domingo, 24 de agosto de 2014

“Histórias de Roma”
de Enric González

Deambulações pela Cidade Eterna 



Catalão de gema, Enric González tem na escrita uma das suas maiores armas de sobrevivência. Foi jornalista quase durante duas décadas e enquanto correspondente do “El País” conheceu algumas das mais emblemáticas capitais da Europa.

Entre alguns dos acontecimentos que González teve a honra de relatar destacam-se o conflito do Golfo, as atrocidades genocidas do Ruanda ou as experiências nucleares no Atol de Mururoa.

As suas reportagens correram mundo e a qualidade das mesmas valeu-lhe reconhecimentos como o Prémio Cirilo Rodríguez, como melhor correspondente da imprensa espanhola, e o Prémio Cidade de Barcelona de Jornalismo.

Hoje, colunista do diário “El Mundo”, González consegue repartir a sua carreia enquanto homem das letras entre o jornalismo e o formato livro de crónicas de costumes e “guias citadinos”.

Depois de “Histórias de Londres”, publicado em 2012, chega-nos agora “Histórias de Roma” (Tinta da China, 2014), um fantástico livro que nos traz a magia da Cidade Eterna onde o tempo teima em permanecer muito lento e o passado é uma presença constante.

Tal como em “Histórias de Londres”, González consegue captar os tiques e pequenos segredos da capital italiana e encontra até algumas similaridades entre as referidas urbes sendo a loucura pelo futebol a maior das mesmas.

Mas Roma é especial. É caótica e melancólica. Tem um perfil secular que ganha luz com a companhia do Mediterrâneo. É uma cidade onde abundam os lugares e momentos envoltos de uma magia única.

Através deste livro captamos sensações ímpares de Roma assim como maravilhosas estórias, personagens, momentos e peculiaridades locais. Com uma paixão desmedida e absolutamente deliciosa, González relata-nos as suas aventuras na cidade eterna e mistura a mesma com apontamentos que envolvem gatos, pinturas de Caravaggio, a casa e campa do poeta Keats, a melhor pizzaria local, o sítio que serve o melhor café do planeta, Alberto Sordi, o corpo de Aldo Moro, as aventuras de um marques perverso, uma encomenda que corre meio mundo graças a um erro disparatado dos correios locais, os Papas, Berlusconi, uma igreja que ninguém quer que seja local do seu matrimónio, as conspirações, o futebol, claro, as barbearias, os santos e alguns milagres, com ou sem aspas, e muito, muito mais.

Tudo, ou quase, que existe sobre Roma e a sua história está nas páginas de “Histórias de Roma”, uma espécie de guia turístico descaradamente irónico, bem-disposto, cativante e muito bem escrito.
As cidades são muito mais que simples paisagens que servem como imagens dos bilhetes-postais. São espaços vivos, carregados de acontecimentos, segredos e maravilhas que se escondem atrás dos mais simples cantinhos.

Depois de Londres, González mostra-nos o outro lado de Roma e a vontade de apanhar o próximo avião para a cidade aumenta a cada página lida, devorada. Enquanto não o podemos fazer, “Histórias de Roma” é um excelente “genérico”.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

“As Leis da Fronteira”
de Javier Cercas

Hoje por ti, amanhã por mim



Catalunha, finais dos anos 1970. A Espanha inicia o processo democrático ainda com as feridas abertas pelo Franquismo bastante presentes. No centro da narrativa está Zarco, um conhecido delinquente adolescente que se tornaria numa das maiores figuras mediáticas de um país em transição.

A acção decorre em Girona, uma cidade repleta de charnegos (emigrantes que chegavam à Catalunha) e que sente a liberdade ainda como um vento novo que sopra a esperança sobre todos. É nesse cenário que o jovem Ignacio Canãs, aos 16 anos, sofre na pele as vicissitudes provocadas pelas sucessivas humilhações que têm no charnego Batista, um novo colega de escola, o maior responsável.

Na incessante procura de fugir a tal destino, Canãs encontra um porto de abrigo no salão de jogos Vilaró que tem como responsável o senhor Tomàs. E é ai que Ignacio conhece Zarco e Tere, uma espécie de Bonnie and Clyde versão teen, oriundos dos subúrbios do Bairro Chinês.

Paulatinamente, Igancio, que passa a responder pelo nome de guerra de Gafitas (caixa-de-óculos), começa a integrar as atividades do gangue de Zarco exteriorizando dessa forma a rebeldia acumulada por uma vida castrada de sentido.

Mas entre Canãs e a pandilha de Zarco existem diferenças, fronteiras. Se os jovens rufias que vulgarmente frequentam o bar La Font nada têm a perder, Gafitas encontra-se no outro lado de barricada sociocultural.
Já devidamente por dentro das tramoias do gangue e decididamente atraído pela bela Tere, Igancio Canãs sente-se livre, é um homem novo, ainda que essas mudanças coloquem em causa tudo o que viveu até esse dia, inclusivamente a sua relação familiar.

Mas, quase de uma forma natural, quando um assalto a um banco corre da pior maneira possível, Zarco, Gafitas e outros membros da quadrilha são apanhados pela justiça. No ar ficou um sentimento de traição. Ainda que com destinos díspares, os personagens principais desta aventura sentem a vida marcada por acções que desafiavam a justiça e acima de tudo a liberdade recentemente adquirida depois de décadas de ditadura.

Dividido em duas partes, “As Leis da Fronteira” (Assírio & Alvim, 2014) é um romance que traz à tona questões como a pertença a um grupo e a segurança e a estabilidade social que tal pode significar em termos emocionais que no caso de Canãs é sinónimo de um afastar para longe o queixume indesejável de um estatuto solitário e sofredor.

Javier Cercas, um dos mais emblemáticos escritores da sua geração e que já arrecadou galardões como o Prémio Nacional de Literatura, o The Independent Foreign Fiction ou o Prémio Internacional do Salão do Livro de Turim, consegue explorar de forma inteligente a questão da violência na adolescência revestida de uma crueldade típica que se revela numa espécie de cunhagem pessoal, critica e descritiva do “outro” assim como a força que os media possuem ao transformar uma pessoa como Zarco em um troféu ideológico da sociedade pós-franquista.

Entre pares, ainda que de condições sociais distintas, Zarco e Gafitas reclamam dívidas de gratidão como uma forma de veículos chantagistas, nem que para tal seja necessário passar mais de 30 anos, altura em que um escritor consulta os personagens principais de uma estória bizarra de forma a conseguir apresentar o puzzle da vida do adolescente que se transformou no paradigma do delinquente.

Para tal, o autor de livros como “Anatomia de um Instante” serve-se de um discurso que vagueia entre a narrativa direta e a metáfora. Se, por um lado, a fronteira pode ser a condição social dos personagens, por outro pode ser a linha que separa a marginalidade da “normalidade”. Em determinadas fases deste romance, essa fronteira pode mesmo assumir as diferentes formas de interpretar um assunto ou, num patamar extremista, aquilo que separa Canãs de Gafitas.

Tomando como inspiração Juan José Moreno Cuenca, cuja alcunha era “El Vaquilla”, Cercas “transforma” Zarco – mais tarde Antonio Gamallo – no expoente do simbolismo romântico do delinquente que espelha as frustrações que resultaram da esperança que deriva de uma sociedade que diz adeus à ditadura e abraça a democracia, e que na ressaca de muitos anos de tirania se refugia nos heróis improváveis nados e criados por alguma comunicação social.

Cañas, Zarco, Tere e companhia, são personagens que traçam tangentes entre individuo e sociedade, entre a realidade e a ilusão social e “As Leis da Fronteira” é um acutilante livro que reflete uma história de paixões, enganos, traições e vinganças.

In Rua de Baixo

terça-feira, 5 de agosto de 2014

“O Gatilho”
de Tim Butcher



Quando ainda sentimos frescos os ecos da “celebração” do centenário da Primeira Grande Guerra, são muitos e bons os livros que nos chegam e, entre eles, destaca-se por exemplo “O Gatilho” (Bertrand Editora, 2014), um relato fantástico que leva-nos a fazer uma viagem no tempo através da pena do britânico Tim Butcher, responsável por obras como “Rio de Sangue” e “À Caça do Diabo”.

Tal como nos seus trabalhos jornalísticos – Butcher é autor de reportagens de guerra de excelência e esteve nos conflitos ocorridos na Bósnia, Kosovo, Iraque ou Líbano –, o atual correspondente do britânico Daily Telegraph em Jerusalém transforma “O Gatilho” num impressionante exercício de determinação, onde os factos apresentados sobressaem através de uma nova abordagem e impressionantes perspetivas.

Dividido em 12 capítulos, “O Gatilho” (cujo subtítulo remete o leitor “no rasto do assassino que levou o mundo para a guerra”) traça-nos o perfil de Gavrilo Princip, um jovem que, na manhã de 28 de julho de 1914, em Sarajevo, disparou sobre o arquiduque Francisco Fernando, na época herdeiro do Império Austro-Húngaro, sendo essa ação a génese de um ciclo de acontecimentos que derivariam na Primeira Guerra Mundial, conflito que ceifou a vida a mais de 15 milhões de pessoas num espaço de quatro anos.

Butcher consegue, de forma extraordinariamente competente e factual, relatar a vida de Gavrilo Princip, o seu trajeto político e os seus motivos através de uma visão inovadora. Princip, que tinha o sonho de viver num país independente, desencadeou um rol de acontecimentos que mudaram e moldaram o mundo até aos nossos dias.

“O Gatilho” contextualiza a conjetura que possibilitou a Primeira Grande Guerra através de uma apresentação narrativa envolta de episódios factuais, memórias e flashbacks, elementos que ganham credibilidade e pertinência graças ao profundo conhecimento que Butcher tem da região dos Balcãs e que resulta da sua experiência enquanto repórter, entre os anos 1990 e 2012.

Estamos perante uma obra que também marca uma geração que viu a década de 1990 emergida em conflitos que tinham a definição de fronteiras como a principal meta, nem que para isso fosse derramado sangue ou que a tortura se assumisse como uma ferramenta legitimada pelo fim em si mesmo. Através de um efeito causa-consequência, a mais recente obra de Tim Butcher traça uma “analogia” entre os passos de Gavrilo Princip e a Primeira Grande Guerra, fazendo também uma tangente aos mais recentes acontecimentos nos Balcãs. Para tal, Butcher serve-se de uma prosa cristalina e fluente que trespassa a sua paixão, pelo que escreve assentando na primazia quase “poética” das descrições.

A investigação que deu origem a “O Gatilho” impressiona pela documentação apresentada sobre Princip e os registos fotográficos que acompanham a obra tornam-na mais credível, completa e entusiasmante. Mas Butcher não se contenta com o papel de “narrador”. As considerações que faz sobre a natureza conceptual de temas tão delicados como o nacionalismo, bem como as suas consequências, fazem-nos refletir sobre uma influência política que resvala na atual conceção das cada vez mais frequentes mexidas no mapa mundial, bem como do surgimento de novas fronteiras, um dos mais importantes desafios que a humanidade atravessa e que resulta em perigosos estados de alerta.

In deusmelivro

domingo, 3 de agosto de 2014

Soul Sacrifice Delta
PS Vita

Submissão ou Liberdade



Em 2013, Soul Sacrifice estava imbuído de um espírito salvador face ao insucesso da PS Vita enquanto plataforma. Os responsáveis da Sony apostavam muito nas aventuras mágicas concebidas pelos técnicos da Marvelous AQ que levavam o jogador para cenários de ação idealizados pela dupla Shomikava/Inafune.

Um ano depois, com a Vita mais confortável no exigente mercado das consolas, Soul Sacrifice Delta surge como uma lufada de ar fresco em relação a um jogo que marcou a sua posição e arrastou muitos milhares de fãs a apostaram dezenas de horas ao serviço da fantasia de personagens como o cínico e irascível Librom, a errática Sortiara ou a encarnação do mal: Magusar.

Mas tal não quer dizer que estamos perante uma sequela. Aquilo que Soul Sacrifice Delta oferece é uma espécie de versão deluxe do jogo editado no ano passado e que se assumia também como um concorrente de peso face a Monster Hunter. É o regresso ao mundo sórdido da feitiçaria mas com muitas novidades sejam elas sinónimo de passos de mágica, novos combos, trajes, aliados e inimigos ou tarefas. Em troca, exige-se aplicação face a um gameplay mais rápido onde a experiência pode ser o fator que desequilibra a balança.

Logo nos primeiros instantes do jogo somos transportados por uma sensação de déjà vu. Magusar continua a fazer vitimas, a prender almas perdidas que têm no sarcasmo de Librom o eventual caminho para a salvação. A atmosfera gótica (excelente a banda sonora) continua muito atraente e é sob esse espetro que o nosso companheiro em forma de livro nos apresenta as opções.

O embrenhar das páginas de Librom revela crónicas e aventuras diversas, explora histórias passadas e transforma as mesmas, mediante a nossa vontade, em episódios revividos, em formas de um dramatismo narrativo que tem no modo Mad Chronicle um exemplo concreto.

Porque o que é bom é para ser repetido, é com todo o prazer que reavivamos memórias e deixamos que as Phantom Quests nos levem para o campo de batalha para defrontar goblins, orcs e muitas outras criaturas, algumas delas verdadeiras surpresas e sinónimo de simbiose face a outros quadrantes da fantasia.

Para aqueles que ainda não estão familiarizados com o gameplay de Soul Sacrifice, é importante entender que estamos perante um jogo em que a ação se desenrola em particulares mundos em forma de arena finita mas que na versão Delta evoluíram face a uma por vezes pouco entusiasmante repetição no jogo-mãe. Tal acontece porque os inimigos cresceram de forma exponencial, de forma tão vigorosa que a sensação de pesadelo extravasa universos e alguns dos mais poderosos e interessantes assumem a forma de uma transcendente amálgama entre personagens que se cruzam entre a Branca de Neve e o Capuchinho Vermelho ainda que metamorfoseados em terríveis monstros. Definitivamente, os “três porquinhos” de Soul Sacrifice Delta não são recomendáveis…

Em termos de sistema de luta na arena de combate, Soul Sacrifice Delta está também diferente. A intensidade mantém-se mas os “ataques” perderam um pouco de poder, o que leva a repensar estratégias. Aliado a tal foram também pensadas novas ferramentas que quando adquiridas se revelam essenciais em batalhas futuras. A brutalidade cedeu algum espaço ao plano tático, termo pertinente face à conjuntura futeboleira dos dias de hoje.

Felizmente, Soul Sacrifice Delta superou-se. Continuamos a salvar ou sacrificar almas, com o auxílio dos comandos “L” e “R”, a coleção de “lacrimas” é recomendável e perante a morte na arena podemos optar pelo sacrifício, morte ou salvação. Mas, e tal tanto serve de alento para novos jogadores ou “veteranos”, há mais. O contexto narrativo revela novas aventuras e como novidades maiores estão três novas realidades: “Sanctuary”, “Avalon” e “Grim”. Se no primeiro caso o objetivo é salvar todas as nossas conquistas, “Avalon” é a sua antítese e o sacrifício é a palavra de ordem. Já “Grim” é um misto das duas. Independentemente do objetivo final, acreditem, o nosso personagem vai absorver dados e valores de cada um desses “estádios”.

Recomenda-se vivamente também diversas alianças que possibilitam recompensas em forma de pontos para o nosso feiticeiro enquanto assumindo o papel de “archfiend”. Esses bónus podem ser descarregados através do PSN. Semanalmente, são declarados grupos vencedores espalhados pelo globo que vão desbloquear feitiços e prémios. Outra das vantagens deste modo de jogo é a sua não-exclusividade face a uma qualquer horda o que possibilita ao jogador tentar a sua sorte de acordo com os grupos que mais garantias lhe oferecem de acordo com as suas pretensões momentâneas.

Outra das grandes novidades de Soul Sacrifice Delta é Alice Eternal Maze, um modo de jogo que permite um combate eterno e que vai testar a paciência e a capacidade de sofrimento de cada jogador. Aqui não há regras, apenas objetivos assim como um personagem novo: Bazaar Ledger, um livro que serve de ponte entre fações e que, quando bem utilizado, oferece items raros e muito pertinentes. Para além disso, Bazaar permite alterar a aparência dos feiticeiros, algo que também já era possível com Librom.

No que toca à componente gráfica, existem algumas melhorias pontuais mas o que mais se destaca são as novidades narrativas e em termos de personagens. O ambiente continua muito atraente e mantém uma atmosfera decadente e gótica que resvala para ecos fantasmagóricos onde a fluidez dos movimentos dos personagens se encaixa na perfeição. O que, mais uma vez, peca por escasso é a interatividade face às potencialidades da VIta cujos ecrãs frontal e traseiro são muito pouco requisitados.

Ainda que estejamos perante um jogo que devido à sua “monotonia” deva ser consumido em doses moderadas, Soul Sacrifice Delta é uma aposta ganha e é um dos maiores expoentes no que toca a jogos onde o negrume e a ação são palavras de ordem. A PS Vita respira saúde e crescem os jogos que fidelizam os seus seguidores. Afinal, alguns sacríficos valem a pena.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Imperatriz Viúva
de Juan Chang

A Revolução no Feminino



A história da China é um intrincado puzzle que nos seus tempos ancestrais tinha na figura omnipresente e omnipotente do Imperador, um cruzamento entre o Homem e um ser divino. O povo, completamente subjugado perante tal colossal força, enfrentava a vida como uma consequência das filosofias, politicas, desejos e caprichos do seu Senhor.

Cixi, uma das mulheres mais fortes da história chinesa, foi uma dessas marcantes personagens e ficou conhecida com a “Imperatriz Viúva”. O seu governo durou décadas e fez a difícil transição entre a era medieval e os tempos modernos. Viveu entre 1835 e 1908 e subiu na hierarquia imperial chinesa de forma meteórica depois de chegar ao convívio do Imperador como uma concubina incluída nos níveis inferiores.

Sob a forma de um fascinante documento bibliográfico, Juan Chang, a conhecida autora de livros como “Cisnes Selvagens”, transforma “A Imperatriz Viúva – Cixi, A Concubina que Mudou a China” (Quetzal, 2014), num completíssimo e apaixonante perfil de uma mulher que ousou desafiar tradições, mitos e personalidades tendo como fim em si mesmo o progresso da colossal China, um país que chegou a deter cerca de um terço da população mundial.

Tal como já referimos, Cixi, chegou ao Império, na altura sob a influência do Imperador Xianfeng, o “Dragão Coxo”, como uma concubina dos níveis mais baixos que tinha como função a satisfação voraz da libido do Imperador assim como dos seus devaneios artísticos.

Ainda que às mulheres estivesse vedado qualquer tipo de argumentação política, Cixi, possuía uma assertiva e acutilante inteligência política que, mais tarde, seria aplicada no seio dos ministérios imperiais como também na família real.

Era urgente salvar a China do poderio ocidental que apresentava argumentos bélicos que infligiam copiosas derrotas à China que depois tornava-se num alvo fácil de manipulação politica face aos vencedores.Viviam-se tempos em que as portas da Cidade Proibida estavam escancaradas à “invasão” estrangeira.

Ao ver que o império enfrentava derrotas sucessivas, Cixi conseguiu descobrir e inventar argumentos que levantaram gradualmente a China em termos económicos e financeiros. A modernidade foi a sua grande arma.

Mas essa luta foi lenta e complicada. De forma competente e muito bem documentada, a prosa de Juan Chang reflecte a vida de Cixi desde os momentos em que deu à luz um filho do Imperador Xianfeng e como serviu de braço direito da imperatriz Zhen após a morte do “Dragão Coxo”. Xianfeng, deixou a China numa situação económica miserável depois da derrota na “Guerra do Ópio” que deu origem a acordos comerciais muito desvantajosos para os chineses.

A aliança e estratégia conjunta entre Cixi e Zhen permitiram uma visão mais abrangente da economia caseira e fora de portas da China. Com uma luta permanente com os conselheiros do Império, Cixi viu a sua influência crescer internamente algo que ganhou ainda mais força com o afastamento dos centros de decisão por parte da antiga esposa de Xianfeng.

Progressivamente, a China começou a implantar alguns tiques repletos de um conceito de modernidade com particular destaque para a construção de vias de comunicação como as linhas ferroviárias ou na implementação da eletricidade ou na introdução de instrumentos como o telégrafo. Tais inovações eram consequências diretas da relação comercial entre Beijing e a Europa.

Enquanto o ópio destruía a China tornando o pais num território amorfo, Cixi tentava elevar a sua pátria. Mas o processo era complicado. Missionários estrangeiros “invadiam” as fronteiras do país, os motins destruíam símbolos como o Palácio de Verão, o Japão alongava os seus tentáculos. A vida dos mais de 400 mil milhões de chineses dependia cada vez mais da capacidade diplomática de Cixi.

Ao longo das páginas deste verdadeiro compêndio de história, Chang mostra os dois lados de Cixi, da sua política e vida. A “Imperatriz Viúva” não teve um percurso exemplar e foi obrigada a regressar por duas vezes ao “ativo” devido à desastrosa política do seu filho que teimosamente repetia os erros do seu progenitor.

Cada linha, frase ou página desta biografia – dividida em seis partes – relatam de forma exemplar a verdadeira história da China entre 1835 e 1912. O trabalho de pesquisa de Chang é a todos os níveis irrepreensível, fascinante e fidedigno, predicados que apenas se encontram em projetos cuja dedicação e amor sãos os seus maiores alicerces.

Este estudo revela e caracteriza as fragilidades e forças de uma sociedade política expondo momentos de inacreditável fraqueza ou tenacidade. Cada decisão de Cixi era sinónimo de revolução e ao leitor é possível viver um dos percursos mais interessantes da história mundial.

“A Imperatriz Viúva – Cixi a Concubina que Mudou a China” não fecha os olhos à violência, à tragédia, aos prazeres, derrotas e conquistas de um país que lutou para conseguir um futuro mas que não esquece que para tal viveu sobre políticas que tinham em punições como a “morte por mil golpes” uma questão de justiça ou uma cultura que obrigava a deformações físicas como a tradição dos pés enfaixados.

In Rua de Baixo