sexta-feira, 31 de maio de 2013

Peter Murphy @ Coliseu dos Recreios

O saudoso voo do morcego



No espaço de dois dias a simpática sala do Coliseu dos Recreios teve a honra de receber dois dos maiores nomes da era pós-punk e que lideravam a horda indie durante a saudosa década de 1980. Se na passada terça-feira Lisa Gerrard e Brandan Perry levaram à loucura os milhares de fãs que não deixaram escapar a oportunidade de ver os Dead Can Dance, ontem foi a vez de Peter Murphy oferecer um concerto especial celebrando os 35 anos dos Bauhaus, mais um espectáculo que integra a Mr. Moonlight Tour.

Ainda que o Coliseu não registasse casa cheia (poucos camarotes compostos e as galerias encerradas) os muitos presentes na sala lisboeta estavam ansiosos por ver o seu ídolo de juventude em palco. A média etária entre os presentes situava-se, naturalmente, nos “entas” e a outrora usual “farda” de tons negros deu lugar, em alguns casos, a confortáveis fatos yuppies. Ainda assim, de uma forma mais ou menos discreta vislumbravam-se t-shirts com ícones dos Bauhaus que serviram de herança entre diferentes gerações.

Antes do concerto começar, enquanto se davam os últimos retoques em palco, do PA saiam acordes nativos da década de 1980. Dos Talk Talk aos The The, passando pelo próprio príncipe da festa, ficava nos ouvidos o refrão de “Slow Emotion Replay” da banda de Matt Johnson em forma de demanda. Será que Murphy continua com o mesmo estigma dos tempos de “Mask” ou é apenas uma imagem em câmara lenta dessa época?

A resposta viria poucos minutos depois quando, com a conhecida pontualidade britânica, Murphy entrou em palco ao bater das 22 badalas acompanhado pelos restantes membros da banda, os muitos competentes e excitantes Mark Thwaite (guitarra), Jeff Schartoff (baixo e violinos) e Nick Lucero (bateria). A partir daqui todos os presentes entregaram voz, alma e corpo à cerimónia presidida por um Peter Murphy que aos 55 anos continua em excelente forma física e vocal.

Tal como vem sendo hábito nesta digressão, o primeiro tema a ser tocada foi o enigmático “King Volcano” de “Burning from the Inside”, trabalho que remonta a 1983 e que completa a tetralogia negra composta por “In The Flat Field” (1980), “Mask” (1981) e “The Sky’s Gone Out” (1983).

Para além destes quatro discos os Bauhaus apenas ousaram voltar a gravar um disco de originais em 2008 sendo que “Go Away White” apenas contribuiu com uma faixa durante a memorável noite de ontem. Falamos de “To Much 21st Century”, composição que se ouviria lá mais para a frente. O facto de Peter Murphy e os seus Bauhaus não terem nenhum trabalho nos tempos mais recentes não afastou o interesse que esta tour tem sido alvo e em praticamente todas as salas onde passou, ainda que, por norma, de dimensões mais pequenas que a sala das Portas de Santo Antão, esgotando as mesmas.

Murphy e a sua “nova” trope tem a missão de mostrar em a magia dos Bauhaus e como não querem deixar créditos por mãos alheias entregam-se de forma brilhante às suas atuações. A inspiração andou à solta e, depois de uma entrada com Murphy a bater palmas aos presentes, a banda ataca “Kindom Coming” e “Double Dare”, dois ambientes distintos onde o formato mais acústico passa para contornos mais pesados com uma competência a toda a prova.

Extremamente teatral Peter Murphy dança, salta, gesticula e deixa espaço para os “seus” músicos brilharem. “In the Flat Field” assente num poderoso riff de guitarra arranca gritos na plateia aquando do refrão e Murphy dá início a uma curiosa coreografia que tem numa luz branca apontada a si próprio como aos seus companheiros o grande foco de atenção.

No palco espartano não há lugar para grandes efeitos e é, acima de tudo, a mestria da banda que preenche a “lacuna” de outros atrativos. As luzes monocromáticas alteram o negro com o vermelho e “God in the Alcove”, “Boys” e “Silent Hedges” assentam a sua beleza nos acordes do baixo acutilante, das cordas elétricas e nas batidas pujantes da bateria. Murphy complementa o momento com a sua característica competência e arte.

Na plateia grita-se, pula-se, sente-se a vida por entre as veias, vê-se o herói de adolescência e recorda-se tempos de uma juventude repleta de estórias. Como que em forma de desafio face a essa nostalgia “To Much 21st Century” pontapeia a nostalgia e faz regressar todos ao presente. Peter Murphy, que entretanto despira o casaco negro, rodopia em palco com uma camisa suada enquanto o swing do som que emana do palco enche os ouvidos de todos. Antes, “Kick in the Eye”, levava Murphy a tocar a sua melódica por forma a dar outros contornos ao som da banda.

O ambiente acústico regressa com o muito aplaudido “A Stange Kind of Love” com Murphy a assumir as vezes de guitarrista enquanto Schartoff deixa o baixo para encantar os presentes com bonitos solos de violino. As emoções estão ao rubro, o microfone é oferecido à plateia e a ovação no final na prestação é devida. Ainda com os nervos em franja sentem-se os primeiros acordes de “Bela Lugosi’s Dead”. Entusiasmado, Peter Murphy ensaia o voo do morcego por entre acordes opressivos. Um dos registos mais excitantes da noite!

Seguiram-se momentos onde o dub traz de novo a mestria das composições dos Bauhaus. Murphy coloca-se mais no meio do palco e, recorrendo à ajuda de uns óculos pois isto da idade não perdoa, dispara sons estilhaçados enquanto guitarra, baixo e bateria são sinónimo de um peso sonoro seguro e penetrante. A muito aplaudida “She’s in Parties”, que traz de novo a presença da melódica à boca do vocalista, anuncia um novo ciclo sonoro completado pelo assombroso “Stigmata Maytir” e pela potência de “Dark Entries”. A missa negra dos Bauhaus gelava uma Lisboa que teima em não trazer o ansiado verão.

Os momentos niilistas da música dos Bauhaus implicam uma entrega extra de Murphy e é deitado no chão do palco do Coliseu que ouvimos os primeiros versos de “Severance” a habitual versão dos Dead Can DAnce que o homem de Northampton faz nos seus concertos. Enquanto se sentem sons sónicos em palco, Peter Murphy abandona o palco e deixa o espaço para os seus músicos brilharem.

O regresso ao palco para o primeiro encore trouxe uma novidade. Peter Murphy toca as notas de “Subway” no seu Roland enquanto a audiência vibra com esta “nova” faceta do cantor. Depois das muitas palmas esvanecerem Murphy decide contar uma história à capela através de “Cool Cool Breeze” para depois, num ápice, atacar a fantástica “Ziggy Stardust”, ontem tocada de uma forma completamente irrepreensível. A loucura é total, acreditem, e ninguém resiste a uma das mais fantásticas canções jamais feitas.

Finda a performance, sentencia-se mais um adeus do palco que a devoção do público consegue contrariar e ainda restavam mais dois momentos sublimes. Thwaite é o primeiro a regressar ao palco e depois de todas as tropas estarem a postos, “Spirit” enche a sala. Visivelmente agradado com o público Peter Murphy avisa que a próxima será a última e a surpresa é total quando se ouvem os primeiros acordes de “Transmission”, uma das emblemáticas faixas dos Joy Division.

Qual sessão espírita, Murphy ensaia gestos à Ian Curtis. A festa é total e todos estão, definitivamente, satisfeitos quando os músicos se despedem depois de uma vénia sentida aos presentes. Até à próxima, Mr. Moonlight.

Antes de Peter Murphy, os portugueses Uni_Form tiveram a honra de fazer o “aquecimento” das massas presentes tendo-o feito com a habitual competência, entrega e talento que os caracteriza, tal como já o tinham feito aquando da presença de Peter Hook no ano passado no CCB. Por aquilo que fazem e representam, estes lisboetas já mereciam mais atenção por parte de quem gosta de música.

In Palco Principal

quarta-feira, 29 de maio de 2013

The Greaty Gatsby BSO

Os anos loucos de Fitzgerald



Conhecido pelas grandes produções à moda de Hollywood, o realizador Baz Luhrmann aposta muito nas bandas sonoras dos seus filmes. “Romeu e Julieta”, também com DiCaprio, e “Moulin Rouge” foram, talvez, os seus maiores sucessos no que à conjugação entre a música e imagem diz respeito e, em ambos os casos, Luhrmann reuniu uma mescla de talentos e géneros que, de uma forma ou de outra, acabaram por seduzir os melómanos.

Uma das principais características das músicas que coabitam e dão força aos já referidos exemplos cinematográficos do realizador australiano é a mistura, propositada ou não, do pop/rock com as balizas mais alternativas.

Se em “Romeu e Julieta” as cenas eram abrilhantadas com composições de gente como os Radiohead, Garbage ou Des’ree, “Moulin Rouge” contou com as prestações de Rufus Wainright, David Bowie, Christina Aguilera, Lil’Kim, Pink, entre outros.

Em “The Great Gatsby” a fórmula mantém-se, apesar de registar alguns momentos mais bem conseguidos que outros. Com coprodução de Jay-Z, a coleção de canções que compõem a banda sonora do filme reúne os talentos de Lana Del Rey, do próprio Jay-Z, The XX, SIA, Florence e Bryan Ferry, aqui acompanhado pela orquestra homónima.

Sendo que a atmosfera do filme nos remete para os loucos anos 1920, os ambientes jazzy estão omnipresentes e essa energia está patente nos momentos mais agitados do filme e da respetiva banda sonora.

Melómano por excelência, Luhrmann quis dar nova alma ao romance de F. Scott Fitzgerald. Segundo o realizador, "nos nossos tempos, a energia do jazz encontra na figura do hip-hop um seu semelhante”. Se existiam dúvidas quanto à escolha do produtor, eis que a mesma assim fica desfeita.

Jay-Z captou a essência da vivência que os anos 1920 representam e conseguiu colocar esse sentimento na música deste disco, ainda que ancorada na contemporaneidade urbana de hoje. Logo na primeira faixa, “100 Dollar Bill”, Z dá ao espetador, e ouvinte, a visão do cérebro de Jay Gatsby através de um som upbeat que faz a ponte entre os quase cem anos que diferem entre a ação do filme e a realidade de hoje. Essa reinterpretação da “história” é também feita com muita competência em “Love is A Drug”, com Bryan Ferry a trocar as voltas a si mesmo.

Ao longo do disco, os estilos variam e o já referido hip-hop convive sem qualquer problema de consciência com tonalidades mais alternativas, o que confere ao todo musical um sabor agridoce, que reflete, no fundo, a própria vida.

Entre as melhores faixas deste disco está a lindíssima “Young and Beautiful”, que conta com a inspirada voz de Lana Del Rey e que retrata a essência da própria história de Fitzgerald. “Over the Love”, de Florence and the Machine, é outro dos momentos mais inspirados desta banda sonora que tem também em “Together”, dos The XX, outro episódio intimista de grande beleza. Outro momento bonito é a interpretação de SIA em “Kill and Run”, num estilo a fazer lembrar uma balada à la James Bond.

