terça-feira, 28 de abril de 2015

Nadine Saha - “Fast Food”

Canções nascidas de sonhos roubados



Cerca de dois anos depois de “Love Your Dum and Mad”, é com prazer que voltamos a ter novidades da britânica Nadine Saha, uma das vozes mais interessantes que surgiram nos últimos anos no panorama musical.

“Fast Food”, segundo álbum da cantora, cuja peculiar filiação agrega sangue paquistanês e norueguês, veio confirmar a pertinência sonora de toadas negras desta menina com voz de diva, que evoca, com deleite e orgulho, fantasmas de gente ilustre como Siouxsie Sioux, P.J. Harvey, Marianne Faithfull ou Diamanda Galás.

Tantas e tão boas referências, dizemos nós, só podiam resultar em música de eleição, num disco que chega, faz ouvir-se, convence e vence, mas, contrariamente ao que o seu título possa sugerir, não é uma obra de consumo imediato. É sim, acima de tudo, uma coleção de canções que devem ser digeridas (devoradas mesmo) de forma pausada, consciente e lenta, tal como deve ser saboreado um cardápio gourmet.

O repasto abre com a faixa-título e o registo hipnótico da mesma capta a atenção de chofre, como uma espécie de pancada que nos acorda de uma qualquer letargia. Se a própria música é desafiadoramente provocante (a timidez inicial, e curta, dos singelos primeiros acordes das cordas é plenamente engolida pela bateria e baixo) é, sem dúvida, a voz quente, sexy de Saha que faz tudo ficar grandioso, amplificado.
O ambiente é (in)tenso e prolonga-se ao longo das restantes canções do disco.

O segundo tomo de “Fast Food”, “Fool”, é um constante diálogo entre uma guitarra (elétrica) ao desalinho e a secção rítmica bateria/baixo, um verdadeiro matrimónio celeste. A voz continua harmoniosa, deslumbrante, e aconselha-se aos mais sensíveis o devido refreamento auditivo, pois a confusão entre a entoação de Nadine e o canto da mais sedutora sereia é mais do que evidente.

Depois de dois momentos mais agitados, o trio de tendências e arranjos espartanos “Matador”, “Divided” e “Nothing Else to Do” navegam por águas mais calmas, mas não necessariamente menos intensas. Se “Nothing Else to Do” é uma encantada ode ao amor, onde a voz, por vezes em registo duplicado de Saha, deambula por notas soltas de uma orquestra em tons acústicos, “Divided” é sinónimo de um momento épico, claustrofóbico, e revela-se uma das melhores canções de um disco que sabe respeitar música, silêncios e um certo caos (ainda que controlado) sonoro. Já “Matador” é uma canção ao jeito da já referida P.J. Harvey, onde a simplicidade facilmente dá lugar a um caleidoscópio emotivo, onde a guitarra sublinha um céu estrelado avidamente invadido por uma passageira trovoada.

E é mesmo uma tempestade emotiva que se sente ao ouvir “Stealing Cars”, um dos singles já retirados de “Fast Food”. É impossível, um autêntico crime de lesa-majestade, conseguir resistir a esta música, desde já uma das mais brilhantes de 2015. A perfeição, esse objetivo que muitos reclamam, alguns sem razão, conseguir através de uma canção, é algo que Nadine Saha se pode orgulhar com “Stealing Cars”, cerca de quatro minutos que se prolongam ad eternum, pois é instintiva a vontade de ouvir esta canção muitas e muitas vezes. Aqui nada de destaca, está tudo onde deve estar. A voz, todos os instrumentos, a matemática da vida, da música, dos sonhos.

“Washed Up” e “The Gin One” remetem-nos para a (saudosa) estética dos loucos anos 1980. Se em “Washed Up” são os riffs de guitarras que mais se destacam, em “The Gin One” são baixo e bateria que mais abrilhantam a dolência vocal de Saha, sempre doce e hipnótica.

Já no ocaso de “Fast Food”, em “Big Hands”, são as teclas, uns laivos de uma eletrónica tímida e uma marcial bateria que ocupam o palco sonoro. Ainda assim, há também espaço para uma omnipresente e harmoniosa guitarra dedilhada com deleite. O último suspiro do álbum surge com “Living”, uma faixa que encaixaria naturalmente no universo tecnocrático e semi-opressivo de uns Radiohead divorciados de Yorke e em segundas núpcias com Saha. É uma canção quente, dolente q.b., e uma forma brilhante de terminar um disco assombrosamente sedutor.

Contas feitas, se com “Love Your Dum and Mad” ficava no ar a ideia que Nadine Saha era um nome a ter em conta, “Fast Food” veio confirmar e reforçar esse estatuto. A forma equilibrada e sedutora (nunca é demais associar esta palavra ao universo musical de Saha) com que estas dez canções são apresentadas mostra uma intocável confiança de quem sabe o que faz e quer fazer.

Nadine Saha é, artisticamente, um dos nomes mais fortes que o passado recente nos ofereceu, e o sabor da sua arte mostra um saber entre uma clara herança musical e uma vontade de fazer mais, diferente, de forma segura, criativa e, indiscutivelmente, atraente, que cresce num qualquer paraíso onírico onde os sonhos (e pesadelos) convivem, para bem dos nossos pecados.

Alinhamento:

1. Fast Food
2. Fool
3. Matador
4. Divided
5. Nothing Else to Do
6. Stealing Cars
7. Washed Up
8. The Gin One
9. Big Hands
10. Living

Classificação do Palco: 9,5

In Palco Principal

terça-feira, 14 de abril de 2015

“O Irmão Alemão”
de Chico Buarque


Fruto do acaso e no meio de um livro antigo, eis que é descoberto um envelope cujo interior revela «um bilhete batido à máquina em papel almaço amarelado e puído». Assim começa “O Irmão Alemão” (Companhia das Letras, 2015), uma obra reflexiva de Chico Buarque que simboliza o regresso do brasileiro à autoria de um livro depois de “Leite Derramado”, editado em 2009.

Antes de casar com Maria Amélia, mãe de Chico Buarque, Sérgio Buarque de Hollanda, pai de Chico, viveu em Berlim nos fervorosos anos de 1929 e 1930 enquanto correspondente da publicação Jornal, órgão dos Diários Associados, conhecendo uma alemã. Desse relacionamento nasceu um meio-irmão, até há pouco desconhecido do cantor brasileiro.

A criança ficou registada com o nome de Sérgio e, apenas, o apelido de Anne Margerithe Ernst, sua mãe. Depois de regressar ao Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda só voltou a ter notícias do filho em plena Segunda Guerra Mundial, no seguimento de um pedido de confirmação de que o pequeno Sérgio não tinha sangue judeu, por forma a proteger a criança da ameaça nazi.

Esta realidade apenas chegou aos ouvidos do autor de canções como “Construção” ou “Geni e o Zepelin” no final da década de 1960, que depois tentou encontrar o meio-irmão sem nunca o ter conhecido. A angústia por aquele que terá sido o destino de Sérgio Ernst (que construiu carreira como jornalista e cantor na ex-RDA, vindo a falecer em 1981) agudizou-se no âmago de Chico Buarque ao ler “Austerlitz”, de W.G. Sebald e “Paris, a Festa Continuou”, de Alan Riding. No entanto, somente cinco décadas passadas, decidiu transpôr o assunto para o formato de livro, corria o ano de 2013.

Para tal, realizou uma pesquisa exaustiva sobre o passado do seu meio-irmão, para a qual contou com a ajuda dos historiadores brasileiros Sidney Chalbould e João Klug, assim como do museólogo germânico Dieter Lang.

Fruto de uma investigação digna de um verdadeiro romance policial, “O Irmão Alemão”, não sendo um relato histórico, traça – ou tenta – um pouco da vida de Sérgio, o alemão, e reproduz, ficcionalmente, descobertas surpreendentes fazendo uso da realidade como fonte da própria ficção.

As páginas dão eco a uma narrativa que se move dentro de uma tensão constante – e desafiante -, entre o que realmente aconteceu, o que, eventualmente, terá acontecido e o deleite da pura imaginação. Além disso, Chico Buarque parece também tentar arrebatar o respeito pela memória do seu pai, pela sua vida (escondida), e essa dinâmica leva o leitor a viajar entre uma Berlim separada por inúmeras décadas, um Brasil entre a ditadura e a liberdade e vários sublinhados do Holocausto.

Seja qual for a contextualização, “O Irmão Alemão” percorre vários labirintos temporais e pessoais, fantasmas e visões, tendo sempre como objectivo (por vezes, lírico) a busca pela verdade histórica e afectiva que tem, na imensa biblioteca do pai de Chico, a maior das referências, inspirações e turbilhões criativos. Pois, no fundo, os livros são a base de si mesmos.

In deusmelivro

sexta-feira, 10 de abril de 2015

“VERMELHO COMO O SANGUE”
DE SALLA SIMUKKA

Thriller de contornos adolescentes


Chega-nos com o rótulo de livro laureado pelo Prémio Toplius 2013, destinado a distinguir as melhores obras de literatura e juvenil na Finlândia, e os seus direitos de publicação estão vendidos para cerca de meia centena de países.

“Vermelho como o Sangue” (Presença, 2015), autoria da finlandesa Salla Simukka, escritora, crítica e tradutora, é o primeiro volume de uma trilogia – apelidada de Branca de Neve – dedicada a jovens adultos e que segue (ou ambiciona) muito dos ensinamentos do policial nórdico de tendências mais negras.

A protagonista é Lumikki Andersson, uma jovem de 17 anos de perfil duro. A narrativa leva-nos até ao frio das terras do Norte da Europa onde Andersson encontra uma incrível quantidade de notas manchadas de sangue fresco, penduradas a secar no laboratório de fotografia da sua escola.

Solitária por opção, Lumikki, quer esquecer a família e o passado. O seu presente, tudo o que lhe interessa, tem como ponto fulcral uma conceituada escola de arte cujos alunos são conhecidos pela disputa de estatuto social e acontecimentos paralelos aos estudos.

Alheia a tudo isso, Lumikki tenta concentrar-se nos estudos mas o referido acontecimento ensanguentado é o início de uma série de eventos estranhos e em turbilhão que revelam polícias ávidos de corrupção e um traficante que é sinónimo de uma constante e violenta ameaça.

Num ápice, e sem forças para se defender, Lumikki e três colegas, perdem o controlo e deixam-se afundar num mar negro que os arrasta, impiedosamente, para um recanto escuro manchado de sangue. O relógio não para e cada minuto vale ouro. A única solução é lutar contra os seus maiores pesadelos e tentar a salvação.

Com um perfil assumidamente juvenil, “Vermelho como o Sangue” é um thriller interessante, contado na terceira pessoa, mas peca por, aqui e ali, ser demasiado pueril, ingénuo. A clara aproximação de Simukka ao universo de Stieg Larsson leva, por exemplo, a autora a caracterizar a personagem principal como «a filha secreta de Hercule Poirot e Lisbeth Salander».

Ainda que o perfil de Andersson tenha sido bem trabalhado, nota-se um claro desequilibro face aos personagens secundários, o que acaba por tornar este livro numa obra menos fluida cuja trama tende a ser previsível.

Apesar disso, esperamos, com alguma ansiedade, que os restantes dois volumes da trilogia possam, de alguma forma, assumirem-se mais coerentes e interessantes, trazendo os ingredientes que faltaram em “Vermelho como o Sangue”, fatores esses que podem estar associados a alguma inexperiência da autora para trabalhar um conjunto narrativo inicialmente ambicioso.

In Rua de Baixo 

“A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te”
de Rosa Montero


Sob o epíteto da (quase) unanimidade, “A Louca da Casa” é o livro mais acutilante da madrilena Rosa Montero e uma referência da moderna literatura latina. Essa verdadeira ode à literatura – e aos escritores – foi responsável pelo empolar dos seguidores de Montero, leitores ávidos de bons livros que, há muito, queriam sentir, de novo, o génio literário da autora de obras como “Lágrimas de Chuva” ou “Instruções para Salvar o Mundo”.

E eis que surge “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” (Porto Editora, 2015), um (extraordinário) livro que nasce no seguimento de um imenso turbilhão emocional para Rosa Montero que perdeu o marido e deixou envolver-se nas memórias registadas por Marie Curie no seu diário.

Identificando pontos consonantes entre o pensamento de Curie e os seus próprios, Montero brota uma narrativa cujo universo se situa entre a memória pessoal e as recordações colectivas, através de uma peculiar análise contemporânea daquilo que se entende por dor, perda e consequente (tentativa de) superação.

Ao folhear este livro, o leitor depara-se com uma larga temática: o sexo, a vida, a morte, a ciência, o desconhecimento ou a sapiência, entre outros temas, fundem-se, unem-se, conjugam-se de forma natural e plena sob um atento olhar literário.

Essa visão globalizante faz com que leitor, obra e autora se sintam unos em “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te”, nem que para isso seja necessário e presente ter a noção do luto, do fim. Mais do que um romance, estamos perante uma escrita (auto)biográfica cuja maior inspiração é a já referida Prémio Nobel da Física e da Química, que traça uma tangente cronológica entre dores, sentimentos e partilhas.

No cerne da questão está a fragilidade do ser humano, as suas fraquezas, os seus momentos menos bons. Estes são alguns dos mais utilizados ingredientes por Rosa Montero em “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” que reflecte, directamente ou não, um paralelismo entre vidas – entre Montero e Curie -, sem nunca descurar uma certa “reverência” por parte da primeira, uma admiração por uma personagem não consensual como o foi a investigadora e cientista polaca.

Aconselhável ao ser e sujeito humano, o mais recente livro de Rosa Montero é um potente tour de force, um testemunho em busca da redenção, uma revelação cruel daquilo que a realidade alheia, e própria, pode ser. O outro lado de Curie, o seu universo pessoal, é aqui revelado. O sucesso enquanto mulher da Ciência “escondia” um desequilíbrio emocional adensado no dia em que o seu marido não mais regressaria, da ânsia provocada pelo desespero de não mais (re)ver quem se ama.

Uma das particularidades mais “palpáveis” da escrita de Rosa Montero é a sua honestidade, algo que transmite boas vibrações, não se estranhando que “A Ridícula Ideia de Não Voltar a Ver-te” seja uma verdadeira seta apontada ao coração, sem género ou classificação premeditada, altamente recomendado (e emotivo) a todas as almas, sejam elas amantes ou não da prosa de Montero.

In deusmelivro

quinta-feira, 9 de abril de 2015

“Três Demónios”
de John Connolly”


Uma improvável série de suicídios levados a cabo por antigos soldados que combateram no Iraque, ocorridos numa zona remota do Maine – na fronteira entre os Estados Unidos da América e o Canadá -, chegam aos ouvidos de Charlie Parker, antigo detective nova-iorquino, hoje investigador privado.

Está assim lançado o mote para “Os Três Demónios” (Porto Editora, 2015), a décima aventura de Parker que nos traz de volta a acutilante escrita do irlandês John Connolly que, mais uma vez, combina ingredientes típicos de um (excelente) policial com elevadas doses de tendências sobrenaturais que se entrelaçam com alguns tiques típicos do terror.

No início tudo parece simples. Tendo acabado de reaver a sua licença de detective privado, Charlie Parker é procurado por Bennett Patchett, um conhecido patrão local que desconfia de que uma das suas empregadas – para Patchett, uma extensão da sua família – está a ser alvo de maus tratos por parte do seu mais recente namorado, o enigmático Joel Tobias. Fruto da investigação, Parker depressa identifica Tobias como um antigo veterano do Iraque que agora faz a vida ao volante de luxuoso camião e leva uma vida folgada e financeiramente despreocupada, situação que poderá estar directamente associada à prática de contrabando. Mas Parker descobre algo mais sobre Tobias: muitos dos seus camaradas de armas suicidaram-se e têm uma forte ligação ao camionista, entre eles Damien, filho de Bennett Patchett.

Aquilo que, no começo, parecia tratar-se de uma investigação normal, transforma-se num pesadelo bizantino para Charlie Parker, à medida que tenta desvendar os negócios de uma rede internacional de tráfico de artefactos roubados. Entre esses objectos está um em particular, uma espécie de caixa de Pandora, que encerra um trio de antigos demónios que podem, de alguma forma, estar relacionados com o suicídio dos envolvidos. O fim do mundo, tal como o conhecemos, estará próximo?

O cenário torna-se ainda mais negro quando surge em cena Herod, um velho macabro e implacável que, apesar de doente, obriga Parker a ter de fazer algo que nunca pensou: forjar uma aliança com o homem que mais teme no planeta, o assassino conhecido como o “Coleccionador”.

Mais do que a fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, “Três Demónios” quebra a linha que divide o misticismo e as motivações de um assassino, e só alguém habituado a lidar com os meandros do obscuro poderá resolver este terrível enigma.

Tal como em outras obras de Connolly estamos perante uma narrativa complexa, que “mistura” capítulos contados na primeira ou terceira pessoas, aparentemente desligados entre si e até algo descabidos da trama global. Ainda assim, o escritor vencedor de troféus literários como o Barry Award e o US Shamus Award (sendo o primeiro autor não americano a receber esta distinção) consegue unir pontos aparentemente distantes e dissonantes e transformar o décimo livro de Charlie Parker num bom companheiro de leitura.

In deusmelivro

terça-feira, 7 de abril de 2015

Courtney Barnett
“Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit”

Inspiração quotidiana

 
Confissão: ainda que Courtney Barnett tenha editado três EP's antes de se aventurar no universo dos discos de maior “ambição”, o momento que mais despertou a atenção para o talento da jovem australiana foi a versão de “Cannonball”, das Breeders, a convite da publicação online norte-americana "A.V. Club".

Tal como as cerejas, e as conversas, as canções levam a outras canções. “Cannonball” serviu de ponte para “Avant Gardener”, canção retirada do segundo EP de Barnett, “How to Carve a Carrot into a Rose”, nomeada como uma das melhores faixas de 2013 pela (in)suspeita "Pitchfork", e, de descoberta em descoberta, chegámos a “Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit”, álbum de 2015.

Desde as primeiras audições, é impossível não sentir um cheirinho ao indie rock, versão garagem, dos anos 1990, ao mesmo tempo que se cruzam referências mais clássicas e espartanas da música dos últimos 40 anos. Pavement e Nirvana mesclam-se com momentos perto da sonoridade de Lou Reed, The Velvet Underground ou dos patrícios de Barnett, The Drones. Tudo em nome da santa trindade do rock: guitarra, baixo e bateria.

Sejam quais forem as inspirações, “Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit” cativa logo à primeira. Como que uma ode à normal vivência quotidiana, Coutney Barnett “exibe” um autêntico toque de Midas, uma fórmula intrigante e inteligente de captar a essência da “banalidade” e transformá-la em momentos de inspirado lirismo, sob a forma de uma canção.

A acutilância da escrita de Barnett reside, essencialmente, num estilo despretensioso, numa espécie de poesia tipo “polaroid”. Um momento, qualquer, pode tornar-se em algo “especial” em “Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit”. A forma como Courtney conta uma história e a transforma em puro entretenimento musical revela um talento único, íntegro, honesto. E é, essencialmente, essa honestidade que torna tão especial este disco.

Mais do que procurar eventos distantes do ouvinte, as 11 faixas do álbum espelham a beleza da simplicidade mundana, desenhando uma ligação entre quem toca e quem é tocado por vivências cuja “banalidade” dá lugar a uma serena beleza. Exemplo disso é “Aqua Profunda!”, exercício musical que descreve alguém que nada numa piscina perto de Courtney. Apenas isso. E basta. Enquanto a guitarra (perto de uma sonoridade de uns Elastica) toca, Courtney canta: “I saw you in the lane next to me / You were doing freestyle, then you switched it around / To a little bit of backstroke / I couldn’t see underneath / Your swimming cap, but it appeared that you had / Dark colored hair, maybe it was blonde for all I know / I had goggles on / They were getting foggy / I much prefer swimming to jogging”. Simples, não?

Esta aproximação minimalista permite que Barnett brilhe, sem alarido, de forma competente, e canções como as mais tranquilas “Depreston”, “Kim's Caravan” e “Boxing Days Blues” mostram o que de melhor se pode esperar de Barnett. Com isso não queremos dizer que é a dolência que melhor define a música de “Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit”.

Logo a abrir, “Elevator Operator” e, principalmente, “Pedestrian At Best”, talvez o melhor momento do disco, mostram a veia mais niilista e punk (termos longe do pleonasmo) da menina australiana que canta: “Put me on a pedestal and I’ll only disappoint you / Tell me I’m exceptional I promise to exploit you / Give me all your money and I’ll make some origami, honey / I think you’re a joke but I don’t find you very funny”.

“An Illustration of Loneliness (Sleepless in New York)”, mais preguiçosa, e “Dead Fox”, com um semblante mais sónico, são, por exemplo, como duas faces de uma mesma moeda - composições que se unem graças à coerência de uma sonoridade que mistura a harmonia simples de voz, guitarra, baixo e bateria, como um cheirinho aos dias mais quentes de um verão anunciado, ao final dos mesmos, quando o sol se põe, “alaranjado”, e a brisa marítima anuncia que a jornada de praia terminou. Essa languidez atinge o seu auge com “Small Poppies”, um tour de force desarmante, de sete minutos, que apaixona os mais duros.

No fundo, cada faixa de “Sometimes I sit and Think, and Sometimes I Just Sit” é uma pérola por descobrir, uma combinação de traços punk com momentos mais intimistas (bonitos, muito). Barnett é uma espécie de maestrina indie rocker, a dona de uma simples e mágica batuta que funde a normalidade da vida com minutos de pura distração e reflexão despretensiosa.

É e mesmo essa frescura, esse assumido novo olhar, que faz este disco brilhar, como o sol de verão, uma brisa marítima fresca que dissipa um calor exagerado. As histórias são simples e “conhecidas”, a música escorreita, no tempo e proporções certas.

Como aquelas paixões certeiras, ao primeiro olhar, o disco de estreia de Courtney Barnett é brilhante, cativante, memorável. Estamos, assim, prontos para o verão.

Alinhamento:
01."Elevator Operator"
02. "Pedestrian at Best"
03. "An Illustration of Loneliness (Sleepless in New York)"
04. "Small Poppies"
05. "Depreston"
06. "Aqua Profunda!"
07. "Dead Fox"
08. "Nobody Really Cares If You Don't Go to the Party"
09. "Debbie Downer"
10. "Kim's Caravan"
11. "Boxing Day Blues"

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal