terça-feira, 31 de maio de 2016

4ª Edição da Noite da Literatura Europeia
DEZ LITERATURAS, DEZ ESPAÇOS, UMA NOITE ÚNICA


A realizar no dia 4 de junho, sábado, em plenas Festas de Lisboa, A Noite da Literatura Europeia apresenta o serão literário mais popular da capital lisboeta. Organizada por vários institutos culturais europeus sediados em Lisboa e pelas embaixadas representativas, este evento decorre, entre as 19h às 24h, em vários espaços emblemáticos da zona do Carmo/Trindade.

Durante este serão, terão lugar leituras, por 14 atores portugueses, de excertos de obras de dez escritores europeus. As sessões, de entrada livre, têm a duração de dez a 15 minutos e repetem­-se de meia em meia hora, para o público poder assistir a todas as sessões nos diversos espaços.

Nesta que é a 4ª edição da noite mais literária de Lisboa, há prosa e poesia para todos os gostos. “Sophia, a morte e eu”, romance de estreia do músico e escritor Thees Uhlmann (Alemanha), aborda as questões da morte, do amor e da amizade através de uma divertida road trip. “O leque arrepiado”, primeiro livro de contos da galardoada escritora Ann Cotten (Áustria), reflete sobre a vida e a arte, um tema transversal à sua obra. “Quando D. Quixote morreu”, do multipremiado escritor Andrés Trapiello (Espanha), é um romance histórico sobre todos os que conheceram D. Quixote em vida e que, por isso, deixaram de ser anónimos, enquanto o romance ficcional “A estação da sombra”, da escritora Léonora Miano (França), expõe com crueza as relações entre África e a Europa.

A Noite da Literatura Europeia viaja de África para o norte da Europa com “O cometa na terra dos Mumins”, de Tove Jansson (Finlândia), numa viagem à fantasia infantil finlandesa, com direito a estrelas cadentes, cometas e trolls. “Morro como país”, o primeiro texto narrativo do célebre dramaturgo Dimitris Dimitriadis (Grécia), aborda temas como a pátria e a identidade do povo grego, num texto simultaneamente doloroso e teatral. “Memoriais sobre o caso Schumann”, de Filippo Tuena (Itália), é um documentário a múltiplas vozes, dos últimos três anos de vida do compositor Robert Schumann, passados num hospital psiquiátrico. Por fim, o romance “As primeiras coisas”, de Bruno Vieira do Amaral (Portugal), encerra a secção de prosa desta noite, com a descoberta do bairro Amélia e dos seus habitantes, um mundo onde cabe toda a humanidade.

Na área da poesia, a antologia “Poetas checos contemporâneos” (República Checa), uma antologia bilingue, em português e checo, dá a conhecer dez poetas checos, sendo o galardoado Jakub Řehák o autor lido neste serão. Já “Seleção de poemas” (fantomateca) de Nicolae Prelipceanu (Roménia), dedica­-se exclusivamente a desvendar a obra do poeta, prosador e jornalista romeno.

As sessões de leitura decorrem em locais como a Sala de Extrações da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia, o Teatro da Trindade Inatel, ou ainda o Vertigo Café, entre outros espaços, onde atores como Paulo Pires, Mónica Calle ou Pedro Lima vão dar voz, com alma e inspiração, às palavras dos dez autores europeus.

A Noite da Literatura Europeia é uma iniciativa organizada pela EUNIC Portugal, uma rede de institutos culturais e embaixadas, com o patrocínio da Representação da Comissão Europeia em Portugal.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 27 de maio de 2016

“A Poeira que Cai sobre a Terra e outras histórias de Jaime Ramos”
de Francisco José Viegas

HISTÓRIAS NEGRAS COM SABOR AGRIDOCE


Se tivermos em conta o género literário policial made in Portugal, pensamos prontamente em personagens como Gabriel Ponte (criado por Garcia Rosado), Mário França (nascido da imaginação de Miguel Miranda), Peter Maynard (herói de uma trilogia criada por Dennis McShade, aka, Denis Machado) e Jaime Ramos, inspetor da secção de Homicídios da Polícia Judiciária do Porto e, segundo Francisco José Viegas, seu criador, «um solitário, pessimista e ligeiramente conversador, mas que nunca se escandaliza com nada».

Uma visita à página do personagem revela mais pormenores sobre o agente Ramos, nado e criado na Invicta, inveterado leitor e apreciador de charutos, e que comemora em 2016 a entrada na sexta década de existência.

E nada melhor para celebrar a referida data que a edição de “A Poeira que Cai sobre a Terra e outras histórias de Jaime Ramos” (Porto Editora, 2016), uma coleção de cinco histórias independentes no enredo que que observam alguns lugares comuns na suas narrativas, nomeadamente a cidade do Porto, uma melancolia latente e fortes personagens femininas (algumas delas agradáveis surpresas, outras bem-vindas novidades) que nem mesmo a morte apaga o seu brilho e encanto.

Esta mão-cheia de histórias (e não contos pois o seu autor afirma não saber escreve-los pois não tem a noção do seu tamanho e estrutura) escritas entre o ano 2000 e 2014, reunidas num mesmo espaço pela primeira vez, embala-nos através de uma escrita sincopada e deveras inteligente que tanto eleva a esperança como afunda uma breve noção de futuro. Num palco que além de Ramos tem ainda lugar para a pandilha habitual do inspetor composta por Olívia, Isaltino, Corsário, Vasco e Dulce, embrenhamo-nos, sem demoras, em “Um Gosto pela Imperfeição”, o homónimo “A Poeira que Cai sobre a Terra”, “Lágrimas de Sydney”, “A Câmara Invisível” e “Uma Recordação de Dezembro”.

O registo familiar e aconchegante da escrita de Francisco José Viegas faz-nos, felizmente, iniciar mais uma viagem, entre passado, presente e futuro, a bordo da vida de Jaime Ramos que transporta “ora uma jovem em roda livre, entregue à noite do Porto, ou uma mãe condecorada com as divisas e medalhas da aristocracia inglesa que se deslumbra com o Douro. Uma mulher arrebatadora que é um romance rock’n’roll, uma estrada de pó, ou uma atleta olímpica cujo corpo não pede explicações”, e que servem de porto de abrigo ao leitor mais incauto e sedento daquilo a que podemos chamar, sem pudor, requintados momentos de um policial literário.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 25 de maio de 2016

“A Fome”
de Martín Caparrós


Não temos como negá-lo. Estamos perante um assunto desconfortável, duro, sem qualquer sentimento paliativo, pois entramos no domínio de um dos mais graves flagelos que afectam o Homem em pleno século XXI: a fome.

Vangloriamos os infinitos avanços tecnológicos, que acabam por ser ditadores da nossa existência, fazemos loas à modernidade, mas não conseguimos terminar com os três milhões de crianças que morrem todos anos devido a doenças ou falta de alimentos.

Além disso, toda esta catastrófica realidade pode levar mesmo a extremos de natureza absurda pois, diz a economia global, que o problema da fome não se deve à carência de alimentos mas sim à sua má distribuição, à sua inviabilidade oriunda de uma amálgama de fatores como questões religiosas, tradicionais, da gestão dos recursos, corrupção, exploração e egoísmo capitalista, alterações climáticas, resquícios dos impérios coloniais, ou mesmo, desinteresse de quem tem muito em ajudar quem menos tem, prova máxima do egoísmo ainda latente nesta distorção a que chamamos Humanidade.

É exactamente esse jogo de “interesses” transnacional que o jornalista e escritor argentino Martín Caparrós explora em “A Fome” (Temas e Debates, 2016), um extraordinário exercício reflexivo que nos faz rever as inter-relações socio-económicas mundiais sobre uma perspectiva variada.

Em primeiro lugar temos a observação do profissional, do jornalista, que analisa e sintetiza a problemática em debate, passando ao leitor a ideia das suas origens e implicações, dando também possíveis “razões” e “saídas” para o problema evitando a superficialidade em detrimento da raiz do problema.

Uma segunda perspectiva é revelada no seu sentido antropológico. Caparrós faz-nos “ouvir”, por via das muitas entrevistas que realizou, a voz da fome, contextualizando os seus horrores e elevando ao extremo o seu estado nocivo, marginal, tendo os seus protagonistas, os pobres – os que morrem à e da falta de víveres -, direito a, pelo menos, exigirem uma resposta.

Desses diálogos resulta a oportunidade de dar voz aos que não têm voz, do que é sentir fome e ter uma janela de esperança de vida reduzida, dos que comem para (sobre)viver e não daqueles que vivem para comer. A esses, a morte até soa natural, sem aspas, sabendo que os seus filhos, subnutridos ou doentes, não deixaram de ser vozes anónimas de um sofrimento surdo que é exposto nas televisões, arrepiando quem os vê – mas que são, para a maioria desses, apenas notícias, consequências do mundo.

À boleia dessas conversas viajamos pela Índia, Bangladesh, Nigéria, Sudão do Sul, Estados Unidos da América, Argentina. Que importa que alguns destes países sejam os maiores exportadores de carne? Ou os maiores produtores de soja? Nada. Pois a fome não é exclusiva dos países mais pobres: é uma epidemia global que convive paredes meias com a opulência e, a custo, disfarçada por algumas estatísticas sobre a pobreza crónica.

Sarcástico, afirma Caparrós: “Existe fome, porque há milhões em situação de pobreza extrema. A primeira questão deriva de uma série de fatores, a segunda dos seus efeitos”. São, no fundo, as origens da fome, que mais preocupa quem a estuda, com as equações matemáticas e económicas no topo da pirâmide de desconfiança.

Existe ainda uma outra perspectiva explorada por Martin Caparrós, centrada nas deambulações entre si mesmo e uma entidade imaginada, que não controla – o leitor -, e que traz a palco factos que estão na básica adaptação do Homem ao mundo e à sua capacidade de sobrevivência ao meio. Disto resultam algumas perguntas: Como podemos viver se sabemos como está o mundo e nada fazemos para o melhorar? Podemos, enquanto indivíduos, lutar contra essa assassina inércia? Quando abrir os olhos e encarar a realidade de frente?

Obra de excelência, “A Fome” dá-nos (mais uma) oportunidade para encarar este problema e tentar compreender o seu alcance, através de números, reais, que por vezes são adocicados por eufemismos mas que apenas adensam o fel vivido por quem morre, diariamente, por não ter o que comer, por lhe ser negado o direito à vida.

In deusmelivro

“The Empire”
de João Valente

FILHOS DO ROCK


Para os apaixonados pelo complexo universo da música, no ano 2000, o cineasta norte-americano Cameron Crowe, dava a conhecer ao mundo “Quase Famosos” (Almost Famous), um filme que nos transportava para os loucos anos 1970 onde o rock explodia no seu máximo esplendor e colocava no centro da atenção um rapaz de 15 anos que conseguiu o seu primeiro trabalho como jornalista na revista Rolling Stone com o foco de acompanhar a primeira digressão dos Stillwater por terras do Tio Sam.

Durante duas horas ficámos a conhecer os tortuosos, e mais íntimos, caminhos do rock e como tudo pode passar do sonho ao pesadelo num ápice, sendo o sucesso o mais realista e certeiro sinónimo de efemeridade.

E é esse o mundo que João Valente decidiu explorar em “The Empire” (Topseller, 2016), um livro que é uma nostálgica viagem sobre a vida de quarto rapazes, apaixonados por música, que subiram ao mais alto patamar do estrelato musical mas que, à semelhança de muitas outras bandas, experimentou uma queda de estrondo.

Durante 11 anos, os The Empire, ou Mário Andrade na voz e guitarra, Ricardo Gomes na guitarra, Tiago Gomes na bateria e Eddie Steppleton no baixo, venderam milhões de discos, esgotaram salas em todo o planeta e foram reconhecidos pela indústria fonográfica.

Os quatro amigos que se conheceram por um divino acaso viveram mesmo uma realidade alternativa, um sonho invulgar que levou a que uma banda desconhecida em Portugal, que sobrevivia à conta de concertos de covers e trazia na bagagem um “álbum” manhoso, gravado no suspeito estúdio S&M Records, passando a ser uma das maiores referência rock do mundo pelas mãos de tubarões da música como Mike Morris, A&R da Aberdeen Records, ou o guru e manager Jimmy Duncan.

Tudo nasceu da teimosia de uns putos que frequentavam a lojas de discos “Woodstock”, propriedade de Lafitte, um filho do rock que tinha na música a sua razão de viver e cuja casa, que ficou conhecida como o “Dramático”, foi durante uns tempos solo sagrado para o quarteto. Dessa convivência, a banda, ainda como os hard-rockers The Deadly Machine ou Lazy Mayhem Orchestra, deu os primeiros passos e encarou uma realidade complicada onde a família e os amigos podem ser a solução ou o problema.

Quando o percurso da banda conheceu um inesperado ascendente, a tal oportunidade de sucesso que se assemelha a «um comboio que se passa uma vez na estação da vida», os Estados Unidos da América foram a base de um sucesso quase galáctico, também ele construído com alguns dos mais conhecidos ingredientes da receita rock & roll que possibilita um caminho traçado com prazeres proibidos como as drogas, o álcool, a megalomania e paranoia, e outros excessos que inclusive podem resultar da mais dura das faturas: a morte.

Mas quem eram, na verdade por trás da espessa cortina da fama, os elementos deste quarteto fantástico? É esse o maior desafio que João Valente passa para o domínio do leitor ainda que dê pistas para tal ao orientar a narrativa para territórios perto de um puzzle que mistura uma biografia (muito bem) ficcionada de quatro amigos com um exercício bibliográfico que se alimenta de factos reais, e outros testemunhos de gente verdadeira, que levam o leitor, à medida que se acumulam as páginas lidas, a assumir o todo como verdade dada a sua consistência.

Aliado a toda esta estrutura, que vai encantar não só os fãs do mundo da música mas também àqueles que gostam de um romance bem «esgalhado», João Valente tem ainda o discernimento de sugerir uma banda sonora paralela, essa realmente verídica, como também uma referência, esta no reino da boa ficção, aos discos editados pelos The Empire assim como as letras das suas canções e que fecham este livro em forma de perfeito acorde.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Linda Martini
"Sirumba"

Felizmente, não há aulas amanhã 


Os Linda Martini estão diferentes. Uma década depois de “Olhos de Mongol”, o caminho traçado pelo quarteto composto pelo André, a Cláudia, o Hélio e o Pedro (sem nunca esquecer o Sérgio) foi percorrido de forma sonora e liricamente consciente e em crescendo.

As raízes punk e pós-rock fundiram-se e deram origem a um som próprio que foi, paulatinamente, conquistado os nossos ouvidos. Se “Casa Ocupada” é um disco mais direto e cru, “Turbo Lento” traça ambientes com maior groove assumindo-se como um misto de fúria e paixão únicos, uma delícia sónica ao serviço de uma sagaz militância musical.

De degrau em degrau, numa escala ascendente, chegamos então a “Sirumba”. Gravado com outras condições, emocionais e de trabalho, o quarto disco dos Linda Martini resulta de uma maior dedicação a causa própria. Com um estúdio à sua disposição e com todos os membros da banda exclusivamente dedicados à arte de fazer música, estavam, finalmente, reunidas as tão desejadas condições.

E o resultado do trabalho que teve como casa o estúdio HAUS é um grande disco, uma excelente coleção de canções, fruto também de uma maior coesão, comunhão mesmo, entre a música e a voz, não sendo estéril que se grite em “Sirumba”, faixa que abre o álbum, «Faço gala, eu quero é ser cantor». Para trás, ficam os tempos de quem tinha aulas no dia seguinte…

Ao longo dos nove temas de “Sirumba”, sente-se também que houve mais atenção à evolução da própria música, à sua construção rítmica, e em determinados momentos agarram-se influências de outros quadrantes, principalmente em apontamentos mais “orientais” das guitarras (“Comer Por Dois”) ou tiques assumidamente tribais na bateria (“Dentes de Mentiroso”), aos quais a “dicotomia” Linda Martini/Paus não é, definitivamente, alheia. A presença, algo tímida, de uma secção de sopros em faixas como “Unicórnio de Sta. Engrácia” e “Farda Limpa” apontam também uma maior universalidade da linguagem de uma banda que teve tempo, e engenho, para ser mais.

Dessa amálgama criativa nasceram algumas das melhores canções (termo hoje utilizado com maior propriedade) da história da banda onda há mais espaço para uma sensual contenção e compromisso de implosão. “Bom Partido” é um desses exemplos, melancólicos. A voz entra, devagar, as guitarras disputam entre si acordes atmosféricos, a bateria e o baixo namoram delicadamente enquanto se divaga sobre o difícil ato de crescer, de ser adulto. A sensação repete-se em “O Dia Em Que A Música Morreu”, derradeiro suspiro do disco, um exercício deliciosamente sufocante que promove uma sensação de montanha-russa, entre crescendos e travagens, «andando em lume brando», que promovem um fascinante dialogo entre músicos e ouvinte. Uma pérola que navega em territórios muito semelhantes à tensa, e densa, “Dentes de Mentiroso”, canção que observa alguns dos minutos mais sónicos de “Sirumba”.

As mais orelhudas, e em registo radiofriendly, “Putos Bons” e “Unicórnio de Sta. Engrácia” valem-lhes o estatuto de primeiros singles e mostram um doce e irresistível swing, manobras que alargam o espetro do som dos Linda Martini a territórios muito próximos de uma acelerada pop particularmente interessante que reina sem dividir.

Correndo o risco, assumido, de cair no cliché de dizer que “Sirumba” é o disco mais maduro e seguro dos Linda Martini, essa é a sensação que fica depois de se devorar, quase sem tréguas, este conjunto de canções nascidas da cabeça do quarteto cuja emocional envolvência com as suas músicas nos leva a tratá-los por tu e a pedir que nos continuem a oferecer canções que fortaleçam os nós que afinal sabemos dar, mesmo que para tal tenhamos de esperar, anos, vidas inteiras que se renovam. Obrigado, rapazes.
 

Alinhamento:
1.Sirumba
2.Unicórnio De Sta. Engrácia
3.Preguiça
4.Putos Bons
5.Bom Partido
6.Farda Limpa
7.Comer Por Dois
8.Dentes De Mentiroso
9.O Dia Em Que A Música Morreu

Classificação: 9,5/10

Editora: Universal

In Palco Principal

“Vamos Comprar um Poeta”
de Afonso Cruz

Genial, a mais de 99%


E se vivêssemos numa sociedade em que tudo deveria dar lucro e o afeto e a moralidade se medem em percentagem e estar apaixonado, a mais de 75%, é um acontecimento sério? E se o materialismo controlasse a vida das pessoas? E se os nomes fossem substituídos por números e uma vírgula fosse sinal de estatuto? E se os alimentos fossem contados ao grama e uma metáfora fosse sinónimo de mentira? E se a poesia morresse? E se isto fosse um livro?

Então o resultado seria “Vamos Comprar Um Poeta” (Caminho, 2016) uma pequena história da autoria de Afonso Cruz sobre a importância da Poesia, da Criatividade e da Cultura na nossa existência e, simultaneamente, uma ode à beleza das ideias e dos sentimentos movidos ao mais puro sentido da amizade.

No centro da narrativa está uma menina de 12 anos que queria ter um artista como animal de estimação. A escolha, mais económica e asseada, caiu na figura de um poeta, um ser estranho que dá vida e cor às palavras, faz sonhar, fala uma linguagem impercetível e apela ao devaneio «inutilista» face ao determinismo da economia, do crescimento e da prosperidade.

Para desespero do chefe da família, o poeta trouxe para dentro da sua casa, um reino particular onde o principal mantra era a filosofia da «contenção e do apertar do cinto», a arte de libertar o pensamento, de exercitar a liberdade, de interrogar os dogmas, de abrir e estender a felicidade ao quotidiano, ousando mesmo sugerir um outro tipo de crescimento que não o económico e gerar a eternidade em valores sentidos no âmago humano.

Numa mordaz e assertiva critica ao impulsivo vício consumista puro e duro que gera apenas uma «felicidade momentânea», Afonso Cruz volta a um território que já havido explorado em, por exemplo, “Capital”, um álbum ilustrado que tinha no centro da “narrativa” a relação entre um menino e o seu porquinho-mealheiro que era alimentado com capital.

Entre tiradas inutilistas, lucrativas e situações «exponencialmente parvas», “Vamos Comprar um Poeta” reserva ainda espaço para “supérfluas” tiradas de poesia de gente como Walt Whitman, Herberto Hélder, Dylan Thomas, Robert Frost e Wallace Stevens.

Tida como uma obra para um universo mais juvenil, esta mais-valia em formato de bolso de Afonso Cruz volta a explorar um planeta criativo único e desarma mentes de todas as idades fazendo uso de um poder narrativo que eleva o literário capital nacional, sacode para longe o cenário de queda e aumenta os dividendos da crítica inteligente evitando, definitivamente, a falência do cogito.

In Rua de Baixo

terça-feira, 10 de maio de 2016

“Fogo Mortal”
de Nelson DeMille


Os números não enganam: mais de 100 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, um dos três autores mais lidos, posição cimeira nos bestsellers do New York Times. Estas proezas têm em comum o nome de Nelson DeMille, responsável por títulos como “O Jogo do Leão” ou “Força Divina”.

Aproveitando esse filão criativo chega-nos “Fogo Mortal” (Marcador, 2016), mais uma aventura do destemido John Corey, ex-detective de Homicídios da Polícia de Nova Iorque e, agora, agente da Brigada Federal Anti-terrorista. Desta vez, o leitor viaja até outubro de 2002, um ano após o 11 de setembro, numa altura em que os órgãos de comunicação norte-americanos dedicavam particular atenção ao Presidente Bush e à iminente invasão dos Estados Unidos da América ao Iraque.

Enquanto se vive um ambiente conturbado e a sede de vingança é por demais perceptível, o agente especial Harry Muller, também ele ex-detective do Departamento de Homicídios de Nova Iorque, é destacado para uma missão cujo objetivo é vigiar o Clube Custer Hill, uma sociedade secreta composta por alguns dos homens mais poderosos dos Estados Unidos da América e cujos planos incluem uma poderosa retaliação com o nome de código “Fogo Mortal”.

A meio da investigação, Muller é capturado e feito refém. No seio da organização acaba por conhecer Bain Madox, presidente e proprietário do Custer Hill Club – assim como da Global Oil Corporation -, tal como outros membros ilustres da sociedade norte-americana como Scott Landsdale, membro da CIA, Paul Dunn, que integra o conselho de segurança do Presidente, ou Edward Wolffer, Secretário da Defesa norte-americana.

Depois de um período de alguma apreensão, Muller começa a inteirar-se da dinâmica do grupo que se reúne no clube, constatando que os seus membros colocam a hipótese de existir uma ameaça nuclear em solo norte-americano. Sabe o grupo que, depois do colapso da União Soviética, vários territórios se armaram de bombas nucleares “portáteis” e o perigo ronda a cada instante.

A juntar a este terrível realidade, Muller toma também conhecimento de um protocolo nascido aquando da administração Reagan, de nome “Fogo Mortal”, que determina que qualquer resposta nuclear das forças norte-americanas pode ser decidido sem a autorização do Presidente – e que tem no mundo islâmico um dos mais prováveis alvos. Mas será toda esta estratégia uma forma de bluff? Desconfiados de todas as movimentações norte-americanas, os serviços de espionagem árabes tomam conhecimento de “Fogo Mortal” e reagem.

Ciente que qualquer domínio do mundo árabe pode significar o controlo da produção de petróleo, Madox e aliados sabem o poder que está em disputa. E nada melhor que provocar os extremistas islâmicos com ataques planeados em algumas áreas estratégicas. Os ecos do Vietname pairam nas memórias de alguns dos veteranos do Clube Custer Hill e a sede de vingança faz crescer a sede de violência.

Estão assim lançados os dados para mais uma explosiva aventura com John Corey no centro das atenções, com DeMille a construir um palco assustadoramente real – ainda que as doses de ficção, principalmente de aspecto geo-político, sejam generosas.

Fazendo uso dos habituais e crispados diálogos, DeMille consegue em “Fogo Mortal”, o livro, aumentar os níveis de sarcasmo de Corey, personagem que tem no restante elenco que o cerca companheiros ideais para a construção de uma narrativa repleta de sentido de acção e velocidade cinematográfica – ainda que com alguns apontamentos algo previsíveis, sem dúvida um dos (poucos) pontos fracos deste livro.

Outro dos trunfos de DeMille é a contextualização de uma sociedade ainda muito afectada pelos efeitos nefastos do 11 de setembro, principalmente entre as forças de segurança norte-americanas, que têm um decisivo papel em toda esta trama e tentam, à força, lamber feridas e cicatrizá-las definitivamente.

In Deusmelivro

“Um Postal de Detroit”
de João Ricardo Pedro

FAZ DE CONTA QUE É NOITE CERRADA NA NOSSA ALMA


Reviver a História, a vida ou a morte, pode ser uma amálgama de sentimentos antagónicos, principalmente se a vamos descobrindo, e reconstruindo, como se de um complicado puzzle emocional se tratasse. A verdade (sinta-se a liberdade de colocar a palavra entre aspas) está repleta de ecos de diferentes quadrantes, podendo o seu somatório não revelar o resultado, supostamente, esperado ou desejado.

É esse exercício da matemática da vida que João Ricardo Pedro, vencedor do Prémio Leya 2011 e autor de “O Teu Rosto Será o Último”, faz por via de “Um Postal de Detroit” (D. Quixote, 2016), romance cuja génese remete para um final de tarde quente de setembro de 1985, fatídico dia 11 (não, não é engano ou gralha) que marca na nossa memória o maior acidente ferroviário ocorrido em território português entre um Sud-Express com destino a Paris, repleto de emigrantes, e um Regional que seguia para Coimbra.

A falha, que se crê humana, deu lugar a um choque frontal em Alcafache, ponto da Linha da Beira entre Magualde e Nelas, e ceifou a vida a dezenas de pessoas (algumas fontes elevam a fasquia até às duas centenas ainda que não existam ainda hoje, trinta anos depois, um número oficial), algumas delas ainda sem a devida identificação.

No dia seguinte a esse trágico acidente, a mãe de Marta, a nossa heroína omnipresente, recebe um inesperado telefonema. Do outro lado da linha informam que a mochila da filha, estudante de Belas-Artes, apareceu nos destroços. Silvana, a empregada da casa e dona de um qualquer sexto, sétimo ou oitavo sentido, previa uma desgraça. João, no seu mundo de índios e cowboys no Oeste distante, assistia à cena.

Trinta anos mais tarde, agora no papel de esquizofrénico narrador, recordaria o miúdo sensível e devoto a uma irmã que desapareceu deixando apenas como rasto alguns cadernos de desenhos que misturavam vidas, realidades e efabulações mas que votavam ao esquecimento a sua vida. Será que para Marta, o seu irmão não existia além da figura de um intrometido que lhe assaltava o quarto?

A partir dessas recordações desenhadas, o (nosso) narrador entra numa viagem sem regresso ou destino e tenta recriar os passos de Marta nos dias que antecederam à tragédia de Alcafache. Pelo caminho, tortuoso, misterioso e onírico, ficamos a conhecer uma miríade de personagens entre prostitutas vesgas, aspirantes a campeões de boxe, polícias, assassinos, médicos, especialistas em futebol (de clara devoção verde e branca), fiéis servidores de rostos semelhantes a personagens de romances clássicos, mestres estrábicos do bilhar às três tabelas ou técnicos bairristas especialistas em (des)arranjos eletrodomésticos.

De Horácio Joaquim Jiménez passando por Ângela, Ahab, Bayarmaa («que antes foi Amanda e que antes de ser Amanda foi Núria e que antes de ser Núria foi Zélia e que antes de ser Zélia foi Fernanda e antes de ser Fernanda já havia sido Nandinha»), Raul, Alcides, Franclim, Hipólito ou Sofia, todos têm um lugar certo, no momento certo, no contexto certo, seja ele um bairro alfacinha, uma prisão no litoral alentejano ou uma breve incursão a Paris ou Detroit.

Independentemente do grau de fragmentação de cada relato, memória ou protagonista, João Ricardo Pedro consegue com que o todo narrativo seja coeso, inteligente assim como quase, quase, divertido e dramático. A marginalidade das ora curtas ora longas frases de “Um Postal de Detroit”, assim como das imagens que recorrentemente nos assaltam, exorcizam e cauterizam a dor da morte, da ausência, das paixões não correspondidas.

Entre a loucura e o discernimento fugaz da realidade, ainda que moldada com base num acentuado negrume, João Ricardo Pedro cruza e apresenta a vida tal como ela é e oferece um livro luminoso, viciante, muito, mas muito bem escrito.

In Rua de Baixo

domingo, 1 de maio de 2016

The Lumineers
"Cleopatra"

Ecos na escuridão


Inicialmente apontados como parte de um movimento folk de características declaradamente pop que incluía bandas como os Mumford & Sons, os norte-americanos naturais de Denver, The Lumineers conseguiram, rapidamente, fazer-se notar muito por culpa de uma canção que teimou em invadir as rádios de todo o mundo.

Retirada do debutante álbum homónimo do quinteto liderado por Wesley Schultz e Jeremiah Fraites, “Ho Hey” tornou-se num hino açucarado que andou de boca em boca tornando-se num dos maiores sucessos de verão dos últimos anos.

Uma análise mais atenta a “The Lumineers”, disco editado em 2012, revelava algum desequilíbrio no alinhamento ainda que com alguns momentos muito bem conseguidos. Não sendo um grande álbum, deixava adivinhar boas perspetivas para o que seguiria e quem assistiu ao (bom) concerto que a banda deu na edição de 2014 do festival Nos Alive pode testemunhar isso mesmo.

Mergulhados nessa salutar expectativa que é receber mais notícias da banda, eis que chegam as esperadas boas novas. O disco chama-se “Cleopatra”, reúne 11 canções e o resultado final é uma muito boa surpresa, superando, com distinção, o para muitos fatídico título de muito aguardado segundo álbum.

Com um perfil mais recatado, recheado de narrativas delicadas, tocantes e assombrosos poemas que derivam em excelentes canções, “Cleopatra” mantém um ambiente folk mas ousa percorrer caminhos mais crus (mesmo indie), longe de qualquer gratificação imediata e sublinhando um delicioso caracter “shoegaze”.

A coesão entre as músicas - que nunca ultrapassam mais de três minutos - faz ressaltar um estado mais maturado, lírico e adulto dos The Lumineers, com uma produção que procura fazer as canções crescer sem sobressaltos, respirando à sua medida e sem muitos “adereços”.

Esse caracter intimista apenas encontra exceções em momentos como “Ophelia” ou “Cleopatra”, composições que poderão, eventualmente, ombrear com a agitação da já referida “Ho Hey”.

Todo o disco funciona como uma viagem serena. Desde “Sleep On the Floor”, faixa inaugural do álbum”, até “Patience”, último suspiro de “Cleopatra”, percebe-se a paixão de fazer música sem pressas, a vontade (e sapiência) de transformar simples melodias em humildes momentos de prazer que vão perdurar no tempo, pois falamos de um disco cuja estética merece ser apreciada com vagar refutando consumos imediatos.

Sinta-se o harmonioso e tímido crescendo de “Gun Song”, a declaração sentimental de “Angela”, o atrevido swing de “In the Light”, o maravilhoso lamento de “Gale Song” ou os exercícios dolentes e elétricos de “Long Way From Home” e “My Eyes”, a lembrar, no horizonte, os sons enamorados de Jeef Buckley, e devora-se cada acorde, cada respirar, cada silêncio.

Ao contrário do que muitos esperariam, os The Lumineers, felizmente, optaram por fazer um caminho menos óbvio, deliberado, recusando holofotes e refugiando-se na escuridão, ponderando cada palavra, investido claramente numa vertente mais estética e contida. O resultado é um disco que se revela maior a cada audição, que nos leva ao seu regresso, recusando qualquer laivo de agitação dispensável e encontra aliados de sucesso numa precursão sóbria e no casamento perfeito entre guitarra e piano.

Alinhamento:
1. Sleep on the Floor 2. Ophelia 3. Cleopatra 4. Gun Song 5. Angela 6. In the Light 7. Gale Song
8. Long Way from Home 9. Sick in the Head 10. My Eyes 11. Patience

Classificação: 9/10

Editora: Universal

Deolinda
"Outras Histórias"

Puro estado de graça


O crescimento de uma banda faz-se, tal como se de uma criança de tratasse, de forma segura, com cada passo a ser medido por unidades de avanço e recuo. Desse acidentado percurso, a infância é vencida por uma idade sem rede, que alguns chamam adolescência, para desaguar num oceano de certezas traduzido por fase adulta.

Tem sido esse o percurso da Deolinda. Se “Canção ao Lado” e “Dois Selos e um Carimbo” foram uma espécie de tiro de partida para o quarteto composto por Ana Bacalhau, Pedro da Silva Martins, Luís José Martins e Zé Pedro Leitão, “Mundo Pequenino”, paradoxalmente ou talvez não, fez o grupo crescer, afirmar a sua portugalidade em forma de canção e levar a Deolinda a experimentar novos territórios, sonoros e físicos, assumindo esse risco (ainda que controlado) de querer transpor fronteiras várias.

E é sem quaisquer sintomas de dores de crescimento que chegamos a “Outras Histórias” (que segundo a banda esteve para se chamar “Outra Desgraça”), um disco adulto com canções de perfil variado com diferentes roupagens mas sempre construídas à custa do que as mesmas pedem, desde cenários sussurrados a momentos de deleite disco(teca).

Tal como a banda referiu nas entrevistas de promoção do disco, “Outras Histórias” é «uma coleção de composições que se entranham», facilmente e sem se estranhar muito, e que proporcionou a exploração de uma série de novas linguagens que ousaram misturar a marginalidade de um dueto com Riot, dos Buraka Som Sistema (“A Velha e o DJ”), a parceria com Manuel Cruz, voz dos Ornatos Violeta (“Desavindos”) com a musicalidade da Orquestra Sinfonietta de Lisboa (“Mau Acordar” ou “Nunca é Tarde”) e a participação do Quarteto de Cordas (“Desavindos”).

O disco abre de forma tranquila com “Bons Dias”, um diálogo acústico entre a voz de Ana Bacalhau e cordas serenas de guitarras que também anunciam jornadas que se fazem e moldam vidas alheias. E bastam breves segundos, acordes, para os nossos ouvidos identificarem quem e o que os preenche. Depois, mais agitado, ainda que moldado por uma doce preguiça, “Manta para Dois” explora a paixão das relações (im)perfeitas e sublinha um sorriso omnipresente nas palavras cantadas, sentimento que transborda em momentos como “Pontos no Mundo”.

O primeiro single de “Outras Histórias”, Corzinha de Verão”, é um verdadeiro hino ao eterno azar nacional com a meteorologia, com ou sem aspas, e transforma uma canção simples num verdadeiro tratado sobre os limites da canção popular que, além de contar uma estória, reflete o perfil de um povo, algo semelhante ao que acontece noutro momento deste disco como o é “Berbicacho”, de certa forma heranças do extraordinário exercício ao ser português que é “A Problemática Colocação de Um Mastro”, presente em “Dois Selos e Um Carimbo”.

“Desavindos” e “Nunca é Tarde” são alguns dos momentos mais calmos e bonitos do disco e reúnem todos os predicados para tornar os dias longos de primavera, e verão, em infindáveis momentos de prazer em que o amanhã é encarado com divina esperança e a mania tão portuguesa de procrastinar pode ser eleita como uma filosofia tão cara.

De ritmos mais vivos, com, por exemplo, cordas atrevidas, “A Avó da Maria” faz realçar o gosto tão popular das afinidades familiares enquanto “Bom Partido” pauta-se por um quebrante ambiente dançante, saudável rufar de tambor e pedidos aos santinhos, enquanto “A Velha e o DJ” faz-nos enrolar numa batida cheia de groove e que, por certo, vai fazer grande furor nas apresentações ao vivo da banda.

Independentemente de ritmos ou métricas, as canções de “Outras Histórias” fazem parte de um todo coeso, uno, e são sinónimo de um decisivo passo em frente na definitiva afirmação da Deolinda como um dos projetos musicais nacionais mais interessantes do novo milénio, em completo e merecido estado de graça, cuja matemática da sua já referida portugalidade equaciona registos simples de raiz tradicional e poesias completamente irresistíveis, fruto da inspiração de um dos maiores compositores da sua geração que é Pedro da Silva Martins e que tem o condão de tornar momentos como “Bote Furado” numa espécie de pranto revolucionário.

Alinhamento:
1. Bons Dias 2. Manta Para Dois 3. Mau Acordar 4. Corzinha De Verão 5. Bote Furado 6. Desavindos
7. Canção Aranha 8. A Avó Da Maria 9. Nunca É Tarde 10. A Velha E O DJ 11. Pontos No Mundo
12. Berbicacho 13. Bom Partido 14. As Canções Que Tu Farias 15. Dançar De Olhos Fechados

Classificação do Palco: 9/10

Editora: Universal

“Uma Questão Pessoal”
de Lee Child

Ajuste de contas com o passado


O lançamento deste título tem causado alguma celeuma junto dos fãs de Lee Child, pseudónimo do escritor britânico Jim Grant, que ficou conhecido no universo dos thrillers como o criador do personagem Jack Rachter, a figura central de “Uma Questão Pessoal” (Bertrand, 2016).

A controvérsia surgiu pois a narrativa difere um pouco dos restantes títulos com Rachter no epicentro, com a mesma a revelar-se menos dinâmica (algo que no nosso ponto de vista não prejudica a globalidade do livro), sendo que os cenários da trama se concentram maioritariamente no território europeu em vez do tradicional e exclusivo cenário norte-americano.

Tudo começa com um atentado ao presidente francês em Paris, aquando de uma reunião do G8. Na sequência deste acontecimento, Jack Rachter, ex-militar, é contratado pelo Departamento de Estado e pela CIA para descobrir o autor do disparo. Sabendo-se que a bala tinha o selo norte-americano as suspeitos crescem pois são poucos os snipers que conseguem um tiro limpo a mais de um quilómetro de distância.

No topo da curta lista de suspeitos está o dissidente John Kott, um norte-americano que está novamente em liberdade depois de passar 15 anos atrás das grades e que, em tempos, foi uma das “vítimas” da excecional capacidade profissional de Rachter.

Mas, desta vez, e para desagrado do próprio, Jack Rachter não está sozinha na caça ao homem. Por companhia tem a inexperiente Casey Nice, uma analista viciada em Zoloft, um poderoso antidepressivo.

Pelo caminho esta dupla vai enfrentar um raivoso exército de mafiosos e implacáveis sérvios e o sucesso de toda a operação depende exclusivamente deste improvável par. Enquanto se embrenha naquela que é uma das mais perigosas missões da sua vida, Rachter não consegue tirar do pensamento alguém que em tempos não conseguiu salvar. Mas agora tudo deve ser diferente e mais que procurar um assassino, o ex-militar quer ajustar contas com o passado e a salvar a honra é a sua maior arma.

A ação divide-se entre a paisagem rural do Arkansas e, principalmente, Paris e Londres. As manobras de Rachter e Nice vão conseguindo, a custo, debelar obstáculos e, no final da trama as surpresas, ou revelações, vão surpreender os mais acérrimos fãs de Child.

Ainda que não seja o melhor livro do autor britânico, “Uma Questão de Honra” é um livro eficiente, escrito na primeira pessoa, que navega através de uma complexa conspiração recheada por muitos e competentes personagens.

No plano global, a narrativa é bastante real e o foco na capacidade estratégica dos protagonistas, assim como a competência para Lee Child descrever ambientes, afasta qualquer fantasma de tédio ou o perigo de se cair numa filosofia tão querida aos filmes de ação made in Hollywood.

Rachter é, como habitualmente, o elemento mais bem construído da trama, principalmente devido a um perfil duro, descomprometido e pragmático mas também dono de um sentimento de humor assinalável e, uma surpresa ou talvez não, um nobre sentido cavalheiresco.

É certo que um certo “excesso” analítico das personagens não torne a ação tão fluida como alguns por certo gostariam mas esse “travão” não prejudica o resultado final do livro que é altamente recomendável para todos os seguidores de Child assim como fãs de thrillers.

In Rua de Baixo

“O Quinto Evangelho”
de Ian Caldwell

A abençoada arte de fazer um (grande) thriller


Nas derradeiras páginas deste livro, o autor, decide, e muito bem, fazer os devidos agradecimentos a quem o ajudou a transformar uma ideia cuja génese nos remete para uma década antes no romance que hoje aqui dedicamos atenção.

Entre sacerdotes, canonistas, professores ao precioso Google e arquivos do New York Times, muitos foram os contributos decisivos para que “O Quinto Evangelho” (Editorial Presença, 2016) fosse o sucesso que hoje se constata, tendo como principais condimentos consideráveis doses de mistério, política e um interessante balanço entre dogmas e ceticismos da fé.

A trama inicia quando Ugo Nogara, curador responsável de uma exposição de arte nos museus do Vaticano, descobre aquilo que se assemelha com um misterioso “quinto evangelho” que reforça a autenticidade do Sudário de Turim.

Quando Nogara é encontrado morto em Castel Gandolfo, entra em ação a polícia papal mas as suas buscas e investigação revelam-se infrutíferas e o crime fica por resolver. Indignado com a situação e decido a encontrar o(s) culpado(s), o padre ortodoxo grego Alex Andreou, grande amigo de Ugo, decide enveredar por uma busca por conta própria.

As maiores suspeitas caem na pessoa do padre Simon, irmão católico de Alex e colega de Nogara nos trabalhos do museu. Mas Alex está convencido que algo de muito sinistro se esconde por trás do trágico assassinato, que remete para um acontecimento que teve lugar no século XI e que colocou frente a frente ideais ortodoxos gregos e católicos romanos. Mas que acontecimento será esse que terá levado à morte de Nogara?

É isso que Alex, que assume o papel de narrador e protagonista de “O Quinto Evangelho”, nos vai mostrar ao longo de quase 500 páginas e que terá como um dos grandes fios condutores as diferenças religiosas entre o catolicismo romano e o ortodoxo grego, uma luta de memórias que vai trazer também a palco o pai de Alex e Simon, também ele um sacerdote cujo grande o sonho de vida era aproximar as duas referidas visões religiosas e que teve no Santo Sudário uma das maiores questões fraturantes que tem impedido a pretendida união.

À medida que avançamos na narrativa, o mistério adensa-se e o thriller cresce, revela-se mais cerebral e a ação presente assume-se natural e, de certa forma, um elo agregador do todo criado por Ian Caldwell. O assassinato está sempre presente e o contingente de personagens envoltas de mundos sombrios é constante, principalmente no caso de quem usa batina, mas, acima de tudo, é a intriga política que mais faz crescer o suspense global.

O livro oferece também muitos, e interessantes, debates teológicos, em particular aqueles fundados nos evangelhos do Novo Testamento (com alusões a Mateus, Marcos, Lucas e João) e da intrínseca, e suposta, inconsistência destes.

Cadwell tenta condensar esses quatro “episódios” num único documento escrito por alguém que viveu décadas depois da morte de Jesus, sob a forma do referido “quinto evangelho”. Essa sugestão trespassa para Alex que desconfia que o evangelho de João é diferente dos três restantes, nomeadamente em termos históricos e teológicos. E essa é a principal mensagem, sob a forma de revelação, que o “quinto evangelho” traz à tona, algo que poderá ser a ferramenta que falta para a concretização do sonho de pai de Alex e Simon, assim como um importante passo para provar a autenticidade do Sudário de Turim.

Igualmente interessante é a própria história pessoal de Alex, incluindo a dissolução do seu casamento (a sua esposa desapareceu logo após o nascimento de seu filho) e luta para manter a sua identidade grega, enquanto prossegue uma carreira na Igreja Católica Romana.

Pai de Pedro, um menino de cinco anos, Alex revela-se um personagem riquíssimo, extravasando o papel de investigador, sendo um excelente pai, irmão e amigo, e a sua voz é um dos ingredientes decisivos para a complexidade e estrutura do livro.

Em termos globais, é impossível não sentir o fantasma de Dan Brown mas, à semelhança, por exemplo, das obras construídas por José Rodrigues dos Santos, a investigação subjacente à narrativa surge como uma mais-valia à globalidade de um livro que tem a sapiência de fugir à tendência mainstream de colocar a ação como fator decisivo, tornando-se assim mais literário.

Acima de tudo, “O Quinto Evangelho” é um desafio que requer muita concentração, que devora e se deixa devorar, e tem no seu âmago uma estória muito bem estruturada e alicerçada num personagem de excelência que merece, a breve trecho, sequelas.

In Rua de Baixo