegiados que foram destacados pela Academia Sueca na categoria de Prémio Nobel da Literatura.

Filho de pais judeus, Patrick Modiano é, aos 69 anos, considerado um dos maiores nomes da literatura francesa e apelidado de “Proust contemporâneo”, ainda que a sua fama se centre maioritariamente dentro de portas.

Reservado e bastante modesto, o novo Nobel da Literatura tem Paris como cenário de eleição para as suas obras, principalmente dos tempos da ocupação nazi ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial. A sua escrita, elegante, sem grandes artefactos e que tem na simplicidade intimista uma das maiores armas, vive de um sentimento autobiográfico, tendo em elementos como a memória, a sombra, a perda e uma busca pela identidade as suas grandes inspirações.

No discurso de atribuição deste prémio, Peter Englund, secretário perpétuo da Academia Sueca, referia a mestria escrita de Mondiano como um reflexo da «arte da memória com a qual o autor evocou os destinos humanos mais inatingíveis e descobriu a vida do mundo da ocupação nazi.»

Desta forma, algo inesperada para uns e aguardada por outros, Patrick Modiano sucede a Alice Munro e torna-se o décimo primeiro autor nascido por terras de França a receber o prémio maior da Literatura mundial e, para além dessa glória conseguida por uma privilegiada minoria, arrecada também cerca de 900 mil euros.

No que toca à sua obra, Modiano, assumidamente influenciado pelo escritor Raymond Queneau, seu docente de geometria nos tempos de liceu, estreou-se nas lides literárias em 1968 com “La Place de L’étoile”, chegando o primeiro reconhecimento público através de “Rue des Boutiques”, obra que fez o autor parisiense ser galardoado com o Prémio Goncourt em 1978. Depois seguiram-se, entre outros, o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa, o Grande Prémio Nacional das Letras e o Prémio Margerite-Duras.

Para além do formato romance, Patrick Modiano colabora em argumentos cinematográficos, já passou pelo grande écran enquanto ator em singelas participações, é autor de canções e assina livros para gente mais pequena.

Por cá, Modiano já editou vários trabalhos, entre os quais “A Rua das Lojas Escuras” e “Domingos de Agosto”, em 1988, através da Dom Quixote e da Relógio d’Água, respetivamente, assim como “No café da Juventude Perdida” em 2009, via Asa, ou o mais recente “O Horizonte”, editado pela Porto Editora.

In deusmelivro

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

“O Quarto Azul”
de Mathieu Amalric



Obsessão venenosa

Inspirado em um romance do belga Georges Simenon, “O Quarto Azul” é a segunda experiência do francês Mathieu Amalric enquanto realizador e fez parte da Seleção Oficial da mais recente edição dos festivais de Cannes e de Nova Iorque e conta com a produção de Paulo Branco.

A trama tem como figuras centrais Amalric -que junta a função de ator à realização -, Stéphanie Cléau e Lea Drucker e conta a trágica e misteriosa estória de uma relação extraconjugal que termina em uma sala de tribunal.

Tudo começa e acaba no quarto azul que dá nome a este curto mas muito interessante filme. Julien (Amalric) encontra acidentalmente Esther, (Cléau) uma antiga colega de escola que tinha uma secreta paixão por ele mas que por questões diversas nunca se concretizou por falta de interesse por parte de Julien. Os anos passaram e Julien e Esther seguiram caminhos diferentes.

Até que sentimentos antigos são finalmente consumados num quarto de hotel local, em algumas quintas-feiras. A luxúria toma conta dos dois amantes que têm nas paredes azuis da referida divisão hoteleira um espaço para explanar todo o desejo, havendo também lugar para promessas várias, para segredos e pedidos de uma fidelidade futura apesar do que os anelares das suas mãos esquerdas evidenciavam.

Amalric, realizador, torna a narrativa numa espécie de flashback constante que se mistura com momentos presentes. O mistério surge bem desconstruído fruto de um competente drama que desrespeita a normal cronologia e consegue captar a atenção do espetador que sente também ele enleado numa teia de mistério, crime, obsessão, traição e culpa.

À medida que o filme flui, somos confrontados por pequenos pormenores que fazem toda a diferença. Nas mãos de Amalric, a câmara dá espaço a atores e cenários com igual parcimónia e os planos estáticos, ainda que convenientemente curtos, assemelham-se a provas em local de crime. Mais, o realizador de “O Quarto Azul” filma os momentos de paixão entre Julien e Esther, qual femme fatale, como se de uma pintura de tratasse (excelente, a fotografia) onde toda a expressividade e sensualidade de Stéphanie Cléau – atual companheira do realizador e ator – não deixa por certo indiferente quem está na sala de cinema.