Para além de temas originais, podemos também contar com algumas versões. Se Beyoncé e Andre 3000 se atiram a “Back to Black”, de Amy Winehouse, de forma lânguida, Emeli Sandé, na companhia da Bryan Ferry Orchestra, dá cor e energia a “Crazy in Love”, de… Beyoncé. No entanto, a versão que mais garra apresenta é a interpretação blusy de Jack White de “Love Is Blindness”, original dos U2.

Apesar de, no geral, estarmos perante um álbum interessante, existem alguns momentos menos bem conseguidos. “Hearts a Mess”, de Gotye, torna-se redundante face aos longos seis minutos de duração que retiram algum dinamismo e alma à banda sonora em si, e “Into the Night”, de Nero, que se revela demasiado pastiche.

Somadas todas as partes, estamos perante um trabalho competente que confere uma interpretação refrescante a uma história revestida por um classicismo intrínseco ao próprio enredo. Ainda que as referências jazz possam constituir uma barreira aos que menos apreciam ou conhecem o género, Luhrmann e Jay-Z conseguem traduzir as suas ideias de forma a captar a essência do espírito dos anos 1920, oferendo uma nova perspetiva dos mesmos, algo que nem todos se podem orgulhar.

Alinhamento:
01.100 Dollar Bill
02.Back to Black
03.Bang Bang
04.Little Party Never Killer Nobody (All We Got)
05.Young and Beautiful
06.Love is the Drug
07.Over the Love
08.Where the Wind Blows
09.Crazy in Love
10.Together
11.Hearts a Mess
12.Love is Blindness
13.Into the Past
14.Kill and Run

Classificação do Palco: 7/10

In Palco Principal

“UM RAPAZ A ARDER”
de EDUARDO PITTA

Linhas efervescentes de uma memória singular




Com cerca de duas dezenas de obras já publicadas, Eduardo Pitta é poeta, ensaísta, crítico, cronista e, acima de tudo, um dos mais talentosos autores da nossa praça.

Nascido em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique no ano 1949, Pitta lança agora “Um Rapaz a Arder” (Quetzal, 2013), um livro de memórias que percorre a experiência mundana do autor entre 8 de novembro de 1975 – data que marca a sua chegada a Lisboa e a independência do país que o viu nascer – e o malfadado 11 de Setembro de 2001, aqui descrito como “o dia que mudou a vida de toda a gente”.

Dono de uma escrita escorreita, dinâmica e muito assertiva, Eduardo Pitta faz um relato mordaz e muito pessoal de uma parte da sua vida e, sem tabus, receios e afins, conta um pouco da história recente dos dois países que são responsáveis pela sua educação enquanto pessoa, Homem e autor.

Se a descolonização e o consequente retorno a Portugal marcaram definitivamente a vida de milhares de pessoas durante a década de 1970, esse período da história é o ponto de partida para este “Um Rapaz a Arder”. Ao longo de mais de duas centenas de páginas, Pitta conta parte da sua vida assim como episódios de um Portugal em crescimento e convulsão consigo próprio, nomeadamente em períodos complicados como o foram a integração europeia e os novos valores e perspetivas que daí resultaram, fazendo também uma análise da história literária (e cultural) do Portugal do final do século XX.

Ainda que se possa apontar o género biográfico – exercício raro no panorama literário nacional – às palavras escritas de Eduardo Pitta, este livro, quebrando com distinção o político e socialmente “correto”, aponta com emoção capítulos da vida de um homem que sempre afastou de si o pessimismo, abraçando, com distinção, anos de luta contra um sistema que nunca conseguiu abafar a genialidade de alguém ancorado na beleza das suas palavras que, por vezes, são sinónimo de revelação.

Mas não só de palavras vive este livro. Nas páginas centrais Eduardo Pitta escolheu uma série de imagens que retratam o já revelado período cronológica desta obra e onde amigos, familiares e paixões dão a cara e cor, para que este seja um livro completo em si mesmo, uma obra de ontem, hoje e amanhã.
Tal como o nome indica, este livro mostra um rapaz a arder, um Homem que nunca se conformou com a normalidade de uma vida na expectativa, uma pessoa que sempre viu, assumiu e viveu a sua existência de uma forma apaixonada.

Mais do que um conjunto de memórias, que quebram a barreira do particular, “Um Rapaz a Arder” desvenda duas décadas e meia de um calendário muito particular, através de pequenas história e relatos e servindo-se de um discurso provocatório que, por vezes, não poupa nomes incontornáveis da nossa cultura ou opta pelo seu “esquecimento” mas que, acima de tudo, serve para condimentar ainda mais o relato.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 27 de maio de 2013

The National
“Trouble Will Find Me”

Dentro do Casulo



Com data marcada para nova visita a território português no dia 21 de novembro, na Meo Arena, os The National acabam de lançar “Trouble Will Find Me”, sexto álbum de originais da banda norte-americana que corta com os ambientes mais rock dos últimos e muito bem-sucedidos “Boxer” e High Violet”.

A emoção e a melancolia continuam a povoar a música dos The National mas a mensagem é passada de uma forma mais tranquila, mais pensada e, sem sombra de dúvidas, mais madura e segura de si. A produção esteve a cargo dos irmãos Dessner e, para abrilhantar ainda mais este novo trabalho, a banda convidou nomes como St. Vicent, Sufjan Stevens, Doveman ou Sharon Van Etten.

Aquando do lançamento de “The National”, em 2001, a banda contou com um sucesso (quase) imediato e desde logo ganhou um fiel e exigente grupo de entusiastas. Os sons mais soturnos faziam os The National estar a par de gente como, por exemplo, os Interpool, herdeiros de um legado que tinha os Joy Division como mentores.

Aos poucos, os The National foram afastando-se de um som marcadamente inspirado pelas ideias de Ian Curtis e comparsas e, quando, em 2005, colocaram na rua “Alligator”, a banda do cativante Matt Beringer e das duplas fraternas Dessner e Devendorf tinha em músicas como “Abel” ou “Mr November” indicadores precisos de uma identidade própria, de alguém que tinha no pop-rock alternativo a razão da sua existência sonora.

Os já referidos “Boxer” (2007) e “High Violet” (2010) continuaram a traçar o caminho do sucesso mas, subitamente, ou talvez não, os The National decidem uma abordagem significativamente diferente com este novo registo de 2013. “Trouble Will Find Me” não é um disco imediato como os anteriores trabalhos da banda - requer algum tempo para ser interiorizado, para ser compreendido e amado.

As canções continuam carregadas de melodia, foram cozinhadas com as doses certas de bateria e assentam, mais uma vez, nas linhas de guitarra, para darem corpo ao formato canção. A voz de Berninger mantém toda a sua profundidade, mas ganhou intensidade nos silêncios que se desenham a cada faixa deste “Trouble Will Find Me".

Estamos perante uma amálgama de pedaços líricos delineados com uma calma e solenidade desarmantes. Qualquer um dos membros dos The National sabe o que e quando fazer. Para este quinteto, tocar a iniciática e errante “I Should Live in Salt” ou colocar a parafernália técnica de Sufjan Stevens na lindíssima “I Need My Girl” são duas faces de uma mesma moeda, dois exercícios que se completam entre si, mantendo a química e beleza.

Tal como qualquer criador conhece os pormenores mais íntimos da sua obra, os The National mostram, orgulhosos, os segredos deste seu mais recente disco em forma de revelação, exorcizando fantasmas e demónios, umas vezes de forma mais agressiva, outras em formato crescente. O resultado é excelente e o somatório das equações sonoras de “Trouble Will Find Me” reflete um grupo que melhorou com a idade e experiência.

Outra das características mais fortes deste álbum é a sensação familiar e confortavelmente bipolar que advém da sua audição. A faixa de abertura, por exemplo, surgiria mais “logicamente” no coração do disco, mas as suas pausas dramáticas convocadas pelas vozes etéreas que povoam o mesmo conseguem reclamar para si o ónus de um qualquer início de aventura.

Logo a seguir, “Demons” desenha uma aproximação melódica que convoca guitarras, piano e a ode depressiva que deriva da voz de Berninger. O resultado é uma canção que abraça alguém que se resigna à presença dos seus fantasmas e que é, sem dúvida, uma das faixas mais bonitas e bem conseguidas de “Trouble Will Find Me”.

A simplicidade é outra das armas utilizadas com mestria pelos The National. “Slipped” surge como uma catarata de nostalgia, com a voz de Berninger a revelar uma doçura desesperada enquanto o piano pulsa o ambiente de forma tranquila. Eis um dos momentos mais intimistas de “Trouble Will Find Me”, que puxa por uma bonita fragilidade em que não se estranham frases como: ”I don’t need any help to be breakable, believe me”.

A emoção é algo inato à música do quinteto de Cincinnati e “This Is The Last Time” oferece minutos de uma catarse induzida e revestida de forma crua através de uma melodia cativante e em espiral. O baixo dá um ar da sua graça e, à medida que nos aproximamos do final destes quatro minutos e 32 segundos, as cordas, em vários formatos e versões, seguram as vozes cadentes até a um culminar hipnótico.

Apesar das novas abordagens musicais, continuam a existir traços que remetem, felizmente, a um passado recente na discografia da banda. “Dont Swall By Cap”, uma das faixas mais imediatas e orelhudas do álbum, remete quase instintivamente para “Mr. November”, mas, aos poucos, vai ganhando um espaço próprio, que combina interessantes arranjos de cordas embelezados com a distorção provocada pelas batidas de Bryan Davendorf.

No fundo, cada elemento da banda dá o seu precioso contributo e o todo resulta na perfeição. Para além do já referido contributo de Bryan, os irmãos Dessner tocam de uma forma delicada e íntima. Matt canta com uma humildade a qualquer prova e canções como “Sea of Love”, Graceless” e “Humiliation" seguem caminhos similares, apesar de existirem com traços, tiques e dimensões díspares.

Também a poesia das canções de “Trouble Will Find Me” denota uma evolução da própria banda. O absurdo toca na perfeição a energia das canções enquanto objeto ensimesmado e a atmosfera daí resultante brilha sem mácula. Fã incondicional de John Cheever, Matt Berninger cria personagens com a sua voz e em canções como “Demons”, “Sea of Love” e “Slipped” o seu humano cantado assume várias personalidades assentes nas idiossincrasias mundanas. A insatisfação natural do (des)amor, a falência do ser humano e o caráter finito das relações podem encarnar nas composições dos The National.

Depois de ouvirmos este “Trouble Will Find Me”, sentimos que estamos perante um trabalho maduro, honesto e que (pode) aponta(r) novos caminhos musicais para os autores de “High Violet”. Segundo os The National, este disco é, aparentemente, o álbum mais coeso da sua carreira e um regresso ao casulo, a uma crisálida revestida com emoções fortes, muito romantismo e à falência inerente da condição humana.

Se se esperava a continuação encorpada e mais rock de “High Violet”, essas expectativas caem por terra. Estas 13 marcantes canções, resultado criativo de uma cumplicidade marcante entre os cinco elementos da banda, apontam outras direções e são o sumo de mais de uma década de experiência.

