quarta-feira, 16 de julho de 2014

“Os Regressados”
de Jason Mott



Muitos livros nascem na sequência de exercícios oníricos ou como o resultado de experiências que marcam definitivamente o perfil do ser humano. Com “Os Regressados” (Porto Editora, 2014), estreia no campo do romance do norte-americano Jason Mott, aconteceu isso mesmo.

Depois do desaparecimento dos pais, Mott sentia um vazio face às lembranças que o assaltavam sobre as pessoas dos seus progenitores. A memória apenas trazia à tona pormenores sobre a sua mãe e pai. Até que um dia, algumas semanas depois do aniversário da morte da mãe, Mott teve um sonho: ao regressar de um normal dia de trabalho a sua mãe estava viva, esperava por si.

No espaço do devaneio do sono, Mott e a sua mãe falaram da vida deste último com uma frontalidade e franqueza apenas possível num universo onírico. A experiência marcou o autor nascido na Carolina do Norte que, rapidamente e depois de uma conversa com um amigo sobre o sucedido, entendeu que tinha de transpor – com as devidas aspas – a sua experiência para o papel. Assim nasceu “Os Regressados”, uma obra de ficção cujo sucesso levou a uma adaptação ao pequeno ecrã através da produtora Plan B, propriedade de Brad Pitt.

O enredo deste livro remete-nos para Arcadia, uma pequena cidade norte-americana que está, tal como o resto do mundo, a ser alvo de um “miraculoso” fenómeno. Sem qualquer razão aparente, os mortos estão a regressar.

Décadas depois da morte do pequeno Jacob, no dia que celebrava o seu oitavo aniversário, os Hargrave foram aprendendo a lidar com a perda. Mas, um dia, Jacob regressa, igual a quando desapareceu. O fenómeno é global e, um pouco por todo o planeta, milhões de entes queridos regressam para junto dos seus familiares sem qualquer causa aparente. Se para uns se trata de um milagre, para outros tal representa um ato contranatura, algo assustador.

A pacata Arcadia, num ápice, torna-se numa cidade assombrada. O caos alastra-se à medida que a comunidade coloca em causa os Regressados, que são considerados uma ameaça para os Vivos Verdadeiros. De forma a controlar esta invasão inexplicável, o governo cria o Comité dos Regressados.
Os septuagenários Harold e Lucille Hargrave recebem Jacob num misto de esperança e desconfiança e têm, na pessoa do Agente Martin Bellamy, um elo que pode, ou não, completar o puzzle intrincado que assume a figura de um menino de oito anos falecido há cinco décadas.

Através de uma narrativa envolvente e a roçar o ambiente vivido, por exemplo, na obra “A Cúpula”, de Stephen King, Jason Mott apresenta um argumento interessante que tem o condão de trazer à tona algumas paranoias que colocam em causa a própria condição humana.

A estranheza face ao desconhecido, a influência dos media, a impotência da religião, a preocupante sobrepopulação que assola alguns cantos do planeta e o poder omnipresente e omnipotente dos governos – aqui entendidos como um mero elemento de uma cadeia que legitima as decisões dos líderes na sequência democratizante do povo enquanto votante – estão, metaforicamente ou não, relatados em “Os Regressados” de uma forma pertinente.

Mott consegue um assertivo ritmo narrativo ao intercalar a estória com pormenores vividos noutros quadrantes ou na própria Arcadi,a que ajudam a entender emocionalmente o fenómeno a nível global. Ainda assim, por vezes nota-se que o enredo não flui de forma uniforme, e para tal muito contribui a abordagem superficial que o autor confere aos seus personagens principais. Ao contrário de autores mais “clássicos”, a descrição é relegada em detrimento da ação. Outra questão menos conseguida são as muitas pontas soltas que o livro deixa, o que remete para uma eventual sequela.

Autor de duas coletâneas de poesia e nomeado para o Pushcart Prize em 2009, Jason Mott estreia-se com um romance que nasceu de uma boa ideia, que assalta o modo ficcional de forma competente mas que, a espaços, apresenta alguma imaturidade lírica.

Ainda assim, não sendo uma obra-prima, “Os Regressados” é uma experiência vivamente aconselhada para quem gosta de uma trama que mistura a realidade com a ficção, e que traz à tona o melhor e o pior da natureza humana quando ameaçada pelo desconhecido.

In Deusmelivro

“AS LUZES DE SETEMBRO”
DE CARLOS RUIZ ZAFÓN

Na sombra do medo



Muitas vezes, o percurso de um escritor passa por diversos degraus de ascensão, algo inerente a uma evolução natural no que toca à metodologia da própria escrita como também à exploração e conceção contextual. O espanhol Carlos Ruiz Zafón não é exceção.

Foi em 2001 que o mundo se deixou encantar com “A Sombra do Vento”, o primeiro grande romance do escritor natural de Barcelona que foi um dos maiores sucessos literário das últimas décadas e ainda hoje subsistem na memória dos leitores ecos de encantamento de personagens como Daniel Sempere ou do maravilhoso “cemitério dos livros”.

Cerca de sete anos depois, surgiria “O Jogo do Anjo”, mais uma obra maior onde Zafón explorava, como poucos, ingredientes como a tragédia e o romance, com profundos toques góticos, onde o fascínio pelo universo literário era condição.

Mas antes destas duas obras, Zafón experimentou o género “juvenil” através da apelidada Trilogia da Neblina, um conjunto de três livros que contemplam “O Príncipe da Neblina”, “O Palácio da Meia-Noite” e o recentemente editado “As Luzes de Setembro” (Planeta, 2014).

Escrito entre 1994 e 1995, sob a edílica paisagem de Hollywood, “As Luzes de Setembro”, ainda que sem o propósito de assumir-se como uma sequela, segue o traço narrativo das duas primeiras aventuras mas assenta num espetro mais negro onde as referências ao sobrenatural, às “sombras” e ao gótico denotam claramente a evolução criativa do autor assim como servem de ponte para o que viria a acontecer com as tramas de “A Sombra do Vento” e “O Jogo do Anjo”.

Depois de percorrer a costa sul de Inglaterra em “O Príncipe da Neblina” e sentir o fogo nas ruas de Calcutá em “O Palácio da Meia-Noite”, “As Luzes de Setembro” leva-nos até à brisa marítima da Normandia.