Mas mais que uma nota de exacerbado erotismo, os encontros entre Julien e Esther são as peças de um puzzle que vai sendo construído à sua volta, principalmente devido ao que tal pode significar face a dois casamentos à beira do colapso ainda que por questões muito diferentes.
Amalric explora de forma declarada a dicotomia entre os papéis de Esther e Delphine, entre a amante e a dona de casa, entre o segredo e a realidade, entre o prazer e o quotidiano. Mas tal não é apenas conseguido através das cenas carnais (bem quentes e expostas, por sinal) mas sim pela abordagem feita a Julien e Delphine enquanto um casal acomodado que vai revelando aqui e ali tentativas de salvar uma relação claramente desgastada.

Essas transições de intensidade são uma das mais-valias de “O Quarto Azul”, um filme que sabe jogar entre o clímax e a normalidade, entre a liberdade e a clausura, entre a pacatez e o crime. A forma como a narrativa se expõe ao espetador é também sinónimo da paixão com que a mesma é filmada, estejamos nós a falar de cenas de grande intensidade sexual ou aquando da frieza de um inquérito policial. Para tal é necessário um claro e equilibrado sentido entre amor e abandono, ainda que tal diste uns meros segundos em termos de ação.

Para além disso, os fragmentos fílmicos de Amalric, bem secundados na mestria cinematográfica de Christophe Beaucarne ou na musicalidade de Grégoire Hetzel, apresentam-se em um quase infinito número de assertivos detalhes que completam o todo.

“O Quarto Azul” é um excelente exemplo entre a arte de filmar e a capacidade de mostrar uma intriga policial onde a perceção psicológica dos personagens adensa o mistério, enfatiza o crime e faz sobressair o poder incomensurável de uma obsessiva paixão que transporta na face dos principais protagonistas sentimentos como a devoção frenética e a culpa que funcionam como uma espécie de fronteiras entre a normalidade e a transgressão, “legitima” ou não.

In Rua de Baixo

“O Guardião das Causas Perdidas”
de Jussi Adler-Olsen



Impiedosa sede de vingança

O policial é um género que, por vezes, peca por uma subserviência por parte de quem o idealiza e passa o esboço dessa criação para o ato da escrita face ao já existente. Reza a história da literatura que foi Edgar Allan Poe que fez nascer este tipo de abordagem criativa e desde “Os Crimes da Rua Morgue” foram muitos os que ousaram colocar o mistério e a arte de resolver os mais diversos delitos na forma de livro.

Em alguns casos, os personagens criados sobrepuseram-se face aos seus criadores. Hercule Poirot, Sam Spade, Sherlock Holmes, Javier Falcon, Kurt Wallander ou Mikael Blomkvist, entre muitos, muitos outros, tornaram-se referências maiores de obras que encontraram acérrimos seguidores por todo o mundo.

Por falar em Blomkvist, desde a morte precoce do sueco Stieg Larsson que as editoras anunciam um novo nome que faça, de certa forma, renascer o universo narrativo do autor do estrondoso sucesso que foi a trilogia Millennium. As promessas são muitas mas os resultados ficam (sempre) aquém.

Ainda assim, são muitos os autores que surpreendem os fãs dos mistérios policiais em forma de livro. Um deles é o dinamarquês Jussi Adler-Olsen que antes de se dedicar à escrita foi editor de inúmeras publicações. Hoje, com mais de 10 milhões de livros vendidos em 34 países, Adler-Olsen chega finalmente a Portugal através de “O Guardião das Causas Perdidas” (Editorial Presença, 2014).

No centro da ação está o ensimesmado inspetor Carl Morck, detetive da Divisão de Homicídios de Copenhaga, recentemente vítima de uma emboscada que vitimou dois dos seus mais queridos camaradas. Na ressaca desse caso, Morck vê-se obrigado a liderar uma nova secção dentro do sistema policial local. O Departamento Q tem a missão de rever casos arquivados e na berlinda surge o misterioso desaparecimento de Merete Lynggaard, uma muito atraente deputada que desapareceu há mais de cinco anos tendo sido vista pela última vez em uma travessia marítima.

A hipótese de suicídio é apontada como a mais provável causa do desaparecimento de Merete mas o corpo nunca apareceu. Todos pensam que a deputada está morta mas Carl Morck, na companhia do seu peculiar braço-direito, o sírio Assad, vai provar que o reacender do caso não é uma perda de tempo e dá início a uma fantástica investigação policial que revela contornos inesperados e sinistros.

A narrativa flui de uma forma natural e agarra, definitivamente, o leitor. A intriga vai crescendo à medida que vamos conhecendo melhor os acontecimentos e a própria personagem de Carl Morck que tem um profundo carisma solitário e persistente, e luta contra o poder dogmático e um certo sentido de desleixo e incompetência de uma instituição que tem nas figuras de Borge Bak ou Lars Bjorn o exemplo máximo de um servilismo que transforma pessoas em meras marionetas do sistema.

Inconformado, Morck agarra-se a este caso como uma espécie de catarse existencial e o Departamento Q afirma-se como algo mais do que uma qualquer divisão escondida na cave de uma instituição policial.
Jussi Adler-Olssen constrói um enredo que aposta em particulares doses de humor (negro) e tem na personagem Assad um verdadeira lufada de ar fresco. Comparativamente com o universo do já referido Stieg Larsson, Adler-Olssen opta por uma crueldade menos declarada e o jogo que faz entre o presente e o passado possibilita ao leitor juntar as peças que vão tornando-se cada vez mais evidentes e encaixadas à medida que o livro evolui sendo o seu final verdadeiramente excitante.

Tal como em outros livros de autores nórdicos, a questão social (e política) é bem explorada em várias vertentes e não é inocente a presença de um personagem como Assad, um muçulmano que é em si mesmo um mistério dentro do próprio complexo misterioso ou a referência à comunicação social enquanto um poder que mistura o dever de informar e a arte de manipular a opinião pública.

Vivamente aconselhado a todos os que gostam de um bom romance policial, “O Guardião das Causas Perdidas”, que foi recentemente alvo de uma adaptação cinematográfica, vai, de certeza, figurar no mapa das obras favoritas dos fãs da ficção escandinava e resta saber se a Editorial Presença vai fazer-nos chegar mais tomos da série Departamento Q que assentariam que nem uma luva na coleção O Fio da Navalha.

In Rua de Baixo

“Arte na Cidade”
de Mário Caeiro



Na sociedade contemporânea, o sentido de urbanidade, enquanto fator diferenciador e personalizado, está intrinsecamente associado à ideia de arte, à conceção de um esboço – aqui entendido no seu sentido mais abrangente – que tende a modelar ambientes, espaços.

A cidade é, portanto, no entender de Mário Caeiro, autor de “Arte na Cidade” (Temas e Debates, 2014), «um fenómeno cultural…com atributos comuns que concorrem com a própria definição de cidade, isto é, um lugar físico, de habitação, de circulação, de trocas, materiais ou espirituais…»

E é essa permuta entre artista, arte e espaço (urbano) que está patente em “Arte na Cidade”, um livro que elucida – ou tem esse propósito – o público sobre as possibilidades que a arte pode fornecer à cidade enquanto lugar envolto de uma contemporaneidade composta por um misto de público e “privado”.

Docente na ESAD.CR (Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha), doutorado em Artes Visuais e Intermédia pela Universidade Politécnica de Valência e Pós-graduado em Design Urbano pela Universidade de Barcelona, Mário Caeiro é, entre muitas outras atividades, responsável pela conceção e produção de projetos culturais e de espaço público desde 1993, sendo um dos mais brilhantes especialistas no que se designou apelidar de Arte Contemporânea, escrita em letras maiúsculas por princípio e convicção.

Ao longo das mais de 600 páginas de “Arte na Cidade”, o leitor assume um papel de voyeur entre artes e expressões várias. Ainda que, numa primeira abordagem, possa ser destinado a estudantes, artistas, arquitetos, designers, urbanistas e engenheiros, este livro extravasa tais fronteiras e incita à reflexão sobre a arte urbana ou no espaço urbano.

Com prefácio de Delfim Sardo, curador e ensaísta de Arte Contemporânea, esta obra convida ao pensamento através de acontecimentos artísticos de diferentes dimensões, bem como à instigação de segredos da linguagem associada à arte pública sob uma visão de futuro. Fruto de várias camadas observativas e refletivas, “Arte na Cidade” apresenta uma nova perspetiva sobre as metamorfoses do espaço urbano provocadas pela intervenção humana.

