domingo, 19 de maio de 2013

“HANNAH ARENDT”
de Margarethe Von Trotta

O fantasma dentro da caixa de vidro




A sala fica escura e do centro da tela vislumbram-se umas luzes que se transformam em faróis de um autocarro que avança pela noite. O veículo para e dele apeia-se um homem sombrio que se faz acompanhar de uma lanterna. De súbito outro carro aproxima-se e algumas pessoas raptam esse homem que na aflição deixa cair a lanterna. Esse homem é Adolf Eichmann, um dos grandes responsáveis pela “Solução Final” e os seus raptores, agentes da Mossad, sedentos pela condenação do antigo nazi.

Como resultado dessa captura, Eichmann será julgado em Jerusalém e deverá responder em tribunal pela morte de cerca de seis milhões de judeus vítimas dos campos de concentração da Alemanha de Adolf Hitler. Estamos perante um dos julgamentos mais aguardados e acompanhados na história recente e que merece a atenção de todos.

Este é o mote de “Hannah Arendt”, filme da cineasta alemã Margarethe Von Trotta que retrata quatro anos da vida de Hannah Arendt, uma filósofa judia que durante a década de 1960 esteve nas bocas do mundo pela concepção de “A Banalidade do Mal”, um documento que resultou do acompanhamento in loco do julgamento de Eichmann e que seria publicado pelo prestigiado The New Yorker.

Este filme fracturante integra a Judaica, a primeira edição da Mostra de Cinema e Cultura cuja temática poderá ser acompanhada neste mês de maio nas salas do Cinema São Jorge em Lisboa.

Não sendo a primeira biopic de Von Trotta – a alemã já dirigiu películas sobre a Rosa do Luxemburgo ou Gudrun Ensslin -, “Hannah Arendt” reveste-se de uma importância premente. Conhecida por ser uma das filósofas mais sui generis na sua época, Hannah Arendt (Barbara Sukowa) carrega consigo um estigma pesado que se prende com o seu envolvimento sentimental e problemático com Martin Heidegger, seu antigo professor e pensador que apoiou algumas das ideologias do Partido Nacional Socialista.

Depois de conseguir rumar aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, Arendt tornou-se professora universitária e construiu uma carreira de sucesso na companhia do seu marido Henrich Blucher (Alex Milberg) assim como de uma série de amigos de longa data. Se algumas das conversas deste círculo “burguês” versam a simples vivência dos seres humanos enquanto casais, noutros casos é a história recente que se coloca em cima de uma mesa escondida pelo muito fumo dos cigarros.

Numa das conservas entre Hannah e Mary McCarthy (Janet Mcteer), reputada escritora e feminista da época, discute-se até que ponto o homem é um ser confiável e fiel. Se Mary usa o matrimónio como algo descartável, Hannah agarra-se à sua paixão para legitimar a força da união. Este é um dos exemplos do raciocínio de Hannah, uma mulher de convicções fortes que mesmo no seio de uma comunidade repleta de antigos refugiados judeus ousa colocar em causa a (des)humanidade de um homem como Eichmann.

Mesmo sentido a oposição de amigos nesta sua demanda, Arendt decide assistir ao julgamento de Eichmann legitimando a sua decisão nos momentos mais dolorosos da sua memória, na paixão perdida de uma geração em colapso histórico, cultural e social.

Um dos pontos mais interessantes deste trabalho de Von Trotta prende-se com a capacidade de conseguir um testemunho muito real e sentido da presença de Arendt em Jerusalém, terra que tem o prazer de albergar um amigo de longa data de Hannah, Kurt Blumenfeld (Michael Degen) que desempenhou entre outros cargos a responsabilidade de secretário-geral da Organização Sionista Mundial na década de 1910.

Entre mais de seis centenas de jornalistas, Arendt encontra um Eichmann diferente do que imaginou. Em vez de olhar para um réu impiedoso e arrogante, vê um fantasma dentro de uma caixa de vidro, um burocrata que se encontra nos antípodas do mal enquanto sentimento que preenche o ser humano. Hannha vê em Eichmann alguém que se refugia em ordens superiores tornadas lei e que prescinde da habilidade e capacidade humana de pensar. Eis Adolf Eichmann, a banalidade do mal em si mesmo.

E são essas as impressões que transcreve para o seu trabalho para o The New Yorker, uma tese envolta de sarcasmo, ironia mas também um sentido “crítico” que encontra uma barreira intransponível da classe intelectual da época que acaba por condenar Arendt ao ostracismo com a filósofa alemã a perder grande parte dos seus amigos e camaradas. Hannah tem uma ideia concreta do que viu em tribunal e foge da tentativa de punição a Eichmann procurando uma leitura em forma de pensamento de um traste humano, um animal burocrático e acéfalo que apenas cumpria ordens.

Se o fumo dos cigarros marca uma presença marcante em todo o filme, muita dessa névoa carrega consigo traços de uma herança feita de cinzas que não abandonam o consciente colectivo. Os “tempos negros” acompanham os subconscientes das gerações mais novas da comunidade judia que não aceita que os mais velhos tenham sido vítimas de algo tão atroz, tão pouco entendendo os sobreviventes pois “dos campos de concentração apenas criminosos e prostitutas conseguiram escapar à morte”.

E é uma dessas interrogações que leva Arendt a colocar a dúvida que vai tornar a sua investigação num alvo fácil do ódio alheio. Será que alguns líderes judaicos colaboravam com os nazis? No fundo, Hannah Arendt quer entender a história, os seus críticos querem a punição de um assassino. Diferentes perspetivas, díspares juízos.

Se o objetivo de Von Trotta era colocar o espetador a pensar, este “Hanna Arendt” consegue-o na plenitude e muita da força desta película está na magnífica interpretação de Barbara Sukowa que aguenta em si mesma toda a intensidade dramática do filme. A realizadora tem mesmo o mérito de transformar uma atriz fisicamente longe da verdadeira Hannah Arendt numa sósia perfeita de uma mulher teimosa, obstinada, coerente.

Outros dos trunfos da realizadora está na utilização das imagens reais do julgamento que espelham a tensão real vivida nesses momentos bem como na utilização da língua alemã durante os encontros entre o outonal casal Arendt e Blucher e a restante pandilha intelectual que faz a ligação intrínseca entre Hannah e a sua terra natal. O encantador sotaque que Sokowa abrilhanta o seu personagem quando fala inglês surge como homenagem a um país que lhe conferiu a cidadania depois de ter sentido o epíteto de apátrida durante quase duas décadas.

Os breves flashes de regresso ao passado de Arendt enquanto uma jovem aluna de 19 anos e depois no seu reencontro com Heidegger na tentativa de compreender o antigo amante e professor conferem rigor ao pensamento dramático de Von Trotta que tem em alguns personagens secundários âncoras de toda a trama como o é, por exemplo, a jovem assistente Lotte (Julian Jentsch).

No fundo, este “Hanna Arendt” é um puro exercício cinematográfico, e provocador, sobre a linha ténue que divide a objectividade da paixão, a razão da radicalidade, o “bem” do “mal”. E, acima de tudo, um excelente pretexto para ir ao cinema.

In Rua de Baixo

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