domingo, 1 de maio de 2016

Deolinda
"Outras Histórias"

Puro estado de graça


O crescimento de uma banda faz-se, tal como se de uma criança de tratasse, de forma segura, com cada passo a ser medido por unidades de avanço e recuo. Desse acidentado percurso, a infância é vencida por uma idade sem rede, que alguns chamam adolescência, para desaguar num oceano de certezas traduzido por fase adulta.

Tem sido esse o percurso da Deolinda. Se “Canção ao Lado” e “Dois Selos e um Carimbo” foram uma espécie de tiro de partida para o quarteto composto por Ana Bacalhau, Pedro da Silva Martins, Luís José Martins e Zé Pedro Leitão, “Mundo Pequenino”, paradoxalmente ou talvez não, fez o grupo crescer, afirmar a sua portugalidade em forma de canção e levar a Deolinda a experimentar novos territórios, sonoros e físicos, assumindo esse risco (ainda que controlado) de querer transpor fronteiras várias.

E é sem quaisquer sintomas de dores de crescimento que chegamos a “Outras Histórias” (que segundo a banda esteve para se chamar “Outra Desgraça”), um disco adulto com canções de perfil variado com diferentes roupagens mas sempre construídas à custa do que as mesmas pedem, desde cenários sussurrados a momentos de deleite disco(teca).

Tal como a banda referiu nas entrevistas de promoção do disco, “Outras Histórias” é «uma coleção de composições que se entranham», facilmente e sem se estranhar muito, e que proporcionou a exploração de uma série de novas linguagens que ousaram misturar a marginalidade de um dueto com Riot, dos Buraka Som Sistema (“A Velha e o DJ”), a parceria com Manuel Cruz, voz dos Ornatos Violeta (“Desavindos”) com a musicalidade da Orquestra Sinfonietta de Lisboa (“Mau Acordar” ou “Nunca é Tarde”) e a participação do Quarteto de Cordas (“Desavindos”).

O disco abre de forma tranquila com “Bons Dias”, um diálogo acústico entre a voz de Ana Bacalhau e cordas serenas de guitarras que também anunciam jornadas que se fazem e moldam vidas alheias. E bastam breves segundos, acordes, para os nossos ouvidos identificarem quem e o que os preenche. Depois, mais agitado, ainda que moldado por uma doce preguiça, “Manta para Dois” explora a paixão das relações (im)perfeitas e sublinha um sorriso omnipresente nas palavras cantadas, sentimento que transborda em momentos como “Pontos no Mundo”.

O primeiro single de “Outras Histórias”, Corzinha de Verão”, é um verdadeiro hino ao eterno azar nacional com a meteorologia, com ou sem aspas, e transforma uma canção simples num verdadeiro tratado sobre os limites da canção popular que, além de contar uma estória, reflete o perfil de um povo, algo semelhante ao que acontece noutro momento deste disco como o é “Berbicacho”, de certa forma heranças do extraordinário exercício ao ser português que é “A Problemática Colocação de Um Mastro”, presente em “Dois Selos e Um Carimbo”.

“Desavindos” e “Nunca é Tarde” são alguns dos momentos mais calmos e bonitos do disco e reúnem todos os predicados para tornar os dias longos de primavera, e verão, em infindáveis momentos de prazer em que o amanhã é encarado com divina esperança e a mania tão portuguesa de procrastinar pode ser eleita como uma filosofia tão cara.

De ritmos mais vivos, com, por exemplo, cordas atrevidas, “A Avó da Maria” faz realçar o gosto tão popular das afinidades familiares enquanto “Bom Partido” pauta-se por um quebrante ambiente dançante, saudável rufar de tambor e pedidos aos santinhos, enquanto “A Velha e o DJ” faz-nos enrolar numa batida cheia de groove e que, por certo, vai fazer grande furor nas apresentações ao vivo da banda.

Independentemente de ritmos ou métricas, as canções de “Outras Histórias” fazem parte de um todo coeso, uno, e são sinónimo de um decisivo passo em frente na definitiva afirmação da Deolinda como um dos projetos musicais nacionais mais interessantes do novo milénio, em completo e merecido estado de graça, cuja matemática da sua já referida portugalidade equaciona registos simples de raiz tradicional e poesias completamente irresistíveis, fruto da inspiração de um dos maiores compositores da sua geração que é Pedro da Silva Martins e que tem o condão de tornar momentos como “Bote Furado” numa espécie de pranto revolucionário.

Alinhamento:
1. Bons Dias 2. Manta Para Dois 3. Mau Acordar 4. Corzinha De Verão 5. Bote Furado 6. Desavindos
7. Canção Aranha 8. A Avó Da Maria 9. Nunca É Tarde 10. A Velha E O DJ 11. Pontos No Mundo
12. Berbicacho 13. Bom Partido 14. As Canções Que Tu Farias 15. Dançar De Olhos Fechados

Classificação do Palco: 9/10

Editora: Universal

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