Para além das mais de seis centenas de páginas, “Arte na Cidade” apresenta ainda uma centena de extratextos coloridos, assim como uma miríade de imagens cinza, funcionando também como uma espécie de “dicionário de conteúdos” associados à plasticidade artística no espaço urbano.

Seguindo os trilhos da arte contemporânea, os projetos urbanos de arte efémera, a linguagem da arte pública, os fundamentos da arte enquanto ferramenta social e a valorização do ato da experiência, o livro de Mário Caeiro revela-se uma extraordinária ferramenta que permite pensar, entender e interiorizar a arte enquanto veiculo atual e em constante evolução.

In deusmelivro

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

“Herzog”
de Saul Bellow



Inicialmente publicado em 1964, “Herzog” (Quetzal, 2014) é um dos mais acutilantes livros do canadiano Saul Bellow, considerado por muitos como um dos expoentes da literatura norte-americana do pós-guerra, cuja inspiração estava ancorada no universo existencialista europeu e, acima de tudo, na obra de Franz Kafka.

Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1976, Bellow escreveu “Herzog” há cinquenta anos, numa época em que o autor de livros como “As Aventuras de Augie March” ou “Morrem Mais de Mágoa” ainda não tinha sido atingido por uma personalidade perfilada por elevadas doses de um avarento conservadorismo que o levou a atacar constantemente o multiculturalismo e o pós-modernismo vigente.

Podemos assim afirmar que “Herzog” nasceu em um dos períodos mais positivos da vida de Bellow enquanto escritor, tendo como figura central Moses Elkanah Herzog, um individuo cujo perfil intelectual não o salvaguarda de uma miríade de sofrimentos existenciais – fruto de um “eu” conflituoso mas que, ainda assim, não elimina a sua faceta de homem dono de um charme inato.

No epicentro de um turbilhão emocional, Herzog vê a existência desmoronar. Sente-se um escritor falhado, um académico falido, um pai errante, um amigo ausente, um amante absurdo. O seu casamento com Madeleine, sua segunda mulher, acabou e, na ressaca desse problema, depara-se com o envolvimento da ex-esposa com Valentine Gersbach, o seu melhor amigo.

Numa tentativa de se agarrar ao pouco que lhe resta, Herzog investe o seu espírito de sobrevivente através de uma raiva concentrada em forma de cartas, que escreve de forma compulsiva a amigos, inimigos, famosos, desconhecidos, vivos ou falecidos. Ainda que essas missivas nunca cheguem aos seus destinatários, Herzog serve-se das mesmas como forma de redenção e constrói as mesmas sob uma peculiar visão da humanidade, que o cerca através de uma reflexão que condensa as esferas públicas e privadas.

O teor das cartas varia entre reflexões políticas, religiosas, filosóficas e culturais. É notório um sentimento autobiográfico em “Herzog” e o mesmo pode ser verificado, por exemplo, na questão do número de casamentos, pois tanto Bellow como Herzog contrariam matrimónio por duas vezes.

Ao percorrer avidamente as páginas deste livro, o leitor é deliciosamente confrontado com pontos de vista que resvalam entre a racionalidade e a instabilidade de um ser à beira do colapso emocional. Valha-nos a inebriante capacidade narrativa de Bellow que consegue transformar um sentimento de autorridicularização em uma forma de válido compromisso.

Ainda que a vida de Herzog seja sinónimo de uma desintegração progressiva, o humor (negro) com que a mesma é relatada abafa qualquer ponta de desistência, afirmando-se como um bonito labirinto escrito que assume a forma de resposta ou tentativa de colocar uma ordem lógica em uma mente momentaneamente estupidificada perante a fragilidade dos problemas que enfrenta.

A luta contra a solidão é, sem dúvida, uma das maiores batalhas que um homem como Herzog tem para enfrentar mas, por vezes, a vida como sinónimo do relacionamento entre homem e mulher pode oferecer surpresas inesperadas. A dicotomia entre personagens, por exemplo, como acontece com Madeleine e Ramona, traça uma tangente entre o compromisso e a realização, entre o possível e o meritório.

Imbuído sobre uma perspetiva masculina (e não machista) “Herzog” é um livro extraordinário e o seu personagem principal tem tudo para ficar na memória dos leitores. A paixão com que se devoram as páginas desta obra tem como fundamento maior um misto de incompetência e absurdo, predicados que elevam a condição humana a um permanente limbo existencial.

In deusmelivro