Na década de 1930, sob a paisagem veraneante da Baía Azul, Simone e os filhos Irene e Dorian vêm surgir uma oportunidade que pode mudar as suas vidas e afastar a dor da perda de Armand Sauvelle, marido de Simone e recente e tragicamente desaparecido depois de sucumbir à doença.

O destino levou a família até Cravenmoore, a mansão do enigmático Lazarus Jann, um construtor de brinquedos que se exilou de forma a cuidar da sua amada que padece de uma estranha e terrível enfermidade. No local jazem memórias, seres mecânicos e sombras do passado.

Bem perto, na ilhota do farol, brilham estranhas luzes entre a neblina e no bosque um ser demoníaco oculta a sua presença. Enquanto o mistério cresce, Simone, Irene e Dorian abençoam a sua nova vida e estão longe de saber que estão prestes a passar pela maior provação das suas vidas.

Excelente na criação dos seus personagens, Zafón presenteia o leitor com inúmeras referências de natureza mista entre elementos de sonho e pesadelo. Simone é o espelho da mulher que luta pela vida dos seus filhos e tenta recuperar a alegria de viver. Já os irmãos Irene e Dorian fazem da esperança a sua forma de existência.

Se o pequeno Dorian deixa enfeitiçar-se pela magia dos brinquedos de Lazarus, Irene tem na paixão por Ismael, um jovem lobo-do-mar fã de Orson Wells, a sua mais recente descoberta. A par destes, criações como Alma Maltisse e Andreas Corelli (demoníaca personagem depois recuperada em “O Jogo do Anjo) tornam mais sólida a narrativa de um livro que não pretende ser, convém sublinhar, uma sequela mas sim o fim de uma saga que foi sinónimo de um refinar da escrita de Zafón.

Mais negro e “adulto” que os dois primeiros tomos da Trilogia da Neblina, “As Luzes de Setembro” mostram a veia cinematográfica do escritor nascido na cidade condal e serve de base para o que estaria para nascer na mente criativa de Zafón.

Sem dúvida o mais interessante livro da referida trilogia, “As Luzes de Setembro” é uma obra recomendadíssima a todos, independentemente da idade.

In Rua de Baixo

terça-feira, 15 de julho de 2014

Lana del Rey
"Ultraviolence"

Cara ou coroa?



A primeira frase de “Cruel World”, faixa que abre “Ultraviolence”, o trabalho mais recente da norte-americana Lana Del Rey, serve como um cartão-de-visita. De uma forma dolente, lasciva, Lana canta: “Share my body and my mind with You”. Mas será que é desta que vamos conhecer, realmente, Lana Del Rey? Estaremos perante um estado de genuína entrega ou a assistir a um bem desempenhado desempenho dramático de Lizzie Grant, graça com que foi batizada a autora de “Born to Die”?

A produção deste disco esteve a cargo de Dan Auerbach, ilustre membro dos The Black Keys, mas as diferenças sonoras em relação, por exemplo, a “Born to Die” não são muito significativas. Seguindo, em parte, a filosofia sonora do EP “Paradise”, “Ultraviolente” é atmosférico, orquestral, com a voz de Lana Del Rey a ir de encontro a um registo etéreo, que em determinados momentos lembra Tori Amos ou entra numa espiral surrealista que não destoaria do universo de um Chris Isaak - versão feminina.

Ao longo da sua carreia enquanto cantora, Lana Del Rey edificou e alimentou uma imagem com acentuado dramatismo, e a sua música segue esse desígnio, seja ele o de uma menina mimada ou de uma atrevida e trashy “Brooklyn Baby” - também título de uma canção de “Ultraviolence”.

Logo na primeira composição do disco, a já referida “Cruel World”, nota-se uma tentativa melódica que nos leva (ou pretende levar) para uma dimensão emocional profunda, que tanto se cola a uma teatralização ou a uma peça de semblante genuíno. Tentar identificar até que ponto Del Rey é “sincera” neste álbum é o desafio maior de “Ultraviolence”. À medida que a ouvimos, oscilamos entre a vulnerabilidade e a confiança inabalável. Ainda assim, esta bipolaridade é servida através de uma tensão uniforme. Tome-se como exemplo dessa atmosfera “Fucked My Way Up to the Top”, um exercício sussurrado,sinónimo de um sentimento de perda, mas que pode perfeitamente fazer parte de uma cena dramática, pois, nas palavra e voz de Del Rey, “this is my show”.

As faixas de “Ultraviolence” têm no seu cerne a sombra de relações perdidas, de amores que acabam em tristeza e vazio, e esta constância temática acaba por cair na excessiva repetição lírica. Lana é uma “Sad Girl” e o seu estado normal é “Prettt When You Cry”. Estamos longe do glamour de “Born to Die” e abraçamos a epifania da desgraça através de infidelidades, desgostos de amor e problemas relacionados com drogas. Numa epifania depressiva, “Ultraviolence” eleva o drama emocional até o mesmo se tornar, como já dissemos, (in)suportavelmente repetitivo. A determinada altura, leva-nos mesmo a perguntar onde está a influência de Auerbach? Serão, por exemplo, os ecos de guitarra, ao fundo, em faixas como “Money Power Glory”?

Aquilo que se nota é a sistemática tentativa de criar uma atmosfera dramática. É certo que estamos perante um disco com bonitas canções, mas que não nos enfeitiçam, que não deixam a sua marca, devido ao seu perfil matemático, calculado, esperado e, por isso, monótono.

Mas tal não quer dizer que “Ultraviolence” não apresente temas interessantes. “Ultraviolence”, a faixa, “West Coast” e “Old Money”, esta última servida à base de um piano delicioso, mostra que Lana Del Rey tem facilidade em transformar algumas canções em episódios memoráveis tal, como já provou anteriormente com “Video Games” ou “Born to Die”.

Ainda que não seja desta que vamos entender quem é, na realidade, Lana Del Rey - se uma personagem ou um clone de si mesma - “Ultraviolence” prova que a menina Lizz tem uma excelente voz e uma áurea extremamente pop, onde o glamour é procurado como um alicerce que segura um edifício. A provar isso mesmo está “The Other Woman”, uma versão de uma canção popularizada por gente como Nina Simone ou Jeff Buckley.

Ainda que não seja um grande disco, “Ultraviolence” tem o condão de mostrar outra faceta (ou a realidade) de Lana Del Rey, uma artista cujo sucesso é partilhado pelo tempo de antena que os media lhe dedicam, assim como pelo seu talento. Acima de tudo, estamos perante um disco recomendado para o final de um dia quente de verão, depois de uma jornada de banhos, sejam eles de sol ou de mar, como uma viagem a um universo onírico que mistura diferentes trópicos.