“Trouble Will Find Me” é um disco notável que merece ser conhecido, explorado pouco a pouco, sem pressas ou grandes alaridos. Em novembro, cá estaremos para ver como resulta esta nova experiência em palco e, até lá, vamos embalando com a cadência especial desta coleção de canções.

Alinhamento:
01.I Should Live In Salt
02.Demons
03.Don’t Swallow The Cap
04.Fireproof
05.Sea of Love
06.Heavenfaced
07.This is The Last Time
08.Graceless
09.Slipped
10.I Need My Girl
11.Humiliation
12.Pink Rabbits
13.Hard to Find

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

sexta-feira, 24 de maio de 2013

CHRYSTA BELL
“THE TRAIN”

Sedução em forma de disco 



É já no próximo dia 9 de Junho que a mais recente musa de David Lynch regressa a Portugal, sendo que no palco do Musicbox se vai servir de bandeja “The Train”, um disco produzido pelo criador de Twin Peaks. Talvez por isso este “The Train” soe a banda-sonora dolente de um qualquer imaginário cinematográfico que tem na voz doce e encantada da ex-modelo Chrysta Bell a sua âncora maior.

De facto, é sob as cordas vocais de Bell que a magia deste disco sobrevive de forma tranquila. A ex-cantora dos jazzy 8 ½ Souveniers não é nova nestas andanças e conta com a participação em outros projectos musicais como os Mass Ensamble ou os Black Book Angel. Ainda assim, é com este “The Train” que Bell faz irradiar todo o potencial sonoro das suas cordas vocais.

Nascido de um longo parto, este álbum levou mais de uma década a ver a luz do dia mas o seu resultado é francamente positivo. Se os fãs do universo de Lynch não vão sentir qualquer dificuldade em colocar este disco na órbita do realizador, todo e qualquer ouvinte vai deixar que o feitiço de músicas como «Angel Star» ou «Swing With Me», com uma sensualidade muito próxima do registo de Beth Gibbons, entrem pela alma dentro.

Ao longo das onze composições do disco nota-se um erotismo latente, profundo, e canções como «Real Love» levam o ouvinte para dentro de sonhos onde a melancolia se confunde com a paixão, onde a letargia dá lugar a uma urgência repleta de libido.

A lânguida estética lynchiana segue o seu caminho por entre todo o disco com a honrosa excepção mais pop/rock de «The Truth Is», um exercício à imagem dos Eurythmics e acima de tudo da voz de Annie Lennox, uma das maiores referências de Bell enquanto cantora.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 23 de maio de 2013

PARA LÁ DAS COLINAS
Cristian Mungiu

Os estreitos limites da tolerância



Depois de “Quatro meses, três semanas e dois dias” ter vencido, com todo o mérito, a Palma de Ouro em 2007, o realizador romeno Cristian Mungiu criou enormes expectativas quanto ao seu futuro como cineasta.
Passados seis anos, eis que a comunidade cinéfila tem a possibilidade de ver o muito aguardado “Para Lá das Colinas”, um melodrama directo, cru e honesto que marca a terceira experiência cinematográfica de Mungiu.

Ao contrário de “Quatro meses…” que era maioritariamente rodado dentro de quatro paredes de um hotel espartano na Roménia comunista, este “Por Trás das Colinas” extravasa essa ideia de certa forma “teatral” e abraça um novo conceito dentro do trabalho do realizador.

Com traços de uma contemporaneidade desarmante, “Para Lá das Colinas” relata a relação de duas jovens amigas, Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan) que cresceram num mesmo orfanato e que, passado algum tempo, reencontram-se depois de terem decido dar novos rumos às suas vidas.
Alina, regressa à Roménia depois de ter passado uma temporada na Alemanha e quer resgatar a sua amiga e paixão. Relutante, Voichita, teme abandonar o mosteiro onde vive com outras mulheres e um sacerdote solitário e conservador. Esta comunidade refugia-se no amor a Deus por forma a combater a crueldade da solidão.

As tentativas de fazer Voichita abandonar o sacerdócio fazem Alina inventar uma série de estratagemas, incluindo uma tentativa de suicídio. A tolerância das noviças perde-se a cada desvario de Alina e quando esta se torna violenta, freiras e sacerdote apontam-lhe a possessão como a razão de tal estado de alma e decidem colocar em ação os instrumentos ao serviço da religião como o são o jejum e o exorcismo.
Durante cerca de duas horas e meia, Mungiu convida-nos a viver dentro da realidade do frugal e controverso mosteiro onde Voichita é confrontada com as suas convicções, com os seus dogmas. As interrogações de Alina levam a um crescente mau estar entre as personagens e o clima de hostilidade aumenta a cada momento.

Inspirado em acontecimentos reais estamos perante uma trágica fábula que reúne conflitos religiosos e amorosos. Este filme coloca o dedo na ferida da omnipresente e omnipotente força da igreja de um país que tem mais espaços religiosos do que escolas, uma nação que vive a religião de forma particular. Apesar da seriedade do tema, Mungiu tem a capacidade e a presença de espírito para povoar esta película com uma magia muito particular.

Uma das cenas que reflete tal capacidade leva-nos a assistir à leitura do Livro dos Pecados do Mundo pelas freiras, e ficamos a saber que existem 464 no total. De forma a manter Alina dentro dos domínios da “razão” religiosa, o sacerdote aconselha Alina a ouvir tais escrituras de forma a afastar a doença da descrença pois a procura da paz, feita através da confissão, pode não ser suficiente. Também a noção de pecado é redutora para o “Papá” e “Mamã” destas desamparadas noviças pois tal resulta de uma vida que vá contra as noções básicas da religião.

Com uma competência assinalável o realizador romeno consegue passar uma das ideias mais fortes deste filme e que se prende com o eventual “mau” uso da religião, ato que tem o poder de moldar mentes e comportamentos. E ciente que o cinema pode ser também um veículo de passagem, de transmissão de ideias, o realizador afasta-se de qualquer tentativa de juízo de valor dos seus personagens deixando-os respirar. A exigente e cética Alina não é apenas uma vítima em si mesma, o padre e as freiras flutuam no limiar da moral mantendo as boas intenções, Voichita procura preencher o vazio da solidão.

Muita da religiosidade das mulheres que vivem neste mosteiro, bem como de Voichita, foi herdada enquanto crianças, enquanto pessoas de mente recetiva, enquanto esponjas de cérebro inocente. O passado é uma dúvida premente e o espetador é convidado a adivinhar ou perceber o mesmo.

Ainda que possam surgir comparações entre este novo filme de Mongiu e “Quatro meses…” aqui o ambiente frenético dá lugar a um sentimento mais sereno e, de certa forma, conciliador. Com tal não se pretende passar a ideia que Mongiu opte por uma abordagem mais superficial, pelo contrário. A religião é um tema tão ou mais profundo que a ética mas a fé tem um papel fundamental perante qualquer juízo de valor.

Tecnicamente irrepreensível, o realizador romeno aposta numa bela fotografia sendo que cabe à câmara denunciar a cadência narrativa. Se por vezes Mongiu demora o plano de forma a passar um pormenor, um silêncio, um vazio, noutros casos a subjetividade da câmara anuncia agitação, caos, desespero.
“Para Lá das Colinas” é um filme fascinante que faz pensar nos conceitos de liberdade, amizade e livre arbítrio, a vários níveis, seja numa sociedade como a romena, seja em qualquer outro país no qual a religião continua a ter uma força determinante sobre a consciência coletiva pois as leis de Deus podem, eventualmente, ser colocadas em causa pelas leis do Homem enquanto ser finito.

“Para Lá das Colinas” roça o tormento espiritual sendo um teste à resistência do próprio espetador que é por vezes confrontado com momentos de alguma letargia ou agitação. Exemplo disso é outra das cenas mais marcantes do filme, quando Alina e Voichita se olham, sorriem e sentem a paz, ainda que esta seja funesta e efémera. Estas duas mulheres carregam uma cruz pesada demais, um destino à prova de qualquer esperança e cabe a nós, enquanto espectadores, fazer parte dessa Via-Sacra em forma de vivência cinematográfica.
Sem dúvida que “Para Lá das Colinas” é um duro osso de roer, é uma história forte baseada num sólido argumento e com duas atrizes que superam qualquer expectativa. Sem dúvida que o novo filme de Mungiu é um dos mais importantes dramas de 2013, um convite irrecusável para ir ao cinema.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Vampire Weekend
“Modern Vampires of the City”

À terceira foi de vez



O terceiro verso da segunda faixa de “Modern Vampires of the City”, terceiro longa-duração dos nova-iorquinos Vampire Weekend, leva Ezra Koenig a cantar: “I’m not excited but should i be / Is this the fade that half of the world has planned for me?”.

A pergunta pode ser mera retórica, um desabafo, um desvario momentâneo, mas a resposta parece-nos óbvia, depois de ouvirmos o muito aguardado sucessor de “Contra”. Ao longo da dúzia de canções gravadas entre Los Angeles e a Califórnia que compõem “Modern Vampires of the City”, a genialidade do quarteto composto por Koenig, Batmanglij, Tomson e Baio anda à solta, e este disco que, segundo o vocalista da banda, encerra a trilogia, é, dizemos nós, o seu melhor trabalho até à data.

Em termos de promoção do álbum, os Vampire Weekend lançaram não um, mas dois singles, pois, segundo a banda, uma única música nunca consegue transpor o todo conceptual de um disco. Assim, de uma assentada, o mundo ficou a conhecer “Diane Young” e Unbelivers”, duas faces de uma mesma moeda musical.

Com dois discos bem-sucedidos e já sem a mesma pressão de outros tempos, Ezra e companhia optaram por fazer um disco diferente dos anteriores. Ainda que os laivos das cordas de Paul Simon continuem a assombrar da melhor maneira todo o disco, os Vampire Weekend abandonaram o registo mais “africano” e adoptaram uma alma mais “americana”. Estrelas cintilantes de uma indie-pop que prima pela frescura do seu som, os quatro rapazes de Nova Iorque ousaram abrir horizontes e - espante-se! - trouxeram pianos e alguma dolência para o seu universo. O álbum soa, assim, mais coeso, maduro e, por que não dizê-lo, coerente. Sem dúvida que os Vampire Weekned cresceram.

Essa “nova” sonoridade começa logo a delinear-se na primeira faixa do disco. “Obvious Bicycle”, que chegou mesmo para ser o título do terceiro longa-duração da banda: é uma música lenta, preguiçosa e muito longe dos ambientes dos outros dois discos da banda. Ao ouvir-se esta “balada” delineada com pianos e coros assombrados, pensamos se não estamos perante um sinal, uma amostra de uma banda que, depois de se consolidar, pretende um novo respirar. Esta lindíssima música assenta a sua base num piano apaixonado e num baixo dolente e afasta para longe, ainda que não definitivamente, a bateria de raiz tribal de Tomson ou as cordas mais agressivas de Koenig. A melodia flui como uma brisa suave e as vozes permitem uma constante e rica mudança rítmica. Tranquila, “Obvious Bycicle” funcionaria bem até como final de disco, mas no seu início permite dar ao ouvinte a sensação e o privilégio de sentir as diferenças que os Vampire Weekend querem fazer sentir na sua composição.

Os momentos repletos de algum classicismo estendem-se ao longo de todo o álbum e “Step”, por exemplo, revela mais um capítulo de toada baladeira a “Modern Vampires of the City”. O piano revela uma clara influência de Handel e o labirinto sonoro da faixa encaixa que nem uma luva na poesia que a mesma irradia: “Wisdom’s a gift, but you’d trade it for youth, age is an honour, it’s still not the truth”.

Ainda onde a velocidade dá lugar a uma bonita contenção, “Don’t Lie” ou “Hannah Hunt” procuram trabalhar e explorar instrumentos como o piano, e os conhecidos riffs da guitarra de Koenig são deixados de lado, para aqui darem lugar a registos mais acústicos. O som dos Vampire Weekend ganhou uma capa camaleónica desconhecida até aqui e a instrumentalização que daí resulta confere à banda novas camadas de talento, mantendo as canções num padrão de qualidade elevadíssimo.

Outra das bonitas canções deste trabalho, e talvez a mais ligada ao universo do já referido companheiro de estrada de Garfunkel, é “Evarlasting Arms”, um maravilhoso exercício que combina o som de violinos com uma bateria pujante e um “africanismo”, aqui sim, na dose certa. A guitarra dá um arzinho e o baixo diz presente. Não sabemos se os Vampire Weekend procuram o santo graal da música “perfeita”, mas estão, acreditem, perto.

Apesar deste discurso mais contemplativo, a energia dos Vampire Weekend não desapareceu por magia. “Diane Young”, por exemplo, tem tudo, mas mesmo tudo para arrebatar ouvidos, corpo e alma a todos. Com um delicioso sabor “rockabilly” à lá Devo, eis uma das composições mais orelhudas de um disco irrepreensível e sedutor.

“Finger Back” é outro exemplo mais alegre de “Modern Vampires of the City” e, por entre falsetes, um órgão sorridente, uma bateria alegre e um baixo acutilante, sentimos pedaços rítmicos de uns Ramones. O final da faixa assume-se como uma espécie de caldeirão sonoro encantado e descomplexado. Os Vampire Weekend misturam influências, sons, ideias e o resultado é brilhante.

Outra das pérolas maiores desta coleção de canções é “Worphip You”, cerca de três minutos que começam com apresado discurso verbal que nos leva a um rufar de tambor fantástico, que cresce aquando do maravilhoso refrão: “We worshipped you / Your red right hand / Won’t we see you again? / In foreign soil, in foreign land / Who will guide us trought the end?”.

Também “Ya Hey” (nos) acerta na mouche e mistura tiques pop, rock, gospel e um piano saído do imaginário de Bach. O sol brilha na música dos Vampire Weekend e, contradizendo a letra de “Ya Hey”, ousamos dizer que todos nós os amamos, todos nós gostamos da sua música, todos nós desejamos que chegue o dia 12 de julho. Adivinham a razão?

Ao longo dos cerca de 45 minutos de “Modern Vampires of the City” fala-se de tempo, da vida, da morte, religião, Nova Iorque, de tudo e de nada. Ao longo das 12 músicas deste maravilhoso disco nada é supérfluo, nada é colocado ao acaso, tudo tem uma lógica. Existe um impressionismo latente que refuta qualquer sentido de especificidade. A música fez-se para entreter, para dar sentido à vida, para quebrar fronteiras e ultrapassar medos e dúvidas.

Com este disco os norte-americanos Vampire Weekend dão um passo em frente na sua já conceituada, ainda que curta, carreira, e fica a certeza de estarmos perante um dos projetos mais dinâmicos, imaginativos e inventivos de uma nova vaga de músicos que afasta o comodismo sonoro com competência. Ouçamos “Modern Vampires of the City” e aguardemos ansiosamente que cheguem até nós. E por favor, venham rápido.

Alinhamento:
01.Obvious Bycicle
02.Unbelivers
03.Step
04.Diane Young
05.Don’t Lie
06.Hannah Hunt
07.Everlating Arms
08.Finger Back
09.Worphip You
10.Ya Hey
11.Hudson
12.Young Lion

Classificação do palco: 9/10

In Palco Principal

domingo, 19 de maio de 2013

“HANNAH ARENDT”
de Margarethe Von Trotta

O fantasma dentro da caixa de vidro




A sala fica escura e do centro da tela vislumbram-se umas luzes que se transformam em faróis de um autocarro que avança pela noite. O veículo para e dele apeia-se um homem sombrio que se faz acompanhar de uma lanterna. De súbito outro carro aproxima-se e algumas pessoas raptam esse homem que na aflição deixa cair a lanterna. Esse homem é Adolf Eichmann, um dos grandes responsáveis pela “Solução Final” e os seus raptores, agentes da Mossad, sedentos pela condenação do antigo nazi.

Como resultado dessa captura, Eichmann será julgado em Jerusalém e deverá responder em tribunal pela morte de cerca de seis milhões de judeus vítimas dos campos de concentração da Alemanha de Adolf Hitler. Estamos perante um dos julgamentos mais aguardados e acompanhados na história recente e que merece a atenção de todos.

Este é o mote de “Hannah Arendt”, filme da cineasta alemã Margarethe Von Trotta que retrata quatro anos da vida de Hannah Arendt, uma filósofa judia que durante a década de 1960 esteve nas bocas do mundo pela concepção de “A Banalidade do Mal”, um documento que resultou do acompanhamento in loco do julgamento de Eichmann e que seria publicado pelo prestigiado The New Yorker.

Este filme fracturante integra a Judaica, a primeira edição da Mostra de Cinema e Cultura cuja temática poderá ser acompanhada neste mês de maio nas salas do Cinema São Jorge em Lisboa.

Não sendo a primeira biopic de Von Trotta – a alemã já dirigiu películas sobre a Rosa do Luxemburgo ou Gudrun Ensslin -, “Hannah Arendt” reveste-se de uma importância premente. Conhecida por ser uma das filósofas mais sui generis na sua época, Hannah Arendt (Barbara Sukowa) carrega consigo um estigma pesado que se prende com o seu envolvimento sentimental e problemático com Martin Heidegger, seu antigo professor e pensador que apoiou algumas das ideologias do Partido Nacional Socialista.

Depois de conseguir rumar aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, Arendt tornou-se professora universitária e construiu uma carreira de sucesso na companhia do seu marido Henrich Blucher (Alex Milberg) assim como de uma série de amigos de longa data. Se algumas das conversas deste círculo “burguês” versam a simples vivência dos seres humanos enquanto casais, noutros casos é a história recente que se coloca em cima de uma mesa escondida pelo muito fumo dos cigarros.

Numa das conservas entre Hannah e Mary McCarthy (Janet Mcteer), reputada escritora e feminista da época, discute-se até que ponto o homem é um ser confiável e fiel. Se Mary usa o matrimónio como algo descartável, Hannah agarra-se à sua paixão para legitimar a força da união. Este é um dos exemplos do raciocínio de Hannah, uma mulher de convicções fortes que mesmo no seio de uma comunidade repleta de antigos refugiados judeus ousa colocar em causa a (des)humanidade de um homem como Eichmann.

Mesmo sentido a oposição de amigos nesta sua demanda, Arendt decide assistir ao julgamento de Eichmann legitimando a sua decisão nos momentos mais dolorosos da sua memória, na paixão perdida de uma geração em colapso histórico, cultural e social.

Um dos pontos mais interessantes deste trabalho de Von Trotta prende-se com a capacidade de conseguir um testemunho muito real e sentido da presença de Arendt em Jerusalém, terra que tem o prazer de albergar um amigo de longa data de Hannah, Kurt Blumenfeld (Michael Degen) que desempenhou entre outros cargos a responsabilidade de secretário-geral da Organização Sionista Mundial na década de 1910.

Entre mais de seis centenas de jornalistas, Arendt encontra um Eichmann diferente do que imaginou. Em vez de olhar para um réu impiedoso e arrogante, vê um fantasma dentro de uma caixa de vidro, um burocrata que se encontra nos antípodas do mal enquanto sentimento que preenche o ser humano. Hannha vê em Eichmann alguém que se refugia em ordens superiores tornadas lei e que prescinde da habilidade e capacidade humana de pensar. Eis Adolf Eichmann, a banalidade do mal em si mesmo.

E são essas as impressões que transcreve para o seu trabalho para o The New Yorker, uma tese envolta de sarcasmo, ironia mas também um sentido “crítico” que encontra uma barreira intransponível da classe intelectual da época que acaba por condenar Arendt ao ostracismo com a filósofa alemã a perder grande parte dos seus amigos e camaradas. Hannah tem uma ideia concreta do que viu em tribunal e foge da tentativa de punição a Eichmann procurando uma leitura em forma de pensamento de um traste humano, um animal burocrático e acéfalo que apenas cumpria ordens.

Se o fumo dos cigarros marca uma presença marcante em todo o filme, muita dessa névoa carrega consigo traços de uma herança feita de cinzas que não abandonam o consciente colectivo. Os “tempos negros” acompanham os subconscientes das gerações mais novas da comunidade judia que não aceita que os mais velhos tenham sido vítimas de algo tão atroz, tão pouco entendendo os sobreviventes pois “dos campos de concentração apenas criminosos e prostitutas conseguiram escapar à morte”.

E é uma dessas interrogações que leva Arendt a colocar a dúvida que vai tornar a sua investigação num alvo fácil do ódio alheio. Será que alguns líderes judaicos colaboravam com os nazis? No fundo, Hannah Arendt quer entender a história, os seus críticos querem a punição de um assassino. Diferentes perspetivas, díspares juízos.

Se o objetivo de Von Trotta era colocar o espetador a pensar, este “Hanna Arendt” consegue-o na plenitude e muita da força desta película está na magnífica interpretação de Barbara Sukowa que aguenta em si mesma toda a intensidade dramática do filme. A realizadora tem mesmo o mérito de transformar uma atriz fisicamente longe da verdadeira Hannah Arendt numa sósia perfeita de uma mulher teimosa, obstinada, coerente.

Outros dos trunfos da realizadora está na utilização das imagens reais do julgamento que espelham a tensão real vivida nesses momentos bem como na utilização da língua alemã durante os encontros entre o outonal casal Arendt e Blucher e a restante pandilha intelectual que faz a ligação intrínseca entre Hannah e a sua terra natal. O encantador sotaque que Sokowa abrilhanta o seu personagem quando fala inglês surge como homenagem a um país que lhe conferiu a cidadania depois de ter sentido o epíteto de apátrida durante quase duas décadas.

Os breves flashes de regresso ao passado de Arendt enquanto uma jovem aluna de 19 anos e depois no seu reencontro com Heidegger na tentativa de compreender o antigo amante e professor conferem rigor ao pensamento dramático de Von Trotta que tem em alguns personagens secundários âncoras de toda a trama como o é, por exemplo, a jovem assistente Lotte (Julian Jentsch).

No fundo, este “Hanna Arendt” é um puro exercício cinematográfico, e provocador, sobre a linha ténue que divide a objectividade da paixão, a razão da radicalidade, o “bem” do “mal”. E, acima de tudo, um excelente pretexto para ir ao cinema.

In Rua de Baixo

“JACOB JONES AND THE BIGFOOT MYSTERY”
PS VITA

Quebra-cabeças com estilo



Cada vez que a Sony lança um jogo para a PS Vita sentimos um frenesim. Apesar de a consola apresentar um sem número de novidades e atrativos, os jogos já conhecidos para o segmento levam sempre a pensar se será desta que todas as potencialidades da máquina japonesa sejam postas em prática.

Com gráficos fantásticos, estamos perante um aparelho que tem uma elasticidade acima da média em termos de empatia com o jogador/utilizador e passar horas agarrado a esta pequena maravilha é quase inato.
Apostada em conquistar outros públicos e fugindo aos formatos de jogo mais comuns, chega-nos agora uma nova experiência sensorial para a Vita. Falamos do episódio inicial de “Jacob Jones and The Bigfoot Mystery”, um jogo que vai deixar todos com a cabeça à roda devido aos muitos puzzles que esta série oferece, um pouco à imagem de Professor Layton da concorrente Nintendo.

Ainda apenas disponível para download, estamos perante uma aventura repleta de enigmas, boa disposição, excelentes gráficos e uma jogabilidade bastante aceitável. Jacob Jones é sinónimo de algumas horas bem passadas e que vai fazer qualquer jogador perder a cabeça.

Esta é, esperamos, uma boa aposta da Sony que consegue reunir imaginação, bons gráficos e uma ambiente muito atrativo e que funciona como uma aventura de quadradinhos com personagens cativantes, diálogos acutilantes e cenários muito especiais onde o colorido marca uma forte presença. Para além disso, existem interessantes efeitos 3D e os vários sensores de movimento da consola estão bem aproveitados.

O personagem principal desta aventura é Jacob Jones, um rapaz inteligente que prefere o contacto com a natureza do que socializar com semelhantes. Logo no início do jogo, Jacob viaja com os pais em direção a um campo de férias que vai ser o palco da grande maioria da ação do jogo. Pouco entusiasmado com a ideia de passar alguns dias da sua pacata existência com outras crianças, Jacob vê na presença de um inesperado companheiro, um Bigfoot, o possível início de excitantes aventuras.

Toda e qualquer ação deste jogo remete para a solução de puzzles e quebra-cabeças que requerem a utilização do ecran táctil para a devida conclusão. Se em alguns dos casos, o problema é “facilmente” resolvido, noutras ocasiões é mesmo necessário puxar pelos neurónios.



Caso não se consiga revolver bem a tarefa, recompensada com créditos, podemos sempre pedir algumas ajudas. Para isso contamos com um livro com respostas múltiplas e um telefone que permite, enquanto existir saldo, recorrer aos doutos conhecimentos de um tio simpático e um irmão mais velho cuja impaciência não impede de ajudar o mais jovem membro da família Jones. Estas ajudas têm obviamente custos que variam entre um e três créditos.

Ah, uma questão pertinente. Apesar de existirem várias tentativas de resolução dos enigmas, quando mais rápido se encontrar a feliz solução mais pontos de mérito serão arrecadados ainda que a utilização dos mesmos no próprio jogo seja um mistério em si mesmo. Talvez os futuros episódios da série possam esclarecer esta questão…

Apesar de toda a ambiência gráfica de Jacob Jones remeter para um público juvenil, a dificuldade de alguns puzzles pode levar a alguma resistência por parte dos mais novos pelo que se recomenda a partilha das delícias deste jogo com adultos. Ainda assim, os jogos são divertidos, variados, apesar da inevitabilidade de sentir uma sensação de deja vú em algumas vezes, não particularmente dentro deste episódio mas comparativamente com outros jogos do género. Voltando à dificuldade de alguns puzzles, existe a possibilidade de evitar a resolução dos mesmos mas tal decisão é limitada e implica do desenrolar da própria história.

Para os mais perspicazes e empenhados, cada resolução completa é premiada com os já referidos créditos que podem ser investidos para a conquista de novas dicas. Jacob pode também amealhar alguns créditos se olhar pela limpeza do campo de férias pois cada lata de refrigerante colada no lixo é premiada com um gracejo em forma de crédito.

A ação do jogo fora dos puzzles está também muito bem conseguida e os diálogos com os vários e peculiares personagens envia o jogador para um mundo alternativo repleto de magia. Os diálogos (em português) e as vozes (em inglês) são notáveis e facilmente sentimos que fazemos parte da aventura. À medida que o jogo evolui maior é a cumplicidade entre consola, jogo e jogador e o fim da aventura leva a uma nostalgia quase imediata.

Este primeiro episódio de Jacob Jones tem tudo para criar uma grande horda de seguidores e o mundo particular desenvolvido pela Lucid Games vai ficar na memória de todos. Se uma das grandes vantagens deste jogo é a interatividade do jogador com os personagens e o cenário talvez, num futuro próximo, a questão da dificuldade de alguns puzzles, e a variedade dos mesmos, possam ser revistos de forma a tornar este jogo mais children friendly.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 16 de maio de 2013

“EXPLICAÇÕES DE PORTUGUÊS – EXPLICADAS OUTRA VEZ”
de MIGUEL ESTEVES CARDOSO

Crónicas de um bom malandro




Um homem nasce, cresce, casa, tem filhos, descasa, encontra o amor e foge da morte. A vida pode ser um somatório de acontecimentos, causas e acasos mas, para alguns, a memória perdura no imaginário através de uma herança. No caso de Miguel Esteves Cardoso, a palavra escrita é esse património que se quer recordado, reinventado, descoberto.

Na sequência de um namoro que viria a virar matrimónio, Esteves Cardoso e a Porto Editora decidiram dar o nó e reeditar algumas das obras que mais marcaram o panorama literário das últimas décadas em Portugal.

De uma assentada, a Porto Editora ganhou o espólio de Miguel Esteves Cardoso e traz de novo às livrarias “A Causa das Coisas”, “O Amor é Fodido”, “Os Meus Problemas” e “Explicações de Português – explicadas outra vez” e apresenta ainda um novo trabalho do autor: “Como é Linda a Puta da Vida”, outro livro de crónicas mundanas. Para além de alguns arranjos, estes “novos” livros de Esteves Cardoso sofreram um lifting e contam com as ilustrações de Rui Ricardo a abrilhantar as capas. No que toca a alterações editoriais, esta nova abordagem permitiu que as próprias obras crescessem.

Em “Explicações de Português – explicadas outra vez”, por exemplo, a organização das crónicas esteve a cargo de Vasco Rosa; Esteves Cardoso salienta que este tomo, originalmente editado em 2001, é composto por pedaços de texto que não foram escolhidos por si, alguns deles inéditos, algo que difere dos restantes trabalhos do autor.

Tendo ainda como referência este livro que conta com um galo de Barcelos na capa, Miguel Esteves Cardoso percorre as mais de 270 páginas desta obra com aquilo que melhor caracteriza a sua escrita, que aposta no sentimento genuíno de uma portugalidade à prova de qualquer invasão estrangeira. Ao longo das páginas verbaliza-se, diferem-se sentimentos, vive-se, mata-se, recebe-se, suspira-se, sente-se o ardor de uma pátria egrégia, solta-se a animosidade do animal humano, proíbe-se a beleza, trabalha-se, agradece-se e, acima de tudo, vive-se.

Ler ou reler Miguel Esteves Cardoso é sentir a paixão da escrita, da ideia tornada palavra, do sentimento que nos transcende até à realidade palpável. O amor, por exemplo, sentimento que transborda nas linhas deste livro desde o seu prefácio em forma de declaração apaixonada, é omnipresente.

Logo nas primeiras linhas de “Explicações de Português – explicadas outra vez”, escreve-se sobre a união de seres idênticos, de somas entre parte de gente que se identifica. Em “Abraço”, escreve assim Esteves Cardoso: “As almas gémeas quase nunca se encontram, mas, quando se encontram, abraçam-se”.
É esta a magia da escrita de um homem que se diz apaixonado e que nos apaixona, ao presentear-nos com a sua e arte de formar textos, histórias e experiências que fazem crescer a própria língua portuguesa que, na pena de Esteves Cardoso, é utilizada de uma forma pessoal e transmissível.

In Rua de Baixo

Noah and the Whale
“Heart to Nowhere”

Nascidos para correr



Ingleses de gema, os Noah and the Whale lograram sair da clandestinidade da londrina Twinckenham para o espetro do panorama musical a nível global, servindo-se de uma agilidade pop que os fez percorrer caminhos indie folk, até chegarem a estradas onde o rock acelera sem respeitar regras de velocidade.

Quinteto formado em 2006 e liderado por Charlie Fink, o homem que empresta voz ao discurso da banda, os Noah and the Whale lançam agora o seu quarto disco de originais e “Heart of Nowhere” assume-se com o trabalho mais forte e coerente do grupo londrino.

Se “Last Night on Earth”, lançado em 2011, consolidou a banda em termos de afirmação enquanto referência musical, valendo-lhes inclusive um galardão platinado, este novo trabalho afasta definitivamente os Noah and the Whale da exclusividade indie e é o rock que mais ordena. Fink continua a abraçar as vocalizações perto da sonoridade de Lou Reed e os tiques de um rock cinematográfico à Bruce Springsteen são por demais evidentes. A ambiência deste “Heart of Nowhere” está também carregada de um power pop oriundo dos anos 1980, onde o amor que rompe a noite, a vontade de crescer, a tentativa de agarrar um sonho fazem lembrar - e desculpem a repetição - alguns dos álbuns charneira do Boss.

O som de Fink Hobden (violino e teclas), Owens (baixo), Abbott (guitarra) e Pettula (bateria) deambula entre uma forte linha de baixo, a luz do violino, as guitarras em desafio, e este “Heart of Nowhere” soa a nostalgia, a vento nos cabelos e à vontade de ultrapassar desafios, de correr atrás de sonhos. Exemplo claro dessa atitude é a belíssima “All Throught the Night”, uma canção que é atravessada até à medula por uma guitarra triunfante, que reclama a sua importância através de solos que fazem bem aos ouvidos.

Grande parte das melodias deste disco têm a particularidade de possuir um ADN radio-friendly e, arriscamos, que essa ideia mais uma vez remete para os gloriosos anos 1980. Longe vão os tempos de “Paceful, the World Lay Me Down” e hoje Charlie Fink tem objetivos alargados para a sua banda. Na faixa título, por exemplo, o convite a Anna Calvi resulta na plenitude e, a par da dança solta dos violinos e do acutilante baixo, é a voz da menina que acompanha Fink no refrão e, mais tarde, a solo, que dá ainda mais luz à já cintilante música dos Noah and the Whale.

Ouvir este “Heart of Nowhere” é sentir a adrenalina a correr dentro das dez músicas do disco. Não pense que endoideceu se o seu pé insistir em bater ao longo dos curtos 35 minutos que dura o mais recente disco de Fink e companhia. “Lifetime”, por exemplo, agarra-se a alguma da tradição folk da banda e dispara violinos que são bem secundados por um baixo primaveril, que sublinha uma letra nostálgica que recorda sonhos, rezas, promessas. O corpo agita-se e quer mais.

Falando da poesia de Charlie Fink, este é, por certo, o disco mais intimista do cantor e guitarrista dos Noah and the Whale. “Still After All These Years” reforça esse pensamento e Fink apela às memórias e experiências de vida, ainda que se recuse a ideia de um qualquer tribunal incriminatório que declarará penas insustentáveis. Apenas se lembram amores e sentimentos que perduram. “And I think after all these years, still something in me /Still after this years, something still burns”, canta-se, dolentemente. Ainda assim, não se pense que o amor pode ser a cura para a desilusão da passagem do tempo.

Existem outros momentos em que os lamentos pop/rock deste disco se tornam em autênticos hinos de verão. “There Will Come a Time” e “Now Is Exactly the Time” são exemplos de duas canções despretensiosas que se tornam, sem demora, em verdadeiros vícios auditivos. Se no primeiro caso o ritmo aponta para um ato mais celebrativo onde se reclama por amizades perdidas, em “Now Is Exactly the Time” a atmosfera é mais calma e a ausência de outros tem um perdão à vista. Vivem-se momentos certos para mudar de página, para seguir em frente, sem mágoas.
Esta verdadeira terapia musical, assente num baixo mais presente e numa bateria mais coesa, resulta em parte do trabalho de Craig Silvey, homem que trabalha com, por exemplo, os canadianos Arcade Fire, e consegue criar um som mais amplo, com as cordas e os sintetizadores a assumirem importante papel. Se tivermos em consideração que muitas destas composições foram gravadas num espírito “ao vivo”, o resultado final ainda parece mais interessante.

Para além da expansão sonora que este disco representa, os Noah and the Whale têm ainda coragem e mérito de construir temas mais intimistas e introspetivos, como é o caso de “Not to Late”, faixa que encerra o disco. A esperança, como já referido, é um dos sentimentos mais badalados neste álbum e Fink tem noção que nunca é tarde de mais para se sentir realizado, para juntar família e amigos, para entender que a juventude partiu.

Em tempos onde o cinzentismo é parte do quotidiano, discos como este “Heart of Nowhere” são autênticas dádivas divinas e nada melhor que um LP feliz, bonito, cheio de brilho, para afastar fantasmas. Coloque-se o disco a tocar, sinta-se “Introduction”, caminhe-se ao longo do restante álbum e, depois de acabar, façamos de novo Play. Vamos a isso? 1, 2…3!

Alinhamento:

01.Introduction
02.Heart of Nowhere
03.All Throught the Night
04.Lifetime
05.Silve rand Gold
06.One More Night
07.Still after All These Years
08.There Will Come a Time
09.Now is Exactly the Time
10.Not to Late

Classificação do palco: 8/10

In Palco Principal

terça-feira, 14 de maio de 2013

“LINHAGEM SANGRENTA”
de JAMES ROLLINS

O jogo da eternidade



A obra de James Rollins é sinónimo de ação, aventura, uma linha temporal que vagueia entre passado e futuro e algum misticismo. Com “Linhagem Sangrenta”, romance integrado na coleção “Série Força Sigma”, Rollins traz mais um potente thriller que vai ser responsável por uma leitura compulsiva e cheia de suspense.

Recentemente editado pela Bertrand, “Linhagem Sangrenta” surge como mais um esperado capítulo na obra de James Rollins, veterinário de formação que dedica a sua vida à escrita – tendo ficado conhecido por obras como “O Mapa dos Ossos” e “A Colónia do Diabo”.

Desta vez, Rollins transforma as mais de 450 páginas deste livro num turbilhão de acontecimentos que distam alguns séculos entre si: a trama tem a sua génese na Galileia do século XI e vivemos o ano de 1025. Infiltrado numa antiga cidadela, um cavaleiro da Ordem dos Templários descobre acidentalmente um tesouro sagrado, há muito escondido num labiríntico forte. O Bachal Isu é uma peça de valor transcendente, que observa um poder misterioso e aterrador que tem a possibilidade de alterar o curso normal da humanidade.

Cerca de dez séculos depois, tendo África como cenário, piratas somalis atacam um iate e, na sequência desse episódio, raptam uma jovem que está grávida. Mas esta não é uma jovem qualquer. Trata-se de Amanda Gant-Bennett, filha do presidente norte-americano. Este rapto esconde uma intriga profunda. Consciente da existência de algo muito estranho, o comandante Gray Pierce vê-se na premência de enfrentar uma sinistra cabala que tem, na manipulação da própria história, a sua razão de ser, e agora quem está sob ameaça é o atual presidente.

A especificidade desta missão do grupo Sigma levou esta organização a requisitar a ajuda de dois agentes especiais que reservam talentos fora do comum. Essa dupla é composta pelo capitão Tucker Wayne, ex-Ranger do Exército e “Kane”, o seu companheiro de quatro patas.

O plano está em marcha mas o resgate ganha novos contornos e transforma-se numa gigante emboscada onde a traição marca presença. A equipa liderada por Gray descobre que Amanda Gant-Bennett é apenas um simples peão de um jogo de xadrez assente em atos de terrorismo.

Enquanto o perigo evolui a cada segundo, a cada passo, uma bomba explode numa clínica de fertilização na Carolina do Sul e revela uma conspiração secular, que tem no código genético humano um esquema que ultrapassa quaisquer limites.

Tendo como principal inimigo o relógio que teima em não parar, a força Sigma tem como missão salvar um bebé inocente que poderá encerrar em si o mito da vida eterna, o que alteraria por completo o calendário da vivência humana enquanto ato finito.

Tal como é inato à escrita de Rollins, este “Linhagem Sangrenta” mistura mistérios históricos, ciência moderna e uma amálgama de cenários que deixa o leitor imerso na trama. A série Sigma mantém esse padrão e, ao longo deste livro, vemos como algumas decisões podem alterar o percurso da humanidade e deixar o Homem perante enigmas impossíveis de prever.

Associando ciência, mito e lenda, Rollins consegue criar uma nova perspetiva narrativa que mistura passado, presente e futuro de forma coesa. A sua escrita junta o espírito aventureiro de personagens como Indiana Jones e a perspicácia de Robert Langdon e, o balanço criativo que daí resulta, confere um equilíbrio entre ciência e história, fato merecedor de aplausos.

No fundo estamos perante mais um excitante thriller que fará as delícias dos amantes de uma boa e épica aventura, sendo um livro ideal para quem quer passar bons momentos de entretenimento.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 10 de maio de 2013

ROMANCE POLICIAL NÓRDICO

Uma fórmula de sucesso vinda do frio



Stieg Larsson, Jo Nesbo, Henning Mankell, Arnauldur Indridason, Camilla Lackberg, Yrsa Sigurdardóttir, Asa Larsson, Lars Kepler, Karim Fossum, Mons Kalentoft. Estes nomes dizem-lhe alguma coisa? Não, não estamos a falar de personagens de Tolkien. Esta é uma lista possível que refere alguns dos nomes maiores do romance policial originário do norte da Europa que, de uma forma algo inesperada mas convincente, invadiram as livrarias de todo o mundo.

Suecos, dinamarqueses, finlandeses, islandeses, não importa; estes escritores colocaram a Escandinávia no mapa do que de melhor se faz em termos de literatura policial. Curiosamente – ou talvez não -, falamos de uma zona do globo que tem percentagens de incidências criminosas ínfimas comparadas com países como o Brasil ou Estados Unidos. Será a imaginação mais fértil por estas paragens?

Numa altura em que as grandes referências económicas dos países nórdicos como o são (ou eram) a Nokia, a Volvo e a Saab entraram em colapso, são os romances policiais que se assumem como um novo e determinante filão financeiro para a referida zona europeia. Para além de servir de cartão-de-visita, a literatura policial nórdica tornou-se numa imagem de marca e, autores como o malogrado Stieg Larsson ou Henning Mankell, conseguem vender milhões de livros, com destaque para as mais de 60 milhões de cópias da Trilogia “Millenum” já vendidas e a consequente adaptação cinematográfica das aventuras da magnética Lisbeth Salander.

A origem do policial

Através da sua história recente, a literatura viu surgiu novos géneros que tinham, para além da função de entreter, o desígnio de funcionar como uma “agência de viagens”, que lograva maravilhar os leitores com novos lugares e costumes. O policial não foge à regra.

Muitos defendem que terá sido Edgar Allan Poe a escrever o primeiro romance policial quando, no início da década de 1840, publicou “Crimes na Rua Morgue”. Aproveitando esse balanço, autores britânicos como Agatha Christie ou Arthur Conan Doyle transformaram personagens como Hercule Poirot ou Sherlock Holmes em habitantes usuais no imaginário de todos.

A febre do policial alastrou-se um pouco por toda a Europa e, o estilo da narrativa, ganhou milhões de adeptos que sonhavam com as aventuras de detetives e comissários de polícia que tinham, na intuição e lirismo, as suas melhores armas. A escrita destes romances era outra das vantagens deste novo “estilo” pois, ao invés de recorrer a linguagens mais elaboradas e barrocas, serviam-se de um discurso simples e direto, captando de imediato a atenção do leitor.

Já no terceiro quartel do século XX, o sucesso destes livros fez com que várias cadeias televisivas arriscassem passar para o pequeno ecrã as aventuras do Holmes, Poirot ou Maigret, entre outros, sendo que a aceitação dos espetadores era crescente. O policial passou a integrar o ADN cultural, por exemplo, dos britânicos, que reclamavam para si o mérito do género.

Mas o fenómeno era global e, um pouco por todo o mundo, surgiam novos personagens sedentos por vencer o crime. Se da Grã-Bretanha saiam académicos e pensadores como Holmes e Poirot, os norte-americanos Raymond Chandler ou Dashiell Hammett criavam homens à beira do colapso pessoal, como Philip Marlowe ou Sam Spade. Não querendo ficar atrás, o checo Josef Skvorecky fez nascer o inspetor Burovka, o italiano Camilleri deu vida a Montbalbano e Mankell imaginava Wallander, um melancólico polícia sueco que exponha as mudanças da própria sociedade.

A própria conjuntura política da Europa ajudou a fomentar o género policial. Na ressaca da Segunda Grande Guerra, vários autores regressaram ao passado recente e países como a Holanda, Itália, Alemanha, França e Inglaterra tentavam esclarecer dúvidas do conflito através de intrigas policiais internacionais, que faziam repensar a natureza da guerra enquanto jogo de xadrez à escala global.

A fuga ao banal

Paulatinamente, o romance policial foi ganhando o epíteto de género menor dentro da própria literatura. A banalidade encontrada em milhares de romances de natureza criminal era agora um incentivo para a fuga dos leitores do género. Era precisa e urgente uma nova visão.

Com uma cultura necessariamente diferente do resto da Europa, os escandinavos têm um passado que evocava uma longa tradição de sagas repletas de ação e conquista sanguinárias, assim como uma paisagem única que absorve dos contextos gélidos a esperança de um calor interior, muitas vezes conferido pelo fervor de uma escrita singular.

E terá sido essa estranheza – essa nova linguagem – que provocou, numa primeira abordagem, uma barreira à aceitação dos autores nórdicos por parte do mainstream europeu. Os contornos obscuros da narrativa de alguns autores serviu de tampão cultural e mesmo Stieg Larsson teve grande dificuldade em publicar “Os Homens que Odeiam as Mulheres”, o primeiro volume da saga Millenium. Os editores britânicos, por exemplo, chegaram mesmo a ponderar não editar mais obras de escritores como Indridason, pois as fracas vendas que os seus primeiros livros revelavam criavam entraves financeiros. Os nomes complicados dos personagens e a nomenclatura regional afastavam os leitores mais “preguiçosos”.

Cientes da importância crescente da globalização, alguns autores escandinavos perceberam que tinham de mudar as perspetivas da sua escrita. O apelo à universalidade, ainda que sem apagar vestígios próprios inerentes à sua cultura, começou a registar-se nos romances policiais naturais da Suécia, Dinamarca e países vizinhos e, alguns autores, decidiram recolocar o leitor face a geografias e conceitos desconhecidos.
A interconetividade começou a ser real e, autores como Nesbo e Indridason, colocaram nos seus livros mapas das cidades onde a narrativa tinha lugar, ou faziam a descrição de acontecimentos e tradições culturais muito localizadas – como é o caso da cozinha tradicional.

Por sua vez, Mankell foi um dos autores que conseguiu a proeza de regionalizar a ação. Assim, um crime horrendo numa pequena cidade como Ystad, na Suécia, atrai consideravelmente mais atenção que um delito na gigantesca Nova Iorque. Os pormenores, o sal de qualquer trama, ganhavam o desafio perante a banalidade da grandeza.

Os personagens também cresciam e assumiam contornos muito claros e distintivos. Ainda que resistissem personagens à imagem de Marlowe e Spade, surgiam novos desígnios. Se em “Smilla e os Mistérios de Neve”, de Peter Hoeg – para muitos o primeiro grande thriller da nova vaga dos policiais nórdicos -, ficamos a conhecer Smilla Jasperson, uma especialista em propriedades físicas do gelo, Stieg Larsson presenteou todos com Lisbeth Salander, uma jovem socialmente inadaptada, tatuada e repleta de piercings que assume a função de investigadora cyber-punk especialista em informática. Ambas mulheres, ambas “não-polícias”, ambas absolutamente fascinantes. Pelo meio, surgem advogadas a resolver crimes, padres que ajudam na descoberta de mistérios insondáveis e hipnotistas que procuram na sua arte a razão de assassinatos brutais.

A reinvenção do crime

Para além das referidas inovadoras filosofias e perspetivas dos romances, os autores nórdicos dinamizaram também o género noir. Ao contrário de autores que mantém as linhas mais tradicionais de contar a sua história e de desvendar o crime, tal como muitos dos seus antecessores fizeram ao longo de décadas, Nesbo, Larsson, Mankell e comparsas extravasam esse conceito.

Ainda que Perry Mason, Ellery Queen ou Alex Cross sejam exemplares na sua luta contra o crime, qualquer destes personagens não tem a profundidade e a riqueza de Wallander, Harry Hole ou Mikael Blomkvist. Ao contrário de algum distanciamento entre criminoso e investigador, obras como a trilogia “Millenium” ou livros como “Pássaro de Peito Vermelho” ou “O Homem de Pequim” levam o detalhe ao limite, mostram veracidade e brutalidade nos crimes que são, na sua essência, viagens ao interior de nós próprios, ao limite da racionalidade do ser humano, percursos a lugares que nos estão bem próximos.

Ainda assim, apesar de todas estas ou outras variadíssimas razões, o sucesso global desta escrita viking suscita algumas dúvidas. Será que esta fórmula tem capacidade de ser reinventar depois de esgotada? Conseguiram os autores nórdicos suplantar eventuais imitações de falsas heroínas inspiradas em Salander? Ou será esta onda motivo de transcendência para outros escritores? A palavra está do lado do leitor.
E, pegando nessa questão, deixamos aqui um desafio a quem nos lê. Digam-nos quais os autores e obras policiais de origem nórdica que mais os satisfizeram, quais as maiores desilusões, se elas existiram, e que títulos recomendariam. Digam de vossa justiça e evitem o crime do silêncio.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Long Way to Alaska
“The Life Aquatic EP”

Cores unidas em volta do sol



Passados quatro anos desde “Melodies to Greet Sunrise e Feed Sunset”, primeiro registo sonoro dos bracarenses Long Way to Alaska, chega-nos agora outro EP, denominado “The Life Aquatic”, uma clara homenagem ao filme charneira de Wes Anderson.

Pelo meio ficou o único longa-duração do grupo, “Eastriver”, trabalho datado de 2012, dois anos depois de algumas experiências que levaram os Long Way to Alaska a serem escolhidos como finalistas do festival Termómetro, a integrar a coletânea "Novos Talentos Fnac" e a fazerem a primeira parte do concerto dos britânicos The XX na Aula Magna.

A pop doce e sonhadora, com umas pitadas de indie folk à mistura, criada por Gil Amado, Gonçalo Alvarez, Lucas Carneiro e Nuno Abreu, cresceu nestes quatro anos e hoje os Long Way to Alaska têm o mérito da criação de uma música única em Portugal. Delicadamente açucaradas, as composições deste quarteto bracarense, que entretanto viu dois dos seus membros rumarem à capital, criam um universo ímpar no panorama musical nacional.

Música que extravasa fronteiras auditivas e geográficas, a arte dos Long Way to Alaska já é alvo de menções de reputadas publicações como o são o “New Musical Express” ou o “Les Inrockuptibles” e tais referências são apenas mais um passo normal e seguro na evolução qualitativa da banda.

Ainda que quatro músicas saibam, definitivamente, a muito pouco, “The Life Aquatic EP” surge como um apontamento temporal, um disco que marca um determinado ponto da carreira da banda. No fundo, este EP pega naquilo que “Eastriver” apontava, mas indica uma evolução no processo criativo da banda que, paulatinamente, abandona o registo acústico e dá outro corpo às suas canções.

Ainda que as guitarras mantenham um plano de destaque, sente-se uma presença maior de um ambiente que aponta para um tropicalismo cheio de sacarose. “Air”, o primeiro registo do EP, é um exemplo da maior luminosidade que os Long Way to Alaska querem dar a quem ouve a sua maravilhosa música. O baixo acutilante abre caminho para as melodiosas cordas e as vozes tímidas, mas presentes, deixam-se levar por uma bateria que irradia felicidade.

Com a colaboração de Miguel Nicolau, membro dos Memória de Peixe, “King of Your Own” é uma verdadeira ode ao já referido sentimento tropical e soalheiro que povoa a atual música dos Long Way to Alaska. A guitarra, agora com espasmos elétricos, ousa planar por sobre os ritmos alegres e ao corpo que ouve esta parafernália sonora é impossível não sentir o frenesim da boa disposição.

Sente-se que, cada vez mais, os Long Way to Alaska são reis de si próprios e “Aquatic Brotherhood”, a terceira música deste EP, é mais um exemplo de uma honestidade e simplicidade desarmantes. O mellotron dá outra profundidade ao som e sentimos o doce mergulho de golfinhos no mar sonoro desta aventura aquática.

“Beacon Fire”, o último registo deste EP, continua a caminhada suave de um percurso musical que merece ter mais episódios em breve. É tão fácil apaixonarmo-nos pela música dos Long Way to Alaska como desejarmos o sol e o calor de verão em janeiro.

Apesar de serem apenas quatro músicas, não podemos deixar que este curto pecúlio se esvaneça em si próprio. Ajudemos ao crescimento destas composições, oiçamos este EP vezes sem conta e em loop. Regressemos ao passado recente e tiremos “Eastriver” da estante. Façamos qualquer coisa para este sol não deixar de brilhar. Oiçamos Long Way to Alaska, por favor.

Alinhamento:

01.Air
02.King of Your Own
03.Aquatic Brotherhood
04.Beacon Fire

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

terça-feira, 7 de maio de 2013

DEERHUNTER
“MONOMANIA”

A paixão segundo Bradford Cox



Cerca de três anos depois do lançamento de “Halcyon Digest”, os norte-americanos Deerhunter lançam “Monomania” com selo da prestigiada editora britânica 4AD.

Este período de repouso editorial levou a algumas mudanças no seio da banda e, para além da saída do baixista Josh Fauver, com a consequente adaptação de Josh McKay ao instrumento de quatro cordas, registou-se a entrada de um terceiro guitarrista com essa honra a caber a Frankie Broyles, antigo elemento dos Balkans.

Numa primeira audição, “Monomania” revela-se directo e honesto até à medula e a nova composição da banda parece ser sinónimo de estabilidade e segurança. Ainda assim, não se espera consenso na apreciação deste novo trabalho da banda de Atenas, Geórgia, terra natal de R.E.M., uma das bandas que mais influenciaram o som dos Deerhunter, nomeadamente nos tempos do som sujo de “Monster”.

Brandford Cox, líder incontestado dos Deerhunter, afirma-se muito satisfeito com o resultado final de “Monomania” e fala de uma atmosfera muito garage e nocturna. De facto, “Monomania” traça um percurso sonoro que faz jus a uma certa homenagem a bandas da preferência dos elementos dos Deerhunter. Dos já referidos R.E.M., o som deste disco explora territórios de grupos como os Sonic Youth, Pixies, Eels ou The Strokes.

Ao longo das doze canções de “Monomania”, temos um pouco de noise, punk e shoegaze, assim como de alguns elementos descaradamente pop. Etiquetas, géneros e tiques à parte, mais que uma mescla de influências, os Deerhunter são uma banda inteligente e com um talento especial de fazer canções despidas de preconceitos.

Ciente de que é a música que lhe alimenta a alma, Bradford Cox, depois do lançamento de “Halcyon Digest”, afirmava-se monogâmico em relação aos seus projectos de vida e ambições. Questionando a sua qualidade enquanto músico, chegou mesmo a revelar-se obsessivo: “Existe apenas uma coisa que me deixa realizado e feliz e isso é fazer música”. Passados dois anos sobre estas palavras, só nos resta desejar muitas felicidades ao líder dos Deerhunter.

E esse sentimento de (alguma) euforia sente-se logo na primeira faixa de “Monomania”. Depois de uma cacofonia instrumental, a voz de Cox ataca o breve silêncio deixado pelas guitarras ao desafio. «Neon Junkyard» é sinónimo de um rock herdado do grupo de Casablancas e companhia, banda que em tempos era vítima de escárnio de um Bradford Cox farto de comparações. Ainda assim, é inegável que «Neon Junkard» seja um eco das lembranças de “Is This It”, ainda que a voz de Cox, infectada pela pulsação rítmica das guitarras, seja mais escura e punk que a de Julian Casablancas. O final sónico da canção de abertura e a batida desconcertante da bateria indicam que a tempestade musical continua a breve trecho.

Sem demoras, «Leather Jacket II» arranca em modo pesadelo dolente e punk com as guitarras em diálogo constante e repletas de um excitante feedback. A distorcida voz de Cox ecoa e deambula em círculos infinitos sempre a reboque das cordas assanhadas das guitarras. O final da composição afigura-se abrupto e a arritmia em forma de caos dá lugar a uma curta pausa.

«The Missing», uma das canções mais orelhudas de “Monomania”, devolve paz à música dos Deerhunter e desta vez é a voz do guitarrista Lockett Pundt que brilha. As teclas do órgão fazem-se ouvir ao mesmo tempo que a guitarra, agora bem suave, que pede pela intervenção dos restantes companheiros de luta. Sem dúvida um dos momentos mais “doces”, senão o único, deste quinto disco de originais da banda norte-americana.

Logo a seguir, a brilhante «Pensacola» traz-nos de volta os sons mais próximos dos já referidos The Strokes e com Cox, sem pudores, a cantar: “I could be your boyfriend or I could be your shame”. As guitarras voltam a soltar-se e sente-se uma alegria contagiante nas muitas cordas que têm como máximo objetivo celebrar o rock and roll. «Dream Captain» mantém o espírito da faixa anterior, ainda que sem o mesmo fulgor, acabando por cair nas malhas mais pop, que no caso deixa algo a desejar. Ainda assim, saliente-se a preponderância do baixo e o vício auditivo que emana das sempre presentes guitarras e bateria.

«Blue Agent» traz de novo um ambiente calmo, com um baixo e uma bateria a atirar descaradamente para um planeta sonoro próximo do que faziam os Pixies; até mesmo a voz de Cox faz lembrar alguns lamentos de Black Francis quando na companhia de um dedilhar de uma guitarra acutilante. De eco em eco, chegamos a «T.H.M.», uma canção remetida numa malha de certa forma claustrofóbica que se liberta quando a bateria assume a liderança sem esquecer o ritmo omnipresente das três guitarras. A voz assume novamente um teor distorcido, meloso e altruísta.

Descaradamente pop, «Sleepwalking», tal como «Neon Junkard», possuem aquele “gancho” que nos agarra logo numa primeira audição, ou perto disso. Estas canções são uma amostra de uns Deerhunter afastados de uma agressividade latente – não que isso seja algo que não resulte no todo musical da banda – de um passado recente e pode criar algumas expectativas ao ouvinte que reclama por mais paz nas composições da banda. Ainda assim, mais sónicos, pop ou punk, os Deerhunter são excelentes compositores e a sua música está cada vez mais consistente.

«Back to the Middle» continua o trajecto mais calmo da segunda metade de “Monomania” e traz mais mel aos ouvidos. Mais suja e punk, a faixa-título revela-se mais agressiva e noisy que as antecessoras, mas com semelhantes doses de interesse e fascínio. Sem dúvida, mais um excelente exemplo de tal “garage nocturno” com pitadas de jam session à beira do caos terminando com o som de uma motorizada em desvario.
E são os sons mecânicos de «Monomania» que servem de mote, não confundir com moto, para a intimista «Nitebike», um exercício acústico que resulta num duelo entre voz e guitarra com contornos escuros e assombrosos. Simples, seguro e muito competente.

O ritmo encorpado, ainda que contido, regressa com «Punk (La Vie Anérieure)», a composição que encerra este misterioso “Monomania”. Os sons limpos misturam-se com alguma neblina orquestrada, mais uma vez, por guitarras sem rede e em diferentes cadências e espaços. O blur sonoro dissipa-se e as cordas simples terminam o disco na companhia do baixo.

A magia que esta dúzia de canções traz inerente resulta de três anos de paragem e algumas mudanças. Sabemos que, durante esse período sabático, Cox pensou e cozinhou dezenas de canções e pelo meio trabalhou avulso com EP’s e misturas várias, e ao chegar a “Monomania” não parece exagerado afirmar que o resultado está intimamente ligado à experiência conseguida entretanto.

Bradford é um competente escritor de canções, juntando a essa qualidade os tiques de líder incontestado de um projecto que depende muito da sua genialidade e disposição. São as suas excentricidades que conseguem produzir hits inesperados e acidentais como a versão de «My Sharona», do projecto Atlas Sound, ou composições mais complicadas como o são algumas músicas deste “Monomania”.

Essa versatilidade pode ser uma questão complicada de lidar, mas Cox consegue fazer uma gestão equilibrada do assunto. E é por isso que “Monomania” se assume com um trabalho muito interessante e bem conseguido, ainda que tal soma possa ser relativizada. Se a ideia seria fazer uma sequela punk ambiental de “Cryptograms”, “Monomania” seria encarada como um tiro ao lado, um acto falhado. Mas se, ao invés, se optar por um disco emocional e de certa forma imprevisivelmente caótico, o registo de 2013 dos Deerhunter é um objecto sem mácula.

No fundo, com “Monomania”, os Deerhunter (ou devemos dizer Bradford Cox?) conseguiram um disco que reúne o melhor dos anteriores trabalhos sem parecer uma repetição de fórmulas e pode colocar a banda no patamar dos melhores conjuntos rock da actualidade. E se, eventualmente, Cox se transformar no “Morrisey das Américas”, esperemos que ninguém dos restantes Deerhunter se assuma como Johhny Marr, pois gostaríamos de ver a banda unida, coesa e no caminho do futuro.

In Rua de Baixo

Phoenix
“Bankrupt”

Pop com sabor frutado



Nascidos de cepas semelhantes aos compatriotas Daft Punk ou Air e com o sangue francês a correr por umas veias que têm nos ritmos mais dançáveis de cariz indie as suas raízes, os Phoenix apresenta-nos “Bankrupt”, o muito ansiado sucessor do reputadíssimo “Wolfgang Amadeus Phoenix”.

Passados sensivelmente quatro anos depois desse último lançamento discográfico, o quarteto de Versalhes composto por Thomas Mars, Deck d’Arcy, Laurent Brancowitz e Christian Mazzalai apresenta-se em grande forma e pronto para arrebatar os ouvidos dos seus seguidores.

Sem qualquer tipo de condicionalismo face ao sucesso do já referido disco de 2009 e depois de encabeçarem festivais internacionais como o de Coachella ou Lollapalooza, os Phoenix tiverem o mérito de construir mais um excelente álbum de canções repletas de simplicidade, diretas e competentes, mantendo o ADN da banda.

O sucesso não deixou grandes marcas nestes quatro rapazes franceses e “Bankrupt” é o resultado de um trabalho acima de qualquer suspeita. Neste disco não há nenhuma tentativa de criar hinos de estádio, existindo, sim, grandes canções pop, temas que nos vão acompanhar nestes dias de calor que se aproximam a passos largos. O verão vai ser um pouco mais brilhante com um disco assim.

Sim, é certo que Mars casou com Sofia Coppola e a banda cresceu também por isso no que toca à expressão mediática, mas o equilíbrio e a distância que os Phoenix conseguem manter em termos «sociais» é outro dos trunfos para continuarem donos de uma sonoridade firme e, podemos mesmo afirmar, única.
Ao longo da sua discografia, a banda francesa conseguiu evoluir de forma consistente e, por exemplo, em algumas peças de “Wolfgang Amadeus Phoenix” sentimos aquela sensação boa de abraçar um som perto da perfeição pop. Basta lembrar as faixas de “It’s Never Been Like That” e logo somos remetidos para um território único criado por uma banda que sabe o que quer, o quer fazer e que caminhos a seguir.

Ao ouvirmos “Bankrupt”, disco que nasce com o estatuto dos Phoenix nos píncaros da popularidade, voltamos a sentir a legitimidade e franqueza das qualidades inatas da banda, ainda que com alguns ajustamentos e evoluções.

O som continua descaradamente synth-pop e continua a existir muita magia nas canções de “Bankrupt”. A música cresce com a experiência e hoje os Phoenix são capazes de criar verdadeiras obras de arte auditiva como o são, por exemplo, “Trying to Be Cool” ou “Drakkar Noir”. A fama de que a banda foi alvo, uma forma merecida de reconhecimento pelo seu percurso musical, não obstruiu a criatividade de Mars e seus pares.

A empatia que a synth-pop proporciona já levou algumas bandas cuja matriz se enquadra mais nas raízes rock a tentar a sorte por tais caminhos minados e o resultado foi um desastre. Se para os Phoenix fazer boas canções é algo inato, para outros é uma verdadeira tarefa hercúlea.

Alheio a essa dificuldade, “Bankrupt” oferece composições como “Entertainment”, a faixa de abertura, que noutras mãos poderia soar a ato falhado, mas que nas mãos dos Phoenix revela os ingredientes certos para qualquer quadro ou contexto. Tal como toda a melhor pop, a música dos Phoenix extravasa qualquer linha temporal e encontra a sua contemporaneidade em qualquer página do calendário.

Ainda assim, afastemos desde já o fantasma de estarmos perante um novo dogma musical, pois não é esse o objetivo da banda. Aquilo que ouvimos em “Bankrupt” são canções que devem crescer com o tempo, com a maturidade, sem esteroides ou vitaminas de desenvolvimento forçado.

Sabemos que “Entertainment” ou “S.O.S. In Bel Air” são excelentes e viciantes canções, mas almejar que tenham o sentimento de eternidade de “Lisztmania”, de “Wolfgang Amadeus Phoenix”, ou “Long Distance Call”, de “It’s Never Been Like That”, é ainda precoce. No entanto, depois de uma primeira audição, podemos ficar com aquela sensação boa de reconhecer algo delicioso, como ao degustar uma iguaria suculenta. O açúcar que proporciona uma primeira dentada em “The Real Thing”, “Don’t” ou “Bourgeois” pode, definitivamente, levar a vigiar os níveis de sacarose na circulação sanguínea, mas tal efeito hiperbólico não deve levar a uma dieta muito rigorosa.

A música dos Phoenix serve para ser devorada com ou sem moderação, tal como nos der na real gana! Beba-se “Oblique City” na versão com gorduras e afastemo-nos de variações light de temas como a brilhante “Chloroform”. Deixai vir a nós as calorias dos sintetizadores e dos acordes de guitarras embebidas em licores com sabor a fruta da época.

Muita gente desconfiava deste novo disco dos Phoenix. Será que a banda se tinha deixado manipular pelas luzes intensas dos holofotes do sucesso? Aos mais céticos dizemos: façam o favor de afastar qualquer nuvem cinzenta, pois “Bankrupt” traz luz e calor. Existem grandes músicas neste mais recente trabalho do quarteto francês e algumas vão ter um lugar eterno nos corações dos ouvintes. Os Phoenix estão unidos, sólidos e, ainda por cima, têm o privilégio de fazer as coisas tal como bem lhes apetece. E isso são coisas que se conquistam com muita dedicação, arte, talento e trabalho.

Alinhamento:

01.Entertainment
02.The Real Thing
03.S.O.S. in Bel Air
04.Trying to Be Cool
05.Bankrupt!
06.Drakkar Noir
07.Chloroform
08.Don’t
09.Bourgeois
10.Oblique City

Classificação do Palco: 8,5/10

In Palco Principal