segunda-feira, 30 de setembro de 2013

MGMT – “MGMT”

Odisseia cósmica


 
Depois de um disco de estreia se transformar em sucesso - de forma inesperada, ou não -, existe sempre uma barreira emocional quando se trabalha no seu sucessor. A continuidade e a rutura podem ser equacionadas. A fórmula pode repetir-se, as ideias podem seguir novos caminhos. Nada pode ser dado por adquirido e a magia pop pode perder-se ou transformar-se. A arte, enquanto definição genérica, pode metamorfosear-se de forma despretensiosa, mas tem de conter um obrigatório traço genuíno.

No caso dos norte-americanos MGMT, liderados por Benjamim Goldwasser e Andrew VanWyngarden, o maior desafio enquanto disco chega ao terceiro tomo. Depois de “Oracular Spectacular”, lançado em 2007, ter conseguido a incrível tarefa de vender mais de um milhão de cópias em todo o mundo, três anos mais tarde, “Congratulations” conseguiu uma eficiente ponte entre os ambientes mais psicadélicos e envoltos de um indie de cariz eletrónico para um som mais rock, mais progressivo e com um ou outro apontamento surf.

Mantendo o espaço cronológico entre edições, eis que 2013 traz o homónimo “MGMT” como prova de fogo. Para esta nova aventura, os MGMT voltam a convidar Dave Fridmann para a produção e o homem que já esteve por detrás do som de bandas como os Flaming Lips ou Mercury Rev deixa, indubitavelmente, a sua marca ao longo da dezena de canções que compõem o álbum. O resultado é um disco saturado de camadas psicadélicas, onde a eletrónica e as guitarras fecham um círculo denso e pautado pela tensão. De forma corajosa, os MGMT afastam-se do polimento dos tempos de “Time do Pretend”, “Kids” ou “It’s Working” e abraçam o desejo de fazer um disco de si para si, onde o processo de escrita das canções está envolto de um novo método, ainda que a abordagem e resultado final não revelem um som “novo”, mas sim a utilização de novas diretrizes melódicas.

Logo a abrir, “Alien Days” remete para ambientes pop intimamente associados aos desvarios de Wayne Coyne e comparsas, cujas (des)contruções sónicas são aqui complementadas por ornamentações eletrónicas que procuram abrigo num coro de vozes, em si mesmas, alienadas e amparadas por guitarras à beira do sacrilégio das pedaleiras. Em contrapartida, canções como “Cool Song nº2” afastam, momentaneamente, o teor mais apocalíptico e as pinceladas de piano dão um teor mais terreno às novas composições dos MGMT.

Existem mesmo vários momentos no disco que combinam de forma irrepreensível os lados orgânico e maquinal e “Mystery Disease” é um desses exemplos. Bateria e teclas combinam com eletrónica enquanto a voz, humana, faz a simbiose dos muitos efeitos paralelos. Pisamos territórios surreais mas, por vezes, a simplicidade de músicas como “Introspection” afastam o dogma do experimentalismo e, acreditem, é possível trautear algumas das mais recentes composições dos MGMT.

“Your Life is a Lie” é outro exercício pautado por uma simplicidade absoluta e descaradamente pop. O sons repetem-se e estamos perante a canção mais “orelhuda” de “MGMT”, um álbum que se pauta pela (in)coerência melódica. Num outro patamar, “A Good Sadness” lembra, ao longe, o som desconcertante e emotivo de uns “My Bloody Valentine” de tendências cósmicas.

Já “Astro-Nancy” refugia-se numa timidez translúcida composta por várias peças dignas de um puzzle, sinónimo do somatório de texturas díspares. A voz assombra, as batidas maquinais sustentam a melodia e ganha-se uma frieza, um distanciamento que se acentua na faixa seguinte, “I Love You, Death”, talvez a composição mais niilista deste disco. São estes momentos que mais reclamam a presença da produção esquizofrénica em movimento perpétuo de Fridmann, que diz presente através de uma engenharia lacónica.

As duas últimas canções de “MGMT” são “Plenty of Girls in the Sea” e “An Orphan of Fortune” e, se no primeiro caso, estamos perante (mais) um devaneio pop onde o surreal assenta em alicerces ácidos, a canção que encerra o disco está envolta de um conteúdo mais complexo, e sinistro, que se assume como um qualquer clímax para o objeto particular que é o terceiro disco dos MGMT, uma espécie de óvni sonoro que sobrevoa um espaço vizinho.

Ao terceiro disco, Goldwasser e VanWynGarden decidem fazer o seu “Interstellar Overdrive” e assumem ainda mais a veia psicadélica que já tinham demonstrado (amiúde) nos primeiros registos enquanto MGMT. Não sendo um disco “fácil” e imediato, “MGMT” mostra-se seguro e promete crescer a cada audição. Existem discos que só se revelam com o tempo e que exigem mais dedicação. Este é um deles.

Alinhamento:

01.Alien Days
02.Cool Song nº2
03.Mystery Disease
04.Introspection
05.Your Life is a Lie
06.A Good Sadness
07.Astro-Mancy
08.I Love You To, Death
09.Plenty of Girls in the Sea
10.Na Orphan of Fortune

Classificação do Palco: 7/10

In Palco Principal

Linda Martini – “Turbo Lento”

Com o sangue a ferver!



Uma das maiores causas de insucesso para muitas e promissoras bandas é a má gestão, forma e capacidade de crescimento. Um passo em falso, um deslumbramento, um erro de trajetória e aquilo que podia ser uma carreira passa a ser um registo marcado numa qualquer data de calendário.

Quando se formaram em 2003, os alfacinhas Linda Martini tinham cinco elementos e uma vontade enorme de fazer música, de celebrar a vida. Com uma invulgar mestria, dedicação e talento, dez anos depois e com algumas peripécias pelo caminho, o quinteto passou a quarteto e André Henriques, Cláudia Guerreiro, Pedro Geraldes e Hélio Morais chegam ao terceiro álbum de originais via Universal.

Se, em 2006, o EP “Amor Combate” poderia parecer apenas uma estreia ambiciosa, hoje, “Turbo Lento” é a esperada continuação e confirmação de uma carreira pautada pela qualidade, pela sapiência de crescer com conta, peso, medida e melodia certa.

O som dos Linda Martini está mais adulto, mais rock, mais bonito. Os gritos de revolta soam a esperança, as guitarras desalinhadas dialogam com a cumplicidade dos amantes, o baixo sublinha a intensidade da música e a bateria descarrega a garra própria de quem ama o que faz. Ouvir os Linda Martini é sentir a fúria de viver, o sangue a correr nas veias, a vontade de chegar.

Depois do mais direto “Casa Ocupada” e ainda com os ecos poéticos de “Olhos de Mongol” na alma, os Linda Martini chegam a “Turbo Lento” através de um misto de continuidade e rutura, com uma assinalável noção de transição assente na energia punk-rock e na tensão de momentos mais calmos cozinhados como uma mestria sublime.

Se para primeiro single a banda escolheu “Ratos”, uma composição que vem na continuidade sonora de “Casa Ocupada” e que agarra de imediato o ouvinte, são temas como “Juaréz” ou “Pirâmica” que mais sintetizam o atual som dos Linda Martini, um misto de fúria e paixão únicos, uma delícia sónica ao serviço de uma sagaz militância musical.

O disco abre com “Ninguém Tropeça nos Dias”, um instrumental em crescendo que serve como entrada para o resto de uma refeição deliciosamente preparada. O registo tranquilo das cordas anunciam a urgência que se aproxima enquanto a batida marcial traça a ansiedade do som que quer explodir, que se contém. É essa energia acumulada que se liberta logo de seguida com “Juárez”, um exercício punk gritado que liberta o stress em registo montanha-russa, onde os momentos mais calmos ajudam a recarregar baterias. Esta é um pouco da soma das partes que compõem o ADN do Linda Martini, que numa equação matemática poderiam ser definidos como parcelas de doses idênticas de razão e paixão.

“Panteão”, uma das primeiras músicas a ser trabalhada em “Turbo Lento”, continua a plenitude sonora do terceiro álbum de originais da banda de “Belarmino” e assenta num ritmo hipnótico contextualizado com uma das mais sentidas interpretações vocais de André Henriques, ele que continua como o maior responsável pela poesia das canções da banda, algo que cresceu neste disco, pois os Linda Martini estão mais “cantáveis”.

Logo a seguir, “Pirâmica” revela-se como um dos momentos mais intensos de “Turbo Lento” e uma das faixas mais bonitas do disco. Vertigem sónica pura que se serve de todos os pormenores para se fazer mais completa. A voz dá dramatismo enquanto a base sonora nos leva para dentro de uma espiral crescente que vai buscar ao coro gritado do seu final um expoente que extravasa poesia por todos os poros. Sentimos que os 4 minutos e 29 segundos desta faixa poderiam ser 10, 20 minutos. Queremos mais, queremos uma sereia, não de cem metros, mas vestida de quilómetros.

O swing continua com o “desabamento” lírico de “Sapatos Bravos”, uma canção que faz suspirar, correr, parar, saltar, que agita. E é naturalmente ofegantes que chegamos a “Febril (Tanto Mar)”, um manifesto desconcertante que o sample de “Tanto Mar”, de Chico Buarque, ajuda a tornar mais intenso. Fala-se da ressaca de movimentos e intenções. Fala-se da vida, da sociedade, da política. Canta-se, sente-se, existe-se.

A composição mais longa deste disco, “Tremor Essencial”, aproxima-se de um sentimento jam-session que teima em fixar-se nas paredes dos ouvidos, que dança e faz dançar, que procura saídas. Fala-se da difícil arte de crescer, de procurar a diferença. Curiosamente, ou talvez não, reúnem-se os pressupostos que alicerçaram a evolução da música dos próprios Linda Martini, uma banda confiante e confiável, honesta e consciente. As rugas, essas, a existirem, serão de expressão, naturalmente.

Já na parte final do disco chegamos a “Ratos”, tema que a banda já vem tocando nos concertos há meses e cuja interpretação multifacetada leva-nos a “erróneos” mas entendíveis conceitos políticos, ainda que a sua génese esteja diretamente relacionada com dilemas interiores de uma alma assolada pela possível perda de independência. Contextualizações várias mas um sentido único de fúria, força, perfil rock assinalável e bastante “radio friendly”. “Aparato” volta a cerrar dentes e a incitar a combustão de uma turbulência inusitada, o mesmo acontecendo com “Tamborina Fera”, que apresenta um registo febril e rápido. A festa continua bonita e repleta de energia.

“Turbo Lento” encerra com a suave e lindíssima “Volta”, composição escolhida como o segundo single do álbum e que mostra uma faceta mais tranquila de uma banda que se assume como um clã revestido de várias camadas emotivas. Os últimos acordes desta faixa remetem para os segundos iniciais da canção de abertura e fazem a ponte entre o fim e o começo, entre duas pontas de um mesmo laço. Os Linda Martini são donos de um som intrínseco que tem um começo, um fim, um meio, meios de chegar até nós, dá a volta, leva-nos de cá para lá.

“Turbo Lento” é uma viagem, um carrocel de sentimentos, não importa a intensidade das canções ou o nível dos decibéis das mesmas. Os Linda Martini não são formados por partes individuais, mas sim como um todo, uma coerência que permite momentos mais calmos e outros para violentos. Os Linda Martini são a continuidade e a rutura, são o tal sangue a ferver e a acalmia, são o grito e o silêncio. São o Fado que quer ser samba, são a chuva e o sol. Mas são, acima de tudo, uma das mais excitantes bandas que Portugal já conheceu e, esperemos nós, assim continuem.

Alinhamento:

1.Ninguém Tropeça nos dias
2.Juárez
3.Panteão
4.Pirâmica
5.Sapatos Bravos
6.Febril
7.Tremor Essencial
8.Ratos
9.Aparato
10.Tamborina Fera
11.Volta

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Linda Martini em entrevista

"Turbo Lento não é um corte propositado com o passado recente" 

A propósito do lançamento de “Turbo Lento”, terceiro álbum da banda, o Palco Principal esteve à conversa com três quartos dos Linda Martini. Assim, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Pedro Geraldes falaram, com orgulho, da génese do álbum, da nova editora, da atual conjuntura social e de felicidade. A conversa, muito agradável - diga-se -, teve como palco a Casa Independente, no Intendente.



Palco Principal: “Turbo Lento” é um disco que mostra as duas almas dos Linda Martini. Por um lado, temos músicas enérgicas, de raiz punk; por outro, melodias mais planantes. Foi vosso objetivo fazer um disco que, de alguma forma, servisse de “rutura” relativamente à filosofia de “Casa Ocupada”? Estamos perante um trabalho menos “óbvio”?

Hélio Morais: Este disco difere do “Olhos de Mongol” e do “Casa Ocupada”, pois, se no primeiro caso, tínhamos músicas mais encorpadas e tranquilas, com o antecessor de “Turbo Lento” encurtámos o tempo das canções e demos-lhe uma alma mais pop. “Turbo Lento” mostra esses dois lados, mas não acho que tal seja um sinónimo de rutura.

Pedro Geraldes: Cada um tem as suas expetativas. Não continuamos na onda do “Casa Ocupada”, mas concordo com o Hélio quando ele diz que “Turbo Lento” não é um corte propositado com o passado recente.

PP: Alguma vez pensaramem fazer um disco que reunisse características de “Olhos de Mongol” e “Casa Ocupada”?

Cláudia Guerreiro: Se nós pensássemos nesses termos, talvez todo este processo tivesse sido mais fácil, porque tínhamos objetivos. A única coisa que queríamos era fazer um disco com dez músicas de que nós gostássemos. Se calhar falta-nos ser mais organizados, mas as coisas acabam sempre por encontrar o rumo certo, o que torna a nossa tarefa ainda mais bonita.

Pedro Geraldes: À medida que vais fazendo uma, duas ou três músicas também vais pensando que já tens uma base de trabalho e vais construindo o álbum a partir das composições que vão surgindo. Se, por exemplo, estamos a trabalhar numa música mais contemplativa, somos levados a fazer outra mais direta…
Cláudia Guerreiro: Por vezes, tentamos fazer algo que seja o oposto do que acabámos de fazer, para variar, para fazermos coisas diferentes, para nos divertirmos.

PP: Quais foram as primeiras músicas que começaram a trabalhar no processo de conceção de “Turbo Lento”?

Cláudia Guerreiro: “Panteão” e “Sapatos Bravos”. Ainda assim, no caso de “Sapatos Bravos” só terminámos a letra há pouco tempo, mas o teor musical foi definido muito cedo.

Pedro Geraldes: Sim, em termos de estrutura, “Sapatos Bravos” foi definitivamente a primeira música deste disco a estar pronta. A “Juárez” também foi das primeiras faixas que trabalhámos, mas ficamos sensivelmente a meio numa primeira abordagem, pois não estávamos a conseguir encaixar o riff correto. Por vezes acontece trabalharmos numa determinada melodia e só passado algum tempo voltarmos à mesma, e, como alterámos um ou outro pormenor, temos uma música nova.

PP: Estamos perante o vosso primeiro disco editado por uma major, neste caso a Universal. Foi algo que tinham pensado, surgiu por “acaso”…

Hélio Morais: Foi algo que aconteceu. Já tínhamos quase o disco todo preparado e estávamos em contactos com outra editora, mas a Universal surgiu e, antes do disco estar totalmente pronto, acabámos por chegar a acordo. Isto numa fase em que os seus responsáveis nem tinham ouvido o álbum…

PP: Notam algumas diferenças no que respeita a própria produção do disco e no que toca à promoção do mesmo?

Pedro Geraldes: O disco em si foi produzido por nós, não houve qualquer interferência, mas em termos de promoção é claro que notamos diferenças. Há uma maior organização.

Cláudia Guerreiro: A Universal tem uma equipa bastante organizada que faz tudo com tempo e com a antecedência certa. Por exemplo, não vai haver atrasos na colocação do disco nas lojas pois está toda a gente focada nesse sentido. Por mais que queiras fazer esse tipo de coisas com uma estrutura muito pequena, com uma ou duas pessoas a trabalhar, as coisas vão acabar por não resultar tão bem ou chegam mesmo a não acontecer. Dou-te até o exemplo do agendamento de entrevistas. É mais fácil agora, está tudo organizadinho. Dantes chegávamos a ter uma entrevista às duas da tarde e depois a próxima era às oito da noite. Perdíamos tempo para fazer outras coisas, entendes? Não conseguíamos rentabilizar o tempo.

 PP: Este passo é também sinónimo do vosso crescimento enquanto banda. Tal como cantam em “Tremor Essencial”: “Não queiras ser como toda a gente, não queiras crescer de repente"...

Pedro Geraldes: (risos) Sim, nós temos seguido esse caminho, temos crescido devagar, passo a passo. Editámos o primeiro EP às nossas custas, em casa, e agora estamos numa major…

Cláudia Guerreiro: Esse é o processo normal de toda a gente.

Hélio Morais: Tirando o início, por volta de 2005/2006, quando conseguimos ganhar algum espaço muito rapidamente, tudo tem sido muito calmo e gradual e isso dá-nos tranquilidade. Tentamos nunca estar super excitados com o que está a acontecer. Ficamos contentes se as coisas correm bem, óbvio, mas aceitamos as coisas no tempo delas.

PP: A ideia de colocarem três teasers no Youtube foi vossa ou da editora?

Cláudia Guerreiro: Um Teaser é uma das coisas que pensas quando queres divulgar algo e não queres que o interesse esmoreça. Nós temos outras bandas, outros projetos, e contámos com um amigo (Ricardo Tabosa) para fazer esses teasers. Nós gostamos daquilo que ele faz e pensamos logo nisso. Agora, a coisa foi desenvolvida em conjunto com a Universal e tem servido para despertar curiosidade, aproximar a banda do público e vice-versa.

PP: Acreditam que uma boa promoção está diretamente ligada ao sucesso de um disco?

Hélio Morais: Temos sempre de utilizar a promoção. Mas podes promover muito bem uma coisa e ter muito impacto num determinado período e depois não sobrevivermos e permanecermos…

Cláudia Guerreiro: Acho que, se pensarmos ao contrário, as coisas ficam mais claras. Um bom disco sem promoção consegue alguma visibilidade? Existem muitos bons discos que ninguém ouve falar deles porque não existe trabalho de promoção.

PP: Escolheram “Ratos” como o primeiro single do álbum. Esta é uma das vossas faixas mais políticas de sempre…

Hélio Morais: Convém vincar que a responsabilidade da escolha foi inteiramente nossa. A editora deu-nos liberdade completa para o fazermos e o facto de ser uma major nada alterou o nosso poder de decisão. É bom desmistificar estas coisas. As pessoas estão ali para te ajudar, para te apoiar.

Cláudia Guerreiro: Eu não concordo com o fato de “Ratos” ter conotações políticas e, de facto, o André (Henriques) não a escreveu com esse sentido, mas entendo que seja essa uma das leituras possíveis.

Pedro Geraldes: Eu até concordo que “Ratos” tenha essa conotação mas, na verdade, é uma visão mais interior, mais pessoal, mas acabou por ter um impacto mais politizado, mais social.



PP: Fazendo uma brincadeira com a letra do vosso primeiro single, acham que temos tido, enquanto portugueses, a habilidade de transformar a “merda em ouro” ou vamos acabar por ser devorados pelos ratos?

Hélio Morais: Nós (portugueses) temos a capacidade de conseguir fazer “milagres”. É uma das nossas características enquanto povo. Repara, a nível administrativo temos transformado “ouro em merda”, mas a nível criativo e individual temos a capacidade de conseguir criar muito com o pouco que temos e transformamos “merda em ouro”…

Cláudia Guerreiro: Sinto, por exemplo, uma grande diferença entre Portugal e Espanha, que é a experiência que tenho. Fiz Erasmus em Barcelona e, comparativamente, não senti uma grande diferença em termos de resultados, apesar de estarmos a falar de realidades distintas. Em Belas Artes os espanhóis tinham muitos meios, mas em termos de resultados finais não são superiores a nós. Nós temos a capacidade de fazer coisas extraordinárias com poucos meios, por isso, sim, temos a capacidade de transformar “merda em ouro”. No que toca aos ratos nos irem devorar, não é o que já acontece?

PP: Em “Turbo Lento” voltam a utilizar um sample (“Partir para Ficar", de “Olhos de Mongol”, tinha a voz de José Mário Branco), com “Febril” a trazer consigo um pouco de “Tanto Mar”, de Chico Buarque. Como surgiu essa ideia?

Pedro Geraldes: O André baseou-se na letra do “Tanto Mar” para o “Febril” e sentiu o crescimento dos versos da canção. Se, quando foi editada, a canção de Buarque tinha um objetivo mais socialmente interventivo, com o passar dos anos a letra passou a ter um contexto mais pessoal, interior. No fundo, se quiseres, funciona de forma inversa ao que se passa com “Ratos”.

PP: No fundo, estas músicas tocam, de certa forma, no lado mais social. Acreditam que a música pode simbolizar a liberdade (de pensamento)? Poderá o rock ajudar a “salvar o mundo”?

Cláudia Guerreiro: Não, de todo. Ainda assim, concordo que, se todos pudessem fazer o que gostam e viver disso, aí sim, o mundo seria mais feliz.

Pedro Geraldes: A música pode ajudar as pessoas, pois tem um forte impacto sobre elas, mas duvido que seja suficiente para salvar o quer que seja.

Hélio Morais: O que pode salvar o mundo são as pessoas, embora a música possa servir de inspiração. O “We Are The World”, por exemplo, salvou muita gente em África…

PP: Então vocês, enquanto músicos, fazem aquilo que gostam e são pessoas felizes…

Cláudia Guerreiro: Completamente, caso contrário não o faríamos (risos).

Hélio Morais: Ainda há poucos dias falávamos disso. Estávamos cansados, pois tínhamos passado o dia inteiro em entrevistas, mas depois pensámos: “Mas é isto mesmo que queremos fazer, não é estar a trabalhar num banco” (risos). Ficamos cansados, mas felizes, entendes? Se, por exemplo, ficas cansado devido a um trabalho que não gostas, esse sentimento pode transformar-se em depressão.

Pedro Geraldes: É fantástico chegares ao final de um disco e ficares com a sensação que fizeste algo bom. Trabalhar num conceito que gostas e acreditas. Não interessa se passas muito tempo a ensaiar ou em estúdio, é um investimento pessoal e altamente gratificante, ainda que dê bastante trabalho.

PP: E estão satisfeitos com “Turbo Lento”?

Cláudia Guerreiro: Sim, sem dúvida!

Pedro Geraldes: Existe sempre um pormenor ou outro que faria diferente, mas estamos bastante orgulhosos deste disco.

In Palco Principal

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Rodrigo Leão
“O Mordomo”

Linguagem universal



A música é uma das formas de expressão que mais remete para o imaginário. Associar sons a imagens, músicas a acontecimentos, resulta da expressividade única que a conjunção de acordes permite através de uma matemática melodiosa.

Dono de uma carreira ímpar por terras nacionais, Rodrigo Leão é um dos compositores mais prolíferos da sua geração e a sua ligação ao universo cinematográfico já o levou a participar em algumas bandas sonoras como por exemplo em “Portugal, um Retrato Social”, “Lisbon Story” de Wim Wenders e mais recentemente contribuiu com algumas músicas para a produção luso-francesa “A Gaiola Dourada”.

Desta vez é Hollywood que chama pela criatividade e talento de Rodrigo Leão e pela primeira vez o antigo músico da Madredeus vê a sua música na Meca do cinema mundial. Falamos, obviamente, da banda sonora de “O Mordomo” de Lee Daniels, um filme que retrata a vida de um mordomo da Casa Branca e torna a colocar o dedo numa das maiores feridas sociais dos Estados Unidos: o racismo.

Assim, a banda-sonora de “O Mordomo” resulta numa coleção de mais de duas dezenas de (curtas) composições que no seu conjunto se revelam com unidade sonora própria do trabalho que Leão tem vindo a desenvolver nos últimos anos e que aposta numa carga emotiva clássica com destaque para os teclados. A marca de Rodrigo Leão está de tal forma vincada na sua música que mesmo que não saibamos de antemão quem é o compositor bastam breves notas para saber de quem se trata.

A solenidade de temas como «1926», «Time to Leave» ou «Kids Hosed Down» contrasta com um maior ritmo e intensidade de temas como «Woolworth» que marcam posição neste disco devido ao seu diferente andamento. Noutros casos como «Learning the Ropes» o crescendo da intensidade musical revela o drama que a película exibe e, de olhos fechados, sentimos mudanças de cenário e tensões que crescem ou atenuam. A música de Rodrigo Leão é um verdadeiro barómetro dos sentidos.

Tal como a maioria das bandas sonoras é o seu todo que se destaca e a uniformidade dos temas apenas se consegue num determinado contexto. A música é intuitiva e o dramatismo das cenas de “O Mordomo” assentam que nem uma luva na suavidade do ADN das composições de Rodrigo Leão que gravou muitos dos seus temas em Londres na companhia de uma orquestra de 60 músicos.

O único senão deste (grande) disco é o facto de a sua música não poder concorrer à estatueta dourada de Hollywood na categoria de Melhor Banda Sonora Original pois o tema principal deste filme é uma variação de «Último Adeus», faixa que integrava o alinhamento de “Cinema”, álbum de 2004.

Ainda assim, existem outros prémios que Rodrigo Leão vai com certeza ganhar com mais um excelente trabalho sendo que os verdadeiros vencedores são, sem dúvida, os ouvidos de quem se deliciar com este álbum.

In Rua de Baixo

"Ouro"
de Thomas Arslan

Os caminhos tortuosos do oeste selvagem



Um rio, um barco, quatro pessoas. Numa luta contra a suave corrente os “passageiros” sentem a natureza que pode ser sinónimo de busca, incerteza e, por vezes fortuna. Remexendo e coando as águas estes garimpeiros encontram ouro. Dois pedaços do precioso metal que podem mudar a sorte e a vida.

É com estas imagens, conceitos e ideias que o cineasta alemão Thomas Arslan preenche a tela nos primeiros instantes de “Ouro”, a mais recente aventura em forma de filme do realizador de obras como “Dealer”e “In the Shadows” e que terá honras de participação no próximo Festival de Cinema de Berlim.

A ideia para este filme surgiu depois de Arslan vasculhar documentos que retratam a louca corrida ao ouro que teve lugar no final do século XIX e que levou milhares de garimpeiros ou aspirantes a tal a percorrerem milhares de quilómetros em busca de um suposto “El Dourado” que se encontrava em Klondike, Yukon, noroeste do Canadá.

Levados pelo desespero, ganância e outros sentimentos limite, milhares de pessoas enfrentaram o desconhecido e foram arrebatados e consequentemente derrotados pela imensidão de uma paisagem dura, fria e, acima de tudo, selvagem.

É envoltos dessa incerteza mas protegidos por uma esperança resgatada no fundo dos seus âmagos que um grupo de sete emigrantes alemães decide fazer aquela que seria a sua maior aventura de vida e, quem sabe, a derradeira tentativa de conseguir um futuro risonho do Novo Mundo. Assim, em 1895, encabeçados pelo trapaceiro Wilhelm Laser (Peter Kurth), Emily Meyer (Nina Hoss), o jornalista Gustav Muller (Uwe Bohm), o paternalista tocador de banjo Joseph Rossman (Lars Rudolph), os cozinheiros Otto e Maria Dietz (Wolfgang Packhauser e Rosa Enskat) e o bagageiro Carl Bohmer (Marko Mandic) partem rumo a Klondike.

Aquilo que segundo Laser seria uma viagem de “recreio” durante seis semanas revelar-se-ia numa difícil prova que tinha na natureza envolvente um misto de beleza e castigo. Com o passar dos dias, as mentiras e escolhas do organizador do trajeto e a falência psicológica do restante grupo faria, faseadamente, vítimas entre os membros do grupo.

A par da magnífica fotografia, “Ouro” tem na banda sonora uma forma de dar mais intensidade e mostrar o caminho que cada cena quer levar e intuir, sendo os acordes planantes da guitarra de Dylan Carlson (membro da banda “Earth”) o “diálogo” presente mais forte pois aos seus personagens Arslan apenas faz com que os discursos sejam, na sua maioria, circunstanciais. A atmosfera árida que assombra o grupo de aventureiros exibe-se mais expressiva que o semblante dos atores cujas tonalidades faciais “apenas” servem para compor a natureza que os engole.



A personagem interpretada por Nina Hoss é o sinónimo mais flagrante dessa intenção estética e é a falta de paixão e distanciamento de Emily que paradoxalmente aproxima o espetador da tela. Por sua vez, a câmara de Arslan desenvolve um puro exercício de fragilização dos personagens face à já referida grandiosidade opressiva da natureza envolvente e marca o ritmo a seu bel-prazer utilizando, por exemplo, o fade como arma para terminar “capítulos” ou girar a estória noutra direção.

A exploração do género western – afastado da noção americana do mesmo e seguindo a filosofia de Kelly Reichard em “O Atalho” - pelo autor de “In the Shadows” assume em “Gold” a forma de um “road movie” muitas vezes a tocar na esfera do documentário. Os parcos momentos de ação, principalmente concentrados nos momentos finais da trama, resultam de um singelo somatório de acontecimentos do passado apenas revelados face à solidão que assombra alguns personagens em particular.

À medida que a acção se desenrola o grupo desfaz-se, os rostos tornam-se austeros e zangados, as roupas sujas. Cada indivíduo luta contra a própria vontade e os sentimentos mesquinhos anunciam o desespero. A expiação da alma pode conduzir à culpa e os fantasmas interiores podem superar com distinção a fragilidade de cada um.

No fundo, “Gold” resulta de uma visão pessimista de alguém que procura um qualquer sonho e vê o mesmo ser colocado em causa por algo tão itinerante como o espaço e o isolamento que própria natureza representa, estejamos a falar de uma corrida ao ouro no século XIX ou outra demanda fixada no calendário da memória.

Longe de moralismos bacocos e falsos sentimentalismos Thomas Arslan mostra um filme que traduz de forma “fria” e directa e muito competente as dificuldades que um “sonho” pode representar assim como é inesperado o labirinto que significa a busca da felicidade. Aqui a racionalidade suplanta o sentimento mais apaixonado e a conquista de muitos pode ser tentada de forma individual pois a (inter)acção humana adapta-se às condições vigentes.

In Rua de Baixo

domingo, 22 de setembro de 2013

“O Negócio dos Livros”
de André Schiffrin

Sociedade do espetáculo



O ato da leitura pressupõe métodos de uma grande simplicidade que permite, a todos, realizar tal fantástica demanda. Um livro, um cérebro e uma vontade intrínseca de ultrapassar fronteiras são as ferramentas necessárias para passar horas, dias, anos, de olhos postos nas frases, vidas ou experiências alheias que, com o passar de cada linha, de cada página, se tornam universais.

Numa época em que, apesar da crise financeira global, o livro é um bem precioso e indispensável para muito,s um pouco por todo o planeta, e a sua oferta é superior ao que nem os mais otimistas ousariam pensar há pouco mais de um século, ficam no ar algumas questões pertinentes: Será que é o leitor que escolhe o seu alvo de leitura ou é o mercado que dita as leis que condicionam qual a obra eleita? A lógica da produtividade editorial é consequência da qualidade intrínseca da obra ou serão os livreiros a “escolher” o que se “deve” ler consoante uma lógica lucrativa? Estas são algumas das perguntas que o francês André Schiffrin pretende explorar e dissecar através de “O Negócio dos Livros” (Letra Livre, 2013), uma obra inspirada na experiência de vida do autor que dedicou toda a sua existência aos livros, consequente edição e seus autores.

Ao longo da vida, Schiffrin foi editor da Pantheon Books, fundou a editora independente The New Press - publicando nessa chancela nomes como Marguerite Duras, Micheal Foucault, Simone de Beauvoir ou Noam Chomsky – e teve ainda tempo, espírito e competência para ser membro da Publish Commitee, da Associação Americana de Editore – entidade reconhecida pela sua luta contra a censura e pela liberdade de expressão – e para ser o primeiro editor da versão norte-americana da prestigiada revista “Granta”.

Com uma visão romântica de edição, este parisiense herdou do pai o “bichinho” dos livros e tenta, com este “O Negócio dos Livros”, revelar alguns dos mistérios dessa arte explicando, ao longo de mais de um século de história, como o mercado livreiro mudou e se adaptou às novas realidades que cada época imponha.

Hoje, defende Schiffrin, são os grandes grupos económicos que decidem o que ler, existindo uma filosofia que retrai o mérito artístico ou intelectual em função de uma literatura mais “light” e que teima em oferecer, “ao quilo”, obras dedicadas a “celebridades” nascidas de uma sociedade “pastilha-elástica” e que tem, por exemplo, nos reality shows, uma fonte inesgotável de pseudo-assuntos e temas.

A literatura de massas, a determinação do lucro, a censura de mercado e o mercantilismo capitalista são alvo de uma apaixonada e bem documentada análise em “O Negócio dos Livros”, tornando esta obra numa das mais importantes reflexões sobre o mercado livreiro e que servirá, por certo, como um alerta para quem gosta do mundo dos livros, seja na ótica do leitor propriamente dito ou na visão de quem está profissionalmente por dentro do próprio negócio das obras lidas.

In Rua de Baixo

“Ópera Flutuante”
de John Barth

A vida tal como ela (não) é



Tal como é habitual na sua escrita, John Barth envolve “Ópera Flutuante” (Sextante Editora, 2013)- o seu romance de estreia, publicado pela primeira vez em 1955 – numa cadência narrativa que, em primeiro lugar, tende a afastar-se do próprio conceito de estória, de forma a ir de encontro às verdadeiras motivações do personagem principal – neste caso Todd Andrews, um advogado libertino, solteirão e provocantemente descrente que relata toda a sua vida em 24 horas.

Depois dessa primeira abordagem, os nossos olhos e restantes sentidos são encaminhados para uma estrada literária, que se (auto)descobre através de puzzles que motivam decisões e atos futuros ou em vias de ultrapassar a linha ténue a que podemos chamar de presente.

À medida que nos embrenhamos neste romance de John Barth é comum pensar que estamos perante um exemplo existencialista – ou até mesmo niilista – de escrita mas, uma análise mais atenta, revela outras características mais profundas.

Andrews, o nosso anti-herói, está longe de ser um ser abjeto ou cruel; é apenas uma pessoa singular e particularmente adversa para com o estatuto convencional da existência. Assim, o maior desafio deste livro, é ler as diversas camadas de um personagem que incorpora na plenitude a pluridimensionalidade da escrita do autor, propenso à utilização inteligente de trocadilhos ou uma descrição da realidade inata à dupla “Andrews-Barth”, que rapidamente se transforma numa personagem de sentido único.

A riqueza da linguagem e contextualização deste “Ópera Flutuante” oferece momentos negros (como matar alguém numa guerra) ou ridículos (quando se inclui os próprios dejetos como última vontade num texto em forma de testamento), com a mesma pertinência e sapiência.

Alguns livros dão respostas, outros questionam. Nesta obra, John Barth navega em ambas as margens. Narrado na primeira pessoa, o que origina um diálogo entre escritor e leitor, esta peça literária assume-se como puro entretenimento em forma de meta-ficção.

Este romance inicia-se na manhã que leva Andrews a decidir que a solução para os seus dilemas é o suicídio. Mas, à medida que se avança nas páginas, sentimos que tal decisão está longe de ser definitiva. Essa resposta, ainda que não completamente explícita, está nas entrelinhas de cada frase, pensamento ou ação. A prosa, bem-humorada e aventureira, tal como a intensidade de toda a estória, é muito atraente, cativante e descaradamente honesta e direta.

In Rua de Baixo

“Acqua Toffana”
de Patrícia Melo

Puro veneno 



Com obras publicadas em vários países da Europa, assim como na China, Patrícia Melo, uma cidadã do mundo que vive entre a Suíça e o Brasil, é uma das mais galardoadas romancistas brasileiras da sua geração, tendo arrecadado importantes prémios com algumas das suas obras.

Se com “Matador” ganhou os prémios “Deux Océans” e “Deutsch Krimi”, “Inferno” valeu-lhe o Prémio Jabuti, fazendo com que Patrícia Melo fosse nomeada para o “Foreign Fiction Prize”. Para além destes títulos, também “Valsa Negra” e “O Elogio da Mentira” ajudaram a cimentar o estatuto desta brasileira em termos do panorama literário internacional, cujo trabalho foi devidamente reconhecido pela “Time Magazine” que, em 2000, a integrou numa lista entre os cinquenta “Líderes Latino-Americanos para o Novo Milénio”.

Se os títulos atrás referidos tiveram entre nós honras de publicação através da editora Campo das Letras, desta vez chega-nos “Acqua Toffana” (Quetzal, 2013), a primeira obra de Patrícia Melo, agora editada pela Quetzal e incluída na coleção “Língua Comum”.

Tal como acontece em outras obras escritas em português do Brasil, a linguagem de “Acqua Toffana” estranha-se e, depois e sem esforço, entranha-se: a elasticidade e o sentido pragmático dos termos brasileiros tornam a ação mais fluida, dinâmica e atraente.

Patrícia Melo divide o livro em duas estórias repletas de thriller e paranoia que, apesar de diferentes, acabam por se cruzar em determinados pontos, sendo o instinto sexual um dos vértices dessa intersecção.

Baseando-se num conhecido veneno originário do período renascentista da história, Patrícia Melo aplica a metodologia de “Acqua Toffana” à sua narrativa e, tal como a pérfida substância, a morte e o medo são sentimentos alimentados de forma gradual e quase impercetível, acabando por funcionar como uma arma temível e silenciosa.

Com uma escrita ritmada e alicerçada num delírio constante, “Acqua Toffana” é sinónimo de duas estórias onde a desconfiança, o medo, o ódio e o desespero são alguns dos ingredientes. Se no primeiro caso vamos conhecer uma mulher em estado avançado de paranoia, que suspeita que o companheiro é um cruel assassino, do outro somos confrontados por um aplicado funcionário de um cartório, que se sente ameaçado por uma vizinha ao ponto de planear a sua morte.

Sempre na primeira pessoa, “Acqua Toffana” descreve vidas à beira do colapso, cérebros assaltados pelo medo, relações decadentes, o efeito nocivo da dependência televisiva e, acima de tudo, mentes assassinas que se escondem por detrás da cívica convivência com os seus semelhantes, mascarando a sua sofisticada demência com a mais convincente das normalidades.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

“O CULTIVO DE FLORES DE PLÁSTICO”
de AFONSO CRUZ

A vida é uma porta aberta




Depois de lançar “Livro do Ano” e o terceiro tomo da “Enciclopédia da Estória Universal”, dois dos mais brilhantes livros que a literatura nacional recebeu, e acolheu, nos últimos tempos, o multifacetado artista Afonso Cruz regressa com “O Cultivo de Flores de Plástico” (Alfaguara, 2013), uma peça de teatro em forma de livro que reflete o quotidiano de um grupo de sem-abrigo. Ao longo dos nove atos que constituem a mais recente obra do autor de “Os Livros que Devoraram o meu Pai”, Cruz apresenta quatro personagens: Jorge, Lili, o couraçado Korzhev e a senhora do fato, quatro sem-abrigo que espelham o esquecimento que a sociedade de consumo exibe para com quem perdeu o rumo, o emprego, a família, o teto, a própria vida.

Afonso Cruz retrata a miséria e a descrença de quatro almas através da sua escrita hábil, aqui transformada em diálogos que são, eles próprios, a força maior dos personagens. Através de pequenas estórias e episódios avulso, alguns deles envoltos de uma ironia sagaz, somos convidados a conhecer melhor a vida – ou o que sobra dela – de pessoas que atingiram um limite, uma fronteira que depois de alcançada dificilmente tem ponto de retorno. O plástico que o título sugere e remete está intrinsecamente ligado a uma sociedade que deixou de se importar com os outros, com quem se sente fora, de quem abandonou ou foi abandonado pela esperança. Esse plástico é a falsidade, o engano, a traição, a desconfiança.

Do desespero nasce a miséria, a loucura, a indiferença, a invisibilidade enquanto pessoa, enquanto ser humano. Jorge deixou de acreditar no próximo, Lili incompatibilizou-se com a vida, Korzhev sentiu a exclusão na pele e a senhora do fato viveu o cataclismo do desemprego. Causas diferentes, o mesmo destino: a rua e a solidão.

Ao ler “O Cultivo de Flores de Plástico” sentimos uma lição de vida. A via-sacra da pobreza permite fazer uma separação das águas e quando se tem pouco ou nada inicia-se um novo processo de descoberta. A amizade passa a ser, definitivamente, um bem precioso, a solidariedade é a maior das armas, o céu aberto o melhor dos tetos, um pedaço de cartão puro conforto, uma sopa a poção da vida eterna.

E é a dignidade desta gente que vive sem esperança que nos faz lembrar que a efemeridade da felicidade é algo que foge entre os dedos, que dura um mero segundo. A vida muda de um momento para o outro. O lógico torna-se absurdo. Afinal, o que queremos nós da vida? Ao percorrer as páginas deste pequeno (grande) livro sente-se o calafrio da incerteza de um amanhã que deixou de ser um futuro risonho, antes uma porta aberta para algo que se espera melhor que o passado.

E, como a solidariedade é o mote deste livro, os direitos de autor resultantes da venda da obra revertem a favor da associação CASA – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo.

In Rua de Baixo

“A CASINHA DOS PRAZERES”
de JEAN-FRANÇOIS DE BASTIDE

A Arquitetura da Paixão



De acordo com as próprias palavras do autor, “a linguagem do amor é um acorde perfeito”. Ao longo das linhas deste curto romance de paixão, sedução e deslumbramento vamos sentir, com uma intensidade notável, a melodia desse sentimento que busca, na sinceridade, uma legitimidade que abala qualquer tentativa de devaneio, combatendo com acérrima e decidida consistência a falência de uma entrega desprovida de sentido.

É com puro deleite que falamos de “A Casinha dos Prazeres”, do francês Jean-François de Bastide, autor que ficou conhecido como um dos grandes impulsionadores da chamada literatura libertina, género muito comum em França no século XVIII e que teve, como mestre maior, Crébillion. Com uma linguagem barroca a invocar o “erotismo”, estes romances apaixonaram inúmeros leitores, ainda que muitas dessas obras – algumas condenadas ao ostracismo – não tenham almejado grande sucesso ou divulgação.

Bastide foi um dos mais injustiçados e, muitas das suas obras, não tiveram a visibilidade de outros livros publicados por nomes como Duclos, Denon, Voisenon, Dorat ou Chervrier. Assim, e de forma a repor alguma justiça literária a este romance em forma de narrativa de toadas arquitetónicas, a editora Abysmo faz chegar até nós o relato sedutor entre o marquês de Trémicour e o seu “objeto” de desejo e paixão, a bela Mélite.

As páginas de “A Casinha dos Prazeres” fazem-nos percorrer um diálogo enamorado entre os dois personagens que tentam ganhar uma aposta e, acima de tudo, novos níveis de intimidade. Enquanto o marquês usa a sua “petite maison” – edifícios comuns entre a burguesia francesa no século XVIII que serviam de ninhos de amor para os seus proprietários – nas margens do Sena e os seus tesouros em forma de peças donas de uma arquitetura sedutora, Mélite tenta, a custo, resistir à beleza de uma casa que se assume como um paraíso terreno repleto de obras de arte. Paralelamente ao propósito deste canto em forma de passeio galanteador e obsessivo, ao leitor é permitida uma viagem que mistura amor e história da arte decorativa, devidamente documentada nas notas de rodapé deste cativante livro.

Publicado pela primeira vez em Portugal, “A Casinha dos Prazeres” é editado com um requinte igual ao seu conteúdo. Para além da capa aveludada, a Abysmo convidou Susana Oliveira e António Mega Ferreira para os “prefácios” e ofereceu algumas páginas a Álvaro Siza Vieira.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Peixe:avião
"Peixe:Avião"

Sons de sentido único



Braga é um dos maiores «ninhos» culturais de Portugal e, no que toca à música, são muitos e bons os exemplos que nos chegam da cidade dos Arcebispos.

Depois dos seminais “Mão Morta”, eis que os “Long Way to Alaska” e “Peixe:Avião” surgem no horizonte mais indie, a reclamar por um lugar de destaque no panorama musical nacional.

Formados nos dias mais quentes de 2007, os “Peixe:Avião” chegam agora ao seu terceiro longa duração e podemos dizer que o disco homónimo da banda de José Figueiredo, Luís Fernandes, Pedro Oliveira e Ronaldo Fonseca revela-se num patamar acima daquilo que “40:02” (2008) e “Madrugada” (2010) representavam. Se no disco de estreia eram notórias as (boas) influências de Thom Yorke e companhia, “Madrugada” já revelava um som em busca de uma identidade própria, sendo que a banda explorava caminhos mais experimentais, bem próximos dos universos krout-rock e post-rock.

Os nove novos temas de “Peixe:Avião” mostram uma banda mais madura cuja música assenta num misto de batidas rock (por vezes a roçar o minimal), temas que exploram o lado mais etéreo e planante, e composições dentro da aventura experimental com laivos sónicos.

Ainda que estejamos perante um disco que exiba traços de alguma bipolaridade sonora, o seu conjunto está assente numa lógica coesa e que tem na voz, em forma de brisa, de Ronaldo Fonseca um dos seus pontos mais aglutinadores e unos.

“Prismas” é a faixa que abre o disco e de imediato somos contagiados com o ritmo guloso da bateria que apadrinha a entrada da guitarra e da ambiência eletrónica que decora o fundo. A toada maquinal, riffs e feedbacks conferem uma forte densidade que tem na voz um ponto de equilíbrio. Um excelente começo onde o ruído é muito bem recebido.

O disco prossegue com “Ponte de Fuga” e “Pele e Osso”, dois exemplos da heterogeneidade da música dos “Peixe:Avião”. Se no primeiro caso estamos em território rock, com guitarras e bateria a assumirem o controlo geral (por vezes o som aproxima-se do imaginário criado pelos Dead Combo), em “Pele e Osso” já é a eletrónica quem mais ordena e a toada é mais fria, ainda que bastante atraente.

“Espirais” mostra a faceta instrumental da banda bracarense e o resultado é uma composição envolta de um suspense formado através de uma espiral sonora com tendências sónicas. Esse ambiente ganha novos contornos ao ouvir-se os primeiros acordes de “Avesso”, uma das canções mais orelhudas e dançáveis deste disco, cuja batida irresistível serve de rastilho.

Logo a seguir, “Torres de Papel” baixa um pouco de intensidade rítmica, mas mantém uma batida eletrónica dolente, sinónimo de um sentimento de vigília contínuo. “Ecos” continua o interessante percurso de “Peixe:Avião” e revela-se uma das faixas mais enigmáticas e competentes do álbum. A voz faz a ponte entre instrumentos e cada um desses elementos cabe na conta e medida certa. Sem dúvida um dos momentos mais perfeitos e pop deste disco.

Os últimos dois temas do disco, “Voltas Cegas” e “Amarras”, são duas peças envoltas de um eficiente pragmatismo rock sincopado, ainda que as cordas e bateria/baixo dividam o protagonismo em “Voltas Cegas”, enquanto “Amarras” tem um perfil mais maquinal.

Independentemente das toadas mais “cinza” ou coloridas do seu todo, “Peixe:Avião” é um disco coeso e de corpo inteiro. O jogo entre filosofias mais orgânicas e maquinais revela um equilíbrio assinalável e o resultado é um disco adulto e altamente recomendável.

Alinhamento:

01.Prismas
02.Ponto de Fuga
03.Pele e Osso
04.Espirais
05.Avesso
06.Torres de Papel
07.Ecos
08.Voltas Cegas
09.Amarras

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

domingo, 15 de setembro de 2013

"Morte na Arena"
de Pedro Garcia Rosado

Depois de "Morte com Vista para o Mar" eis que Pedro Garcia Rosado volta à carga com "Morte na Arena", mais uma edição com selo "Topseller".

Um abraço e boa sorte para mais um (excelente) Livro.  

“Open Me!”
PS Vita

Caixinhas de surpresas



Uma das funcionalidades que desde sempre acompanhou a PS Vita prende-se com a possibilidade de utilizar as câmaras frontal e traseira e com elas transformar cenários e objetos quotidianos em cenários de míni games com a ajuda de cartão especiais denominados Play Cards.

Sendo possível transferir esses “cartões mágicos” (visitar: eu.playstation.com/psvita-ar-cards) podemos experimentar os mesmos em jogos como “Reality Figthers”, “PulzAR” ou “Fireworks” e agora no interessante “Open Me!”, uma nova forma de testar as potencialidades da denominada Realidade Aumentada (RA) e que consiste num puzzle que nos leva a explorar e abrir caixas virtuais (perto de cinco dezenas) repletas de surpresas assumindo-se como a mais bem conseguida experiência do género que a Vita já ofereceu.

Ainda que, pensamos nós, estar longe daquilo que esta plataforma portátil pode proporcionar, “Open Me!” pode deixar os técnicos dos estúdios japoneses da Sony tranquilos. À medida que somos convidados a abrir as muitas, complexas e variadas caixas, a tarefa vai tornando-se aliciante e acreditem, alguns dos desafios requerem muita paciência e astúcia.

Algumas dessas caixas só são abertas depois da resolução de puzzles que têm o condão de dar nós cerebrais aos menos experientes e revelam-se mais complicados que o suposto, requerendo uma memória viva e elástica por parte do jogador à semelhança do que acontecia (ou acontece) a que joga “Simon Classic”, o popular puzzle eletrónico colorido que surgiu no final da década de 1970 e que “viciou” milhões em todo o mundo.

Mas não só à base de intelecto se resolvem estes desafios. Alguns puzzles requerem alguma destreza física como no caso de ser necessário repetir o mesmo movimento num curto espaço de tempo tal como acontece quando somos levados a carregar muitas vezes no mesmo botão. A tarefa pode ser ainda mais complicada se a capacidade de manobra da VIta ainda não for muito expedida…

Os níveis de grau de dificuldade mais elevado, as chamadas “master boxes”, são autênticos quebra-cabeças e não desespere se não consegue resolver a questão de forma célere. Um conselho, se não conseguir resolver o enigma tão depressa como pensaria ser capaz, dê uma pausa a sim mesmo e regresse ao nível mais tarde.

À medida que a resolução de puzzles é ultrapassada com maior distinção existem algumas recompensas. Ao abrir a caixa em poucos segundos conseguimos uma melhor classificação e, obviamente, quanto maior for a lentidão menor será a nota conseguida. Ainda que estes bónus não pareçam muito atraentes possibilitam avançar para outros desafios, ou seja, diferentes caixas.

A simplicidade da jogabilidade é um dos trunfos desde jogo sendo que também é possível jogar sem um cartão de RA. Podemos utilizar uma toalha de mesa, um jornal ou uma revista para conseguir uma base estável de jogo e esperar que a caixa se forme no écran depois de percorrer o esboço da mesma em 360 graus. A seguir é possível fazer zoom perante o objeto 3D e para isso, por vezes, é necessário reservar algum espaço para tal pelo que aconselhamos a jogar num espaço amplo.

Para além disso escolha um local bem iluminado pois a câmara da Vita não faz uma boa recuperação de contrastes entre locais onde a luminosidade oscila, sendo um dos contras em “Open Me!” pois com pouca luz a caixa virtual desaparece do écran…

Outro pormenor menos positivo está diretamente relacionado com a reação da consola ao movimento que a resolução de puzzles implica. Por vezes, essa oscilação faz com que o cartão de RA deixe de fazer contacto e com isso a caixa deixa de ficar visível. A deteção da câmara ainda está uns furos abaixo do desejável.

À semelhança de outros jogos desta plataforma existe a possibilidade de jogar em regime multiplayer e online tendo o jogador também a possibilidade de criar os próprios puzzles ainda que esta funcionalidade seja comparativamente limitada se comparada com jogos como, por exemplo, o “Stealth Inc. – A Clone in the Dark”.

Contas feitas, “Open Me!” é, sem dúvida, o melhor jogo de RA jamais feito para a mais promissora consola portátil nascida no Japão. Os conteúdos são, no geral, simpáticos, desafiadores e viciantes q.b. sendo os maiores contras as já referidas falências da câmara assim como a falta de ambição do território online.

A maior dúvida será porventura o futuro deste tipo de jogos na PS Vita. Dificilmente, mantendo as patenteadas intermitências de qualidade, estes puzzles de RA irão vingar nesta plataforma. A resposta está do lado dos seus criadores.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Livros de Ontem

Uma boa ideia, da teoria à prática



Numa altura que a crise tende a absorver e assombrar quase todas as áreas socioeconómicas, de quando em vez surgem ideias, projetos, aventuras, certezas que servem para abanar a ideia de estagnação, de monotonia.

Apesar do crescente número de leitores e do livro ser um objeto muito procurado e, acima de tudo partilhado, o mercado editorial vem sentindo nos últimos anos uma ligeira quebra. Para contrariar essa ideia fundiram-se editoras, os grupos com maior poderio económico reuniram chancelas, autores e obras de referência mas, a solidariedade livreira, ficou sensivelmente no mesmo impasse de sempre.

Cientes que agitar é urgente, João Batista e Nádia Amante criaram, em 2011, a editora “Livros de Ontem”, uma ideia que nasceu com o apoio do PPL Crowdfounding Portugal que contribuiu com cerca de 1500 euros e possibilitou, a esta jovem dupla, criar uma plataforma de classificados online com livros académicos usados a preços muito convidativos que são preciosas ferramentas para a classe estudantil que vê, assim, a possibilidade de adquirir, e vender, compêndios que já não necessita ou procura desesperadamente.

Com sede em Lisboa, a “Livros de Ontem” foi crescendo, devagarinho, e a sua aposta seguinte é a divulgação da língua portuguesa, com foco para a publicação de novos autores que usam o idioma de Camões para expressar o que lhes vai na alma e coração, seja em prosa, poesia, narrativa ou ficção.

Outra das características da “Livros de Ontem” é a proximidade entre editora e autor durante todas as fases de elaboração do livro, inclusive no processo de divulgação da obra cujo grande objetivo é aproximar o escritor do leitor.

Este projeto jovem, criativo e inovador foi já alvo de prémios e louvores e, entre eles, contam-se o galardão de empreendedorismo “Melhor Ideia de negócio FCSH Nova – Santander Totta” ou o primeiro lugar no “The Next Big Idea”, do canal Sic Notícias.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Noiserv
"Almost Visible Orchestra"

Algodão doce



Quando, em 2008, ouvimos “One hundred miles from thoughtlessness", ficámos com a noção, para não dizer certeza, que a música portuguesa acabava de ver criado um novo nicho auditivo onde as composições resultavam de uma matemática especial, que somava guitarras a megafones, caixas de música a melódicas, guitarras a outros instrumentos díspares.

David Santos, aka Noiserv, inventava uma música naif, repleta de sentimento e paixão, que fazia explodir um verdadeiro carrossel de emoções carregadas de sacarose. A experiência seguiria em 2010 com o maravilhoso EP “A day in the day of the days" e na memória ficam músicas como “Mr. Carousel” ou “The sad story of a little town”. Nesse mesmo ano Noiserv participaria com algumas músicas, em nome próprio, na a banda sonora de filme “José&Pilar”.

Três anos depois, eis que a 7 de outubro chega aos escaparates “Almost Visible Orchestra”, também conhecido como “A.V.O.”, um álbum com dez músicas e uma duração que ronda a meia hora. A apresentação do disco tem data marcada para o primeiro dia de outubro e terá como palco a sala lisboeta do Teatro S. Luiz, com a particularidade da entrada do espetáculo ser livre.

No que toca ao disco propriamente dito, “A.V.O.” começa com “This is maybe the place where trains are going to sleep at night”, um exercício tipicamente Noiserv e que embala os mais resistentes. Se o início é marcado pela simplicidade de acordes, progressivamente as camadas sonoras sucedem-se de forma natural e é, então, anunciada a entrada da voz dolente de David Santos, também ela um instrumento marcado pela sobreposição de tonalidades.

Num registo mais low-fi com pitadas de faíscas eletrónicas, “Today is the same as yesterday, but yesterday is not today”, o primeiro single a ser retirado de A.V.O, revela o à-vontade com que o músico/produtor português se mexe em cenários musicais onde a melodia revela uma vontade própria entre os ecos das “vozes” presentes nesta caixinha de música especial. “It’s easy to be a marathoner even if you are a carpenter” - que tem como base a vivência verídica de Francisco Lázaro, um maratonista português que fez parte da primeira equipa olímpica portuguesa nos jogos de Estocolmo, em 1912, e que desfaleceu durante a prova, vindo a falecer devido ao esforço - revela-se mais escuro e o dramatismo sobe à custa da voz quebrante de David Santos e das cordas simples de uma guitarra sofrida.

De volta a toadas mais eletrónicas e planantes, “I’m not afraid of what i can’t do” é um trajeto singular dentro de uma caixinha de música que cresce à medida que os segundos passam, para inevitavelmente terminar com a suavidade de um sonho bonito. Depois, “47 seconds are enough if you only have one thing to do” revela a capacidade de transformar um conjunto de acordes díspares numa curta poesia.

O regresso às canções mais encorpadas faz-se com “Life is like a fried egg, once perfect everyone wants to destroy it”, um exercício sonoro que se inicia com uma cadência minimal, que aumenta de intensidade e forma com o passar dos segundos. A voz é substituída por sons multifacetados condensados numa primeira instância, mas depois surge firme, ainda que seja a solidão o tema de fundo.

Depois do isolamento, é a vez do julgamento de terceiros ser o mote para “I will try to stop thinking about a way to stop thinking”, com David Santos a utilizar as cordas acústicas da sua guitarra para tornar ainda mais épico um tema salpicado pela habitual eletrónica. “It’s useless to think about something bad without something good to compare” mantém o registo assente nas cordas de uma guitarra, a fazer lembrar alguns momentos dos Tortois. Sente-se na voz a parceira perfeita.

Já na reta final do disco surge “I was trying to sleep when everyone woke up”, uma faixa que abandona momentaneamente o registo solitário de David Santos que aqui recorre à companhia de Rita Red Shoes, Luísa Sobral, Esperi, Afonso Cabral & Salvador Menezes (dos You Can´t Win Charlie Brown), Francisca Cortesão (Minta) e Luís Nunes (Walter Benjamin) para abrilhantar ainda mais um disco especial.

O disco termina com um dos seus mais bonitos momentos, com “Don’t say hi if you don’t have time for a nice goodbye” a evidenciar-se uma das mais intensas composições de Noiserv. É impossível ficar indiferente à doce melancolia que uma canção como esta revela a cada segundo. A voz cola ao som, que por sua vez levita dentro de uma escala assombrosamente doce e leve, que se assemelha a um “quebra-cabeças” único, um labirinto onde a frágil eletrónica se assume com a mais valiosa aliada da orgânica geral do disco.

Tudo neste disco é pensado de forma a deliciar quem o ouve. Seja o conteúdo musical ou a própria capa em forma de puzzle, “A.V.O” é uma peça de pura filigrana. De uma auspiciosa promessa, com o passar do tempo e dos discos, Noiserv é uma certeza duradoura, um projeto de um homem só que se refugia na solidão para criar peças de arte em forma de canções. A ele, a David Santos, agradecemos por isso. Esta orquestra não só é visível como é uma das melhores paisagens sonoras jamais feitas em Portugal.

Alinhamento:

01.This is maybe the place where trains are going to sleep at night
02.Today is the same as yesterday, but yesterday is not today
03.It’s easy to be a marathoner even if you are a carpenter
04.I’m not afraid of what i can’t do
05.47 seconds are enough if you only have one thing to do
06.Life is like a fried egg, once perfect everyone wants to destroy it
07.I will try to stop thinking about a way to stop thinking
08.It’s useless to think about something bad without something good to compare
09.I was trying to sleep when everyone woke up
10.Don’t say hi if you don’t have time for a nice goodbye

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Pixies
“EP-1”

Um regresso…estranho


De forma inesperada os Pixies regressam às edições discográficas com um curto registo simplesmente denominado “EP-1” (ver aqui: http://www.pixiesmusic.com/ep1-eu/). Depois de mostrarem ao mundo “Bagboy” em junho último - a primeira canção saída da cabeça de Black Francis e comparsas nos últimos nove anos – agora é a vez de sentirmos quatro peças musicais da banda depois do (esperado) abandono da baixista Kim Deal.

Assim, Black Francis, Joey Santiago e David Lovering reagem à saída da sua companheira de sempre ao lançar “EP-1”, um trabalho que voltou a contar com a produção de Gil Norton, o homem que esteve por trás dos álbuns dos Pixies que revolucionaram o universo indie rock no final dos anos 1980 e início dos 1990.

Em “EP-1” damos de caras com quatro peças com uma intensidade e conteúdo musical díspar entre si, sendo que numa apreciação global estão uns furos abaixo daquilo que os Pixies sabem e podem fazer.

“Andro Queen” abre o registo e revela uma “balada sci-fi” em toada morna com a voz de Black Francis (ou será Frank Black?) longe do tom que tínhamos por hábito associar à ideia do som formado pelas cordas vocais do homem de “Tame”. Essa “inércia” é de certa forma quebrada com os primeiros acordes de “Another Toe in the Ocean”, uma canção mais rock e que revela o som do baixo aqui nas mãos de Ding Archer enquanto a verdadeira substituta de Deal, a também Kim mas de apelido Shattuck – ex-The Muffs e The Pandoras - não assume a tarefa.

Mas é com “Indie Cindy” - cujo vídeo de apresentação é deveras interessante – que, pela primeira vez neste EP, se sente algo da alma e magia dos “verdadeiros” Pixies principalmente da fase “Trompe le Monde” e com as guitarras a liderarem uma parte significativa da canção. Finalmente, Black Francis empresta a sua voz ainda que num registo spoken-word quebrado amiúde por uma acalmia surf.

O disco fecha com a pujante “What Goes Boom”, sem dúvida a mais interessante composição de “EP-1”. O ritmo é descaradamente rock e pisca o olho a ambientes mais heavy, algo que os Pixies fazem como ninguém.

Em ano que regressam à estrada, pisando o Coliseu de Lisboa a 9 de novembro, os Pixies decidem oferecer um curto punhado de canções que, esperemos, estão na antecâmara de um novo longa duração de originais. A expectativa é muita mas, por aquilo que mostram em “EP-1”, os Pixies estão (ainda) a anos-luz da forma e genialidade que deixaram como legado. A ver vamos se a banda de Boston, agora sem Kim Deal, consegue voltar a arrepiar a pele a alma dos seus fãs.

Alinhamento:
1. Andro Queen
2. Another Toe in the Ocean
3. Indie Cindy
4. What Goes Boom

Classificação do Palco: 6/10

In Palco Principal