Alinhamento:

01.Cruel World
02.Ultraviolence
03.Shades of Cool
04.Brooklyn Babe
05.West Coast
06.Sad Girl
07.Pretty When You Cry
08.Money Power Glory
09.Fucked My Way Up to the Top
10.Old Money
11.The Other Woman

Classificação do Palco: 6,5

In Palco Principal

“Amores Secretos”
de Kate Morton

 
Formada em Arte Dramática e Literatura Inglesa, a australiana Kate Morton é uma das mais reconhecidas autoras contemporâneas e regista livros editados em cerca de quatro dezenas de países, com vendas que superam a incrível marca dos oito milhões de exemplares vendidos.

Depois do sucesso com livros como “O Segredo da Casa de Riverton” e “O Jardim dos Segredos”, Morton faz chegar às livrarias “Amores Secretos” (Suma de Letras, 2014), um romance que revela a história de uma família britânica que esconde um terrível segredo com mais de cinco décadas.

O início da trama leva-nos de regresso a 1961, quando Laurel Nicolson, hoje uma atriz de grande sucesso, tinha apenas 16 anos e testemunhou um acontecimento que iria mudar a sua vida. Apenas Laurel e Dorothy, sua mãe, sabem que realmente se passou nesse dia aziago, mas nunca falaram sobre tal. Entre as duas apoderou-se um cenário de tácito acordo mudo.

Como um fantasma que teima em persistir, esse acontecimento nunca abandonou a mente de Laurel, que revive ciclicamente esses momentos intensos sempre na tentativa de os entender. O que levou a mãe a matar um desconhecido? Quem seria o homem que apareceu em Greenacres, a propriedade da família, no dia de aniversário do seu irmão mais novo, perdendo a vida depois de apunhalado com a mítica faca da família Nicolson? O que esconde Dorothy?

Estas dúvidas subsistem aquando da comemoração dos noventa anos de Dorothy. Estamos em 2011 e as filhas da matriarca, agora a lidar com as agruras do Alzheimer, resolvem fazer uma memorável festa de aniversário em Greenacres. Laurel sente que está perante a derradeira oportunidade de ver esclarecido o mistério que lhe assombra a existência.

A tentativa de deslindar o mistério leva Laurel a regressar a 1941, quando Dorothy era apenas uma adolescente impulsiva e cheia de planos que iam contra as ideias que os pais tinham para si. Trabalhar como secretária numa fábrica de bicicletas era muito pouco para a “extraordinária” Dorothy.
Numa viagem entre presente e passado, Kate Morton leva o leitor a descobrir, pista a pista, peças de um complexo puzzle que vai revelando facetas de uma vida que, afinal, assume características surpreendentemente transcendentes. Para tal, a autora serve-se de uma imaginação fértil que invariavelmente desagua em desfechos de natureza romântica.

À medida que as páginas evoluem, a narrativa torna-se mais sólida e os divergentes acontecimentos do passado são sinónimo de episódios repletos de tragédia, traição, amores perdidos e segundas oportunidades. Os personagens são alvo de um interessante sublinhado ainda que, por vezes, sejam descritos através de tangentes que, de tão abrangentes e longas, podem ocasionalmente distrair o leitor da verdadeira ação, fazendo com que o mesmo a resgate no decorrer nas páginas seguintes – o que pode levar a momentâneas perdas do fio condutor de toda a estória.

Ainda que toda a trama se assuma coesa – e na qual se regista uma ligação intima entre os intervenientes -, a narrativa de Morton tende a resvalar para territórios já explorados em romances anteriores, ainda que tenham, indiscutivelmente, finais verdadeiramente reveladores e surpreendentes.

Outras das imagens de marca da autora são os relatos paralelos que, quando em excesso, revelam-se como cenas sem pertinência que parecem nascer de uma tentativa – maioritariamente frustrada – de criar ambiente.

Ainda que seja um romance bem delineado e vivamente aconselhado a quem gosta de uma narrativa que tem na memória e nos regressos ao passado poderosos aliados, “Amores Secretos” é demasiado extenso (cerca de 550 páginas) e, em alguns momentos, algo inconsequente.

In Deusmelivro

segunda-feira, 14 de julho de 2014

NOS Alive'14, dia 3

Festa multicolor 



Nem o pó nem o (muito) vento retiraram o brilhantismo dos muitos e bons concertos que tiveram lugar no derradeiro dia de NOS Alive, edição 2014, com os maiores aplausos a dividirem-se pelas atuações dos The Libertines, The War on Drugs, Daughter, Sohn, Paus e Cass McCombs. Houve música para todos os gostos e a emoção foi recorrente, num dia que agradou a gregos e troianos. Ainda agora acabou e já estamos com saudades…

You Can’t Win, Charlie Brown | 18h00, Palco NOS

É sempre muito simpático olhar para a lista das bandas a atuar no palco principal de um festival da envergadura do NOS Alive e notar a presença de nomes lusos. Neste último dia, esse privilégio coube aos You Can’t Win, Charlie Brown e aos The Black Mamba.

Formados em 2009, os alfacinhas You Can’t Win, Charlie Brown lograram conquistar um lugar muito especial na música nacional, através de um cruzamento de ideias conceptuais que fazem a ponte entre universos associados a artistas como Nick Drake, Bon Iver ou Sufjan Stevens.

No ano em que editam “Diffraction / Refraction”, deram um competente concerto no NOS Alive'14, dividindo o alinhamento entre o recente trabalho e algumas composições mais “antigas”. Com David Santos, aka Noiserv, como elemento (habitualmente) convidado e a ajudar nas teclas, xilofone e demais «tiques» musicais, os You Can’t Win, Charlie Brown ousaram combater o muito vento e pó que se sentia no Passeio Marítimo de Algés, arregaçando as mangas através de uma música bonita, aqui e além intimista, salpicada por tiques tropicalistas que trazem consigo um prazenteiro rastilho sónico.

Em cerca de 45 minutos (David Santos voltou a perguntar, em determinada altura do concerto, quando tempo ainda tinham para tocar, tal como fizera no espetáculo que deu na passada quinta feira, pois isto do horário é coisa para se respeitar) desfilaram temas como “Natural Habitat” e “After December”, "I’ve Been Lost” ou “Over the Sun / Under the Water”. Se, por vezes, a música intensa dos You Can’t Win, Charlie Brown apelou à reação mais calorosa do público, que não se inibiu de bater palmas a compasso, noutras, mais interiores e contemplativas, e em territórios mais acústicos ou planantes, serviu de banda sonora para uma viagem entre o onírico e o timidamente experimental.

A voz sóbria e quente de Afonso Cabral e o registo mais sonhador de David Santos assinaram uma atuação que, esperemos, se venha a tornar habitual em palcos de maiores dimensões.

Cass McCombs | 18h40, Palco Heineken

Quem teve o privilégio de assistir ao concerto que o prolífero musico norte-americano deu no teatro Maria Matos, sabe o que o autor de álbuns como os seminais “A” ou “Dropping the Writ”, ou o mais recente “Big Wheel and Others”, navega como poucos entre ritmos folk, rock e, ainda que em doses ligeiras, punk.

Com o Palco Heineken com uma interessante assistência, McCombs e os dois companheiros de luta sonora que se ocupam de bateria e baixo começaram o concerto com “Name Writen in Water”, um exercício extrovertido q.b. em que a guitarra de Cass capta a atenção pela sua competência, envolta de uma acolhedora simplicidade.

De óculos escuros, McCombs atacou de seguida “Big Wheel” e “Morning Star, ambos temas retirados do mais recente “Big Wheel and Others”. Se, no primeiro caso, os ouvidos deliciavam-se com um ritmo denso em espiral, com a voz a marcar a cadência sobre um certo minimalismo sonoro, “Morning Star” situa-se num espaço ocupado por um rock ensimesmado e um registo lo-fi que dá ao baixo o controlo maior da canção.

Depois, “Robin Egg Blue”, tocado depois de McCombs afinar a sua guitarra, gesto repetido amiúde, antecedeu a lindíssima “Dreams-Come-True-Girl”, uma canção que tem o condão de hipnotizar a audiência através de um romantismo naif que, ainda assim, permite curtos solos de sónica timidez.

Em territórios mais negros e densos está “Joe Murder”, tema que leva o público a abanar ligeiramente corpo e alma perante dedicada interpretação, que resulta numa grande salva de palmas. O calor continua com uma irrepreensível versão de “County Line”, uma das canções mais marcantes de Cass McCombs. Através de uma doce dolência, McCombs atinge a assistência com um emocionante falsete, que vence a barreira de um ritmo muito próximo do slow-core.

O final do concerto chegaria através da calorosa “That’s That”, composição que nos leva até “Dropping the Writ” e que revela uma faceta mais colorida de McCombs, que ganha coragem para oferecer um pertinente solo a uma assistência que, aos poucos, entrou na onda.

The Black Mamba | 19h15, Palco NOS

A seguir ao embalo dos You Can’t Win, Charlie Brown, continuámos em português no palco NOS. Acompanhados por duas vozes de apoio, sopros e um teclado, os The Black Mamba de Miguel Tatanka, Ciro Cruz e Miguel Casais trouxeram até Algés o seu Blues/ Funk vitaminado, num concerto competente, marcado pela aparição de Áurea, para cantar o novo e muito celebrado single “Wonder Why”.

Nem sempre com o melhor som, mas sempre com a entrega e o profissionalismo de quem já faz isto há muitos anos, os The Black Mamba deixaram uma boa impressão, saindo bem da ingrata missão de animar o pouco público que andava pelo Palco NOS nessa altura.

The War On Drugs | 19h50, Palco Heineken

Com um dos melhores discos de 2014 na bagagem, e ainda só a meio vai o ano, a curiosidade em torno da banda de Adam Granduciel era muita, e muitos foram aqueles que visitaram o palco Heineken para apreciar o concerto do antigo grupo de Kurt Vile.

Estar num concerto de The War on Drugs é uma miríade de experiências (não narcóticas, como o nome da banda poderia induzir em erro), mas é principalmente uma viagem por uma América inóspita, de mão dada com todo o esplendor da sua grandeza e vastidão. “An Ocean in Between the Waves” é o melhor início que se pode desejar para um concerto. Construída por camadas e gloriosos solos de guitarra, é a definição de uma América sonhadora, etérea, pejada de influências de Dylan e Springsteen, que ganham nova vida sobre o negrume espectral dos teclados e das letras desencantadas de Granduciel.

Sempre com canções bem construídas, que se revelam lentamente, e com espaço para embarcar em jams sónicas, preenchidas pelos seis músicos como quem completa um caderno de desenhos, músicas como “Red Eyes” ou “Under The Pressure” caem que nem uma luva neste final de tarde ventoso mas prazenteiro. Sem artíficios de palco para além da sua técnica e da sua música, os The War On Drugs deram um dos concertos do festival, provando que "Lost in The Dream" é um álbum enorme e Adam Granduciel uma figura a ter em conta para o futuro.

Sohn | 20h00, NOS Clubbing

Longe vão os tempos em que ao universo da mítica 4AD estavam associados nomes como os Pixies, Cocteau Twins ou Dead Can Dance. Os anos passaram e a editora britânica soube reinventar-se, e os ritmos mais “dançáveis” começaram a surgiu com frequência no seu catálogo.

O britânico Sohn é um dos exemplos de uma nova geração de músicos que, através de uma base sonora declaradamente eletrónica, trabalha a melodia como se de uma peça de filigrana se tratasse.
Com apenas um álbum - o muito recomendável “Tremors” -, Sohn deu um concerto emotivo no NOS Clubbing e marcou definitivamente quem absorveu a vibe, ora dançável ora mais contemplativa, da figura trajada de preto que concentrava as atenções do palco.

Na companhia de dois elementos munidos de uma particular parafernália eletrónica, assim como de um baixo, o único instrumento “orgânico” em palco, Sohn deu início ao (curto) concerto com “Ransom Notes, um exercício calmo onde o delicado recorte eletrónico se mistura com uma batida muito groove, com fragmentos que remetem para um oceano onde as ondas pautam por uma assinalável fragilidade.

Já “Warnings”, mais encorpado, apela descaradamente ao abanar do corpo. Sohn, no alto do seu “altar”, incita a isso mesmo através de movimentos ondulares realizados com os braços. Enquanto a música se entranha nas almas dos presentes, o sorriso do músico liberta-se. Muito bem recebida, “Tremors” remete-nos, ainda que timidamente, para o universo de Thom York. A matemática rítmica aplicada de Sohn ganha mais amplitude ao vivo e a certeza de tal pensamento surge com “Bloodflows”, tema que possui uma cadência desarmante e que, gradualmente, evolui de um registo calmo até momentos mais intensos, no seu final.

Enquanto alguns punham os olhos no céu, para observar manobras radicais de alguns aviões que sobrevoavam o Passeio Marítimo de Algés, Sohn atingia dimensões de supersónica emotividade com “Tempest”, que permitiu momentos à cappella emitidos pelas magníficas cordas vocais do britânico. “Artifice” colocou toda a gente a dançar através de um tricot eletrónico avassalador e, quando “Lights” ecoava, o espaço Clubbing era já uma verdadeira pista de dança.

O concerto terminaria com mais duas grandes interpretações. Se “Lessons” apresenta um ADN com espasmos e quebrantos sintéticos repletos de uma soul particular, “The Wheel” foi a cereja no topo de um delicioso bolo repleto de calorias eletrónicas. No final, emocionado, Sohn aplaudiu o público, mas era ele quem merecia o maior aplauso. Grande atuação.

Uma das mais emocionantes desta edição do NOS Alive 14.

Unknown Mortal Orchestra | 21h05, Palco Heineken

Depois de uma passagem incendiária por Paredes de Coura, no ano passado, esta visita dos Unknown Mortal Orchestra ao Passeio Marítimo de Algés não foi diferente, e deram um dos concertos do dia.

Viagens psicadélicas, rock abrasivo e um palco Heineken em polvorosa perante a banda de Ruban Nielsen.
Se em álbum a estética é lo-fi e a música vive de um ambiente retro/chill, ao vivo estes UMO são uma descarga eléctrica de rock de recorte clássico, que vive e respira livremente por entre a voz soul de Nielsen e os seus virtuosos solos a fazerem lembrar Omar-Rodriguez Lopez, dos saudados The Mars Volta.

“Swim and Sleep” , “So Good at Being in Trouble” e “From the Sun” foram pontos altos de um concerto que mostrou uma grande orquestra rock, suave e subtil, escondida timidamente atrás das melodias mais calmas, e verdadeiramente explosiva nos momentos de tensão e electricidade, com três grandes músicos com um sentido de estilo tão apurado quanto a sua técnica a assinalarem o concerto do último dia.

Foster The People | 22h25 , Palco NOS

Os Foster the People apareceram no verão de 2011, quando o single “Pumped Up Kicks” caiu que nem uma bomba vinda do céu e pôs um país inteiro a assobiar uma frase que respira verão por todos os poros.
Assobios à parte, a música dos Foster the People faz-se de melodias catchy, sintetizadores encorpados e um falsete que fica bem mais suportável ao vivo.

Sempre simpática e enérgica, a banda de Mark Foster foi agradecendo a oportunidade e desfilando canções Pop que, à semelhança do concerto, que está longe de ser mau, não chega para ficar na memória, e passa a sensação que chegaram a este Alive com dois anos de atraso. Ainda assim, o final com “ Pumped up Kicks” e “Don’t Stop ( Color on the Walls)” foi agradável, e deixou todos de sorriso aberto antes da chegada da trupe de Pete Doherty e companhia.

Paus | 22h30, Palco Heineken

Não é fácil definir a música dos Paus. Aquilo que Hélio Morais, Joaquim Albergaria, Fábio Jevelim e Makoto Yagtu fazem tem contornos especiais. Perto do final do concerto realizado no Palco Heineken, Albergaria, ao apresentar “Pontimola”, um dos temas incluídos no recente “Clarão”, dizia que a música dos Paus se assume como uma espécie de xamanismo, numa forma de exorcismo de maus espíritos.

A potência da música do quarteto extravasa definições e a sua definição apenas pode ser entendida no contexto da sua ambiência, que, por momentos, se embrenha em contextos trashy (grandes show de bateria por parte de Morais e Albergaria), sónicos e ou psicadélicos. Ouvir Paus é aceder a um universo caoticamente ordenado, com salpicos de eletrónica e camadas de rock puro e duro. A sinfonia resultante chega a lembrar alguns exercícios de John Zorn, ainda que a “distorção” não seja tão frequente.

Ao longo de pouco menos de 60 minutos, passeámos por “Paus” e, acima de tudo, por “Clarão”. O público reagiu com veementes aplausos, e faixas como “Bandeira Branca”, “Nó”, “Clarão”, “Corta Vazas” e “Pelo Pulso” assemelharam-se a um violento turbilhão que misturava sons fantasmagóricos, ritmos psicadélicos, camadas sintéticas, duelos de bateria e de baixo e guitarra.

A melodia, segundo os cânones musicais dos Paus, não tem medo de arriscar a visita a territórios diferentes, que se unem num único propósito: a transcendência melódica. No final do concerto, visivelmente cansados e contentes, os elementos da banda abandonam o palco sobre uma enorme ovação. Emocionado, Albergaria filma a assistência. O dever foi cumprido com distinção.

Phantogram | 23h00, Palco Clubbing

Em estreia absoluta aqui em Portugal, os Phantogram , duo electrónico (aqui em formato quarteto) de Greenwhich, New York, eram ilustres desconhecidos para grande parte do público deste terceiro e último dia de festival, mas o bom concerto de ontem, no palco Clubbing, é bem capaz de mudar isso.

Dona de um som muito próprio, que tem tanto de trip-hop como de rock sónico e emocional, a banda de Sarah Bartel e Josh Barton deu um óptimo concerto, enérgico e suado (como fez questão de referir a vocalista e teclista Sarah). Por entre melodias shoegaze e explosões rock dignas de uns Crystal Castles com guitarras, a banda foi atraindo curiosos e, a pouco e pouco, juntando um público generoso e atento, que, ora dançando, ora pulando, ia respondendo da forma que podia aos incitamentos da banda.
Uma surpresa agradável que fica a dever-nos uma visita num contexto diferente.

Daughter | 23.55, Palco Heineken

Finalizado o espetáculo dos Foster the People, eram centenas os que se dirigiam ao palco Heineken. A urgência levava alguns a correr. A razão era simples: os Daughter estavam prestes a começar um dos concertos mais aguardados deste NOS Alive'14.

A tenda que recebia a banda de Elena Tonra, Igor Haefeli e Remi Aguilella estava a abarrotar. Não cabia, acreditem, mais ninguém, e as vagas que iam surgindo derivavam da curiosidade que os decibéis oriundos da atuação dos The Libertines faziam crescer.

Com um considerável culto em Portugal, os próprios Daughter espantaram-se com a histeria coletiva que os acolheu aquando da sua entrada em palco. Donos de uma música ensimesmada, pouco dada a euforias e cuja emotividade se centra no delicioso jogo entre o silêncio e a harmonia melódica de características próximas do dream-pop e do shoe-gaze, é de certa forma contraditória a excitação desregrada que se vivia no palco Heineken. As músicas, desde os primeiros acordes, eram recebidas com gritos, palmas e sentimentos de euforia. Por vezes, a voz singela de Elena não conseguia ultrapassar o ambiente.

Com apenas dois EP’s e um longa duração (o lindíssimo “If You Leave”), a banda londrina deu um concerto convincente, onde momentos mais ambientais se aliavam a exercícios mais pop. “Still”, por exemplo, revelou uma elegância nas cordas, que ganhavam vida através do toque de Igor Haefeli, a remeter para os habituais devaneios melódicos dos Sigur Rós. Já em momentos como “Love”, era a bateria dolente que ecoava mais vigorosa, através de uma solenidade acompanhada pela dormência do baixo.

“Candles”, retirada do EP “His Young Heart”, é tocada com uma simplicidade desarmante e leva à loucura a assistência, que aproveita todas as ocasiões para gritar ou bater palmas - o que por vezes, de certa forma, “sufocava” a própria música. Mais acelerada foi a prestação de “Human”, que contrastou com o ritmo mais contido de “Smother”.

Quando Elena canta em temas como “Tomorrow” ou “Youth”, é impossível não sentir um desmesurado egoísmo face ao trabalho dos Daughter. Queremos aquela música só para nós, apenas para a nossa mente e ouvidos. Mas o tempo é de partilha e no palco Heineken celebra-se a vida, canta-se em coro, o ambiente é de pura apoteose.

O final do concerto deu-se com “Home” e mesmo a dificuldade de Elena em acertar nas notas não retirou a magia de um memorável espetáculo. Pelo contrário, tornou a ocasião ainda mais humana, mais especial. Deliciosamente envergonhada, Elena pede desculpa e esconde a cara com as mãos. O público responde com uma fortíssima salva de palmas. A cerimónia chegava ao fim mas os corações dos presentes levavam o maior dos presentes: uma música que celebra o melhor que a vida tem, que diverte, transcende e nos torna pessoas felizes. Abençoados sejam!

The Libertines | 00h25, Palco NOS

Uma das perguntas mais ouvidas ao longo deste Alive foi: “Quem são estes Libertines?” Os cabeças de cartaz deste último dia são uma banda enorme em Inglaterra, que vem de um concerto no Hyde Park, em Londres, completamente cheio, que celebrou a segunda reunião do coletivo, após o seu final em 2004. No entanto, a verdade é que nunca foram banda com grande expressão aqui em Portugal, não conseguindo mais que um punhado de singles conhecidos.

Aos comandos do capitão Pete Doherty e do seu companheiro de sempre, Carl Barât, a música dos Libertines é garage rock gingão, de melodia fácil, que em nada difere de dezenas de outras bandas da mesma altura e, por isso mesmo, é completamente compreensível que o recinto não esteja cheio por mais de metade da sua capacidade, e que grande parte do público das filas da frente seja constituído pelos muitos ingleses que andaram por Algés estes dias.

Apesar de tudo, os rapazes de Londres dão um bom espetáculo. “Don’t Look Back Into The Sun” e “Time for Heroes” são muito celebradas e, no final do concerto, ainda tivemos direito a espreitar um pouquinho do caos e excesso que sempre marcou a banda, com guitarras a voar e Carl Barât nas cavalitas do baterista. Caso para dizer: “What Become of the Likely Lads”.

Chet Faker | 01h20, Palco Heineken

Talvez a seguir aos Arctic Monkeys e The Black Keys, Chet Faker fosse o nome mais aguardado deste festival. Rei das partilhas nas redes sociais, o australiano encontrou um palco Heineken completamente lotado para o receber e um público disposto a terminar da melhor forma um Alive que caminhava a passos largos para o fim.

Celebrizado pela cover de “No Diggity”, dos Blackstreet, Nicholas James Murphy, nome por que responde Chet Faker, é muito mais do que esse pedaço de 1996 recuperado no tempo. E, se há um ano passou por um Lux meio despido, com o excelente EP "Thinking In Textures", hoje, depois de um EP com Flume e do ansiado álbum de estreia "Built on Glass", Chet Faker é um artista completo, enfrenta uma plateia num live-act solitário, com uma energia renovada e com a atitude de quem quer agarrar uma plateia, que está agarrada desde o primeiro momento.

Com um alinhamento composto principalmente por temas do novo álbum, houve tempo para “I’m Into You” e “Cigarettes and Chocolates”, do EP, antes da banda entrar em palco para a segunda metade do concerto e terminar em euforia com uma versão ao piano de “Talk Is Cheap”.

Vitória retumbante para o australiano que veio para ficar, e um final óptimo para este Alive, que, talvez com um cartaz e concertos menos consistentes do que em anos anteriores, foi, ainda assim, um bom festival com bons concertos e boas surpresas.

Texto: Carlos Eugénio Augusto e David Silva
Fotografias: Manuel Casanova e Rita Bernardo

In Palco Principal

NOS Alive'14, dia 2

Entre funerais e ascensões!



No segundo dia de NOS Alive'14 houve lugar para um pouco de tudo. Os The Black Keys, cabeças de cartaz, não desiludiram, mas a noite não foi só deles e contemplou-nos com duas belas «surpresas», de seu nome Sam Smith e Russian Red.

É constante e diversificada a oferta que o NOS Alive, versão 2104, oferece. Ao bater das 17 badaladas começam os concertos, e a curiosidade e o calor levam a que a minoria já presente no Passeio Marítimo de Algés procure refúgio sob o teto dos espaços que albergam os Palcos Heineken e Nos Clubbing.

Os concertos do norte-americano Allen Stone e dos portugueses Matilha servem de aquecimento para o que aí vem, mas, perto das 18h00, nota-se que o público toma a direção do Palco NOS.

The Vicious Five | 18h00, Palco NOS

A razão é o anunciado "funeral" dos The Vicious Five, que, segundo os próprios, tocam pela última vez sobre tal designação este ano.

Para além do calor, o vento volta a dar a cara e espalha pó pelo recinto. Apesar disso, os amigos da banda vieram-lhes prestar uma última homenagem. E, num ápice, o palco torna-se num espaço dedicado ao ritual rock. Já com os primeiros acordes de “Your Mouth is a Guillotine” no ar, Joaquim Albergaria surge em palco para atacar uma das mais emblemáticas canções da banda. Segue-se a pungente “Suicide Club”, com guitarras à solta e a bateria a sublinhar o recorte rock.

Antes de “On a Bus to Nowhere”, Albergaria afirma: “Nós fomos os The Vicious Five. Bem-vindos ao nosso funeral!”. Mas, se a banda opta pela eutanásia, a sua música continua bem viva. A provar ficaram interpretações potentes para o menino e para a menina, para quem está a recibos verdes ou desempregado.

Tal como é seu apanágio, os The Vicious Five entregaram-se de corpo e alma ao seu rock de linhagem punk e ofereceram dedicadas interpretações de “Young Divorce”, “Fallacies and Fellatio”, “Hystero”, “Lisbon Calling” ou “Bad Mirror”. O adeus tem como pano de fundo “The Electric Youth”, um dos temas mais contagiantes da banda, que colocou “familiares” e amigos dos The Vicious Five a saltar. A festa termina. Vemo-nos algures entre o Paraíso e o Inferno. RIP!

Russian Red | 18h00, Palco Heineken

Seis da tarde e o sol intenso ainda faz mossa, convidando todos os festivaleiros a encontrar pousio num qualquer resto de sombra espalhado pelo recinto. Muitos foram aqueles que o fizeram e felizes daqueles que o fizeram no palco Heineken, pois aí encontraram uma das boas surpresas deste NOS Alive'14.

Russian Red de nome, espanhóis de coração, o grupo de Lourdes Hernández revelou-se uma óptima banda sonora para o fim de tarde que se aproximava, com as suas canções indie, tingidas pela folk eléctrica de uma Feist ou PJ Harvey, a soarem tão leves, despreocupadas e belas quanto a sua autora. Com o terceiro e mais recente álbum, "Agent Cooper", em destaque, foram desfilando canções ora mais pop, ora rock, com as guitarras em riste, bem ruidosas e distorcidas a fazerem-se ouvir. “John Michael” e “Casper” foram bons momentos de um concerto onde até foi possível Lourdes reconhecer um amigo do Facebook na plateia predominantemente espanhola, que assistiu entusiasmada ao concerto.

Parca em reação mas sempre observada atentamente pela plateia numerosa, fica uma ótima apresentação e o desejo que voltem rapidamente.

The Last Internationale | 19h10, Palco NOS

Seriam poucos os presentes no espaço do NOS Alive que conheciam os The Last Internationale. A única referência a este trio natural de Nova Iorque seria o homem da bateria - nada mais nada menos do que Brad Wilk, um dos senhores Rage Against the Machine.

Mas rapidamente o som poderoso da banda, que mistura influências blues com um rock por vezes a roçar o doom, contagiou os presentes. Para além do referido perfil sonoro, os The Last Internationale não têm papas na língua e assumem uma postura afincadamente política. No início da atuação, antes de a banda subir ao palco, as palavras de Scott Heron colocam o dedo na ferida: “A revolução não passa na televisão”.

Num concerto “dedicado” aos políticos (Passos Coelho foi um dos visados) e de forte cadência anti-capitalista, cantou-se sobre os vícios e o desemprego, sobre a injustiça e a ganância. O mundo está a saque e os The Last Internationale apelam à revolução.

Da atuação da banda destacam-se as prestações de “Cod’ine”, uma versão em toada acústica do original de Buffy Sainte-Marie, onde a (bela) vocalista Delila Paz se entrega num registo que lembra Janis Joplin.
“Killing Fields”, com sonoridades a roçar a potência doom, é dedicada ao “senhores” que ocupam os parlamentos e os riff’s que resultam dos solos de guitarra apenas encontram paralelo na forte prestação do baixo e da bateria.

São cada vez mais as pessoas que se juntam ao “comício sonoro” dos The Last Internationale e “Life, Liberty…” soa ainda mais forte quando a audiência responde com palmas, principalmente quando o teor político se acentua.

Essa comunhão atingiu o auge quando a banda tentou cantar à capela “Grândola Vila Morena”, com Edgey Pires, um descendente de portugueses e membro da banda, a fazer a ponte entre o palco e a multidão. O final da atuação, suada e muitíssimo competente, teria como pano de fundo “1968”, uma composição dedicada à conhecida revolução estudantil.

Os The Last Internationale são, sem dúvida, uma banda a ter em conta. Para eles, o mundo toca-se através de um rock que apela à liberdade, pois a utopia é a última a morrer.

D’Alva com Gospel Collective | 19h15, Palco Clubbing

Já não é segredo para ninguém que a música portuguesa vive uma nova leva e que se encontra na sua fase mais interessante desde há demasiado tempo. Quando, às 19h00 da tarde, encontrámos um Palco Clubbing a rebentar pelas costuras, soubemos que estava na hora de receber e perceber uma das novas «coqueluches» da música portuguesa.

Acompanhada pelos Gospel Collective, a banda de Alex D’alva Teixeira e Ben Monteiro deu um concerto competentíssimo, para um público sempre entusiasmado e participativo, que, sempre que foi chamado a contas pelo irrequieto Alex, deu conta de si e respondeu efusivamente, ora entoando o riff de "Intro", dos XX, ora dançando e pulando desenfreadamente ao som de “Barulho” e “3 tempos”, a acabar.

Parquet Courts | 20h05, Palco Heineken

“We’re Parquet Courts, we’re from Brooklyn, New York”. Foi desta forma simples, crua, direta ao assunto, que a banda de Andrew Savage se apresentou na sua estreia em Portugal. Na verdade, estes Parquet Courts não têm muito que enganar: com mais ou menos urgência, andam sempre à volta de um garage rock nervoso, imediato, que nunca deixa o fio condutor do punk oscilar em vão. Canções como “Dear Ramona” , “Black and White” são petardos de atitude DIY, mas, ao mesmo tempo, cocktails molotov de tensão e dissonância que nunca chegam a rebentar.

Muito apoiados lá fora por publicações como o "NME" e a "Clash", aqui em terras lusas parecem não gozar do mesmo mediatismo, e isso nota-se no pouco público presente, que raramente fez por dar sinal de si. Ainda assim, ficou uma boa impressão e a vontade de os ver num local e ocasião diferentes.

MGMT | 20h30, Palco NOS

Os festivais têm um perfil, por vezes, perverso. A ansiedade que se instala nas hordes antes da atuação de uma qualquer banda em particular pode colocar em causa a receção das restantes. Uns procuram um melhor lugar, outros debelar a fome. O corrupio é constante e a atenção para quem está em palco é descaradamente menor.

Foi sob esse cenário que subiram ao palco os MGMT, uma banda que vagueia entre o psicadelismo rock e a eletrónica de características indie. Com o palco recheado de instrumentos de veia orgânica e sintética, as atenções concentravam-se nas imagens que surgiram no ecrã colocado nas costas dos músicos e que muitas vezes foi, qual oráculo, o elo aglutinador entre público e artistas.

Simpático, Andrew VanWyngarden serviu-se, ainda que de forma tímida, do microfone, para recolher a atenção dos milhares que assistiam a um concerto, que nos primeiros momentos ofereceu clássicos como “Time to Pretend”, um autêntico hino à vida, construído sobre hipnóticas pinceladas nascidas da magia sintética da banda norte-americana.

Sem dúvida que eles, os MGMT, têm a visão e gostam de passar um bom bocado, mas perante temas menos conhecidos a assistência optava pela distração ou realização de incontáveis “selfies”. “The Youth”, de “Oracular Spectacular”, disco de estreia da banda, logrou quebrar a letargia e hipnotizou os presentes com laivos eletrónicos singelos de uma simples e muito atraente roupagem pop melódica.

Mas, num ápice, a energia perdia-se e entrava-se em novo período de apatia, principalmente quando os MGMT percorriam temas menos conhecidos, ainda que tal não seja sinónimo de menor apetência qualitativa. Entre alguns apelos lunares e devaneios sónicos e mais introspetivos, VanWyngarden e seus pares voltariam a resgatar a atenção da massa presente através de “Mystery Disease”, do mais recente “MGMT”, que apresentou uma roupagem que não destoaria ao peculiar universo dos The Flaming Lips.

“Electric Feel” foi outro dos momentos altos do concerto dos MGMT no Palco NOS, com o seu epicentro melódico a revelar um interessante diálogo entre a guitarra e o baixo, sempre bem auxiliados pela parafernália computadorizada. Transformado momentaneamente o espaço num ambiente disco, os milhares de presentes esqueceram, ainda que momentaneamente, a vontade de trautear os acordes de “Lonely Boy”.

Mas essa excitação tinha contornos efémeros e rapidamente se esvanecia, e o cúmulo da abstração deu-se com a longuíssima “Siberian Breaks”, uma espécie de jam session que permitiu a todos os membros da banda mostrarem as suas habilidades enquanto (excelentes) músicos.

Seria, mais uma vez, um clássico a abanar o sentimento apático do público. “Kids”, de perfil assumidamente disco, teve o condão de fazer toda a gente saltar e dançar alegremente. É incrível como uma súmula de acordes pode fazer magia. No palco notava-se alegria, e a bateria teve o privilégio de ser tocada por dois elementos da banda.

O concerto chegaria ao fim pouco depois. Para a memória fica a (boa) reação do público às composições mais conhecidas dos MGMT e um sentimento de apatia geral face ao restante reportório escolhido para um concerto que se adivinhava difícil, muito por “culpa” dos senhores que se seguiam. Ficamos à espera de rever os MGMT, de preferência noutro ambiente.

Sam Smith | 21h20, Palco Heineken

Sam Smith foi a surpresa inesperada deste segundo dia. O autor de “Money On My Mind” teve um Palco Heineken completamente lotado a assistir ao seu concerto e contou com uma plateia eufórica, desejosa de ouvir os sucessos recentes do músico britânico.

Por entre temas da sua lavra, como “ Money On My Mind” ou a balada “Lay Me Down”, e as participações em temas dos Disclosure e de Naughty Boy,tudo foi muito celebrado e cantado por um público que se mostrou conhecedor e com vontade de participar na festa. Dono de uma excelente voz, Sam Smith puxou várias vezes dos galões e demonstrou que, para além de um excelente entertainer, é um excelente cantor, e atirou-se sem receios a uma cover de “Do I Wanna Know”, dos Arctic Monkeys, cantada do princípio ao fim com o acompanhamento do público.

“Stay With Me” foi a última música de um concerto que, por certo, vai figurar na galeria dos melhores deste Alive.

The Black Keys | 22h30, Palco NOS

Neste segundo dia, todas as atenções estavam voltadas para os homens de Akron, Ohio. Após a visita de hà dois anos atrás, no antigo Pavilhão Atlântico, a banda de Dan Auerbach e Patrick Carney voltou a Portugal com novo álbum na bagagem e com um concerto que, embora não tenha sido brilhante, ainda deu para encher o olho.

Com um público sedento de ouvir os hits de "El Camino", o álbum que os catapultou para o estatuto de estrelas internacionais, especialmente “Lonely Boy”, os The Black Keys souberam dar um concerto abrangente a todas as fases da sua carreira e aos seus oito álbuns, sem deixar o equilíbrio da atuação alguma vez em causa.

Bem juntinho, ao centro do palco, o duo do Ohio contou com o apoio de dois músicos extra - John Wood na guitarra e nos teclados, e Richard Swift no baixo -, que ajudaram a completar um som, que nem sempre foi o melhor, devido ao vento forte que volta e meia se fazia sentir.

“Dead and Gone” foi a malha de abertura, recebida com muito entusiasmo e palmas. O tema de "El Camino" foi o antecessor de “Next Girl”, canção do mesmo álbum, que nos levou ao lado mais groovy da banda. “Run Right Back” trouxe-nos um dos melhores riffs de slide dos últimos anos e uma melodia pegadiça que fica na cabeça desde o início ao fim da música.

“Same Old Thing” levou-nos aos tempos idos de "Attack and Release" e de um Dan Auerbach de cabelos compridos, a mostrar-nos os seus excelentes dotes guitarrísticos. Logo a seguir chegou uma mini explosão de alegria, ao som de "Gold on The Ceiling", que, bem mais solta ao vivo, ganha uma vida completamente diferente, mais alegre, da sua congénere de estúdio.

A partir deste momento, o concerto acalmou um pouco. Notou-se que o público ainda não está conectado, de todo, com as músicas do novo álbum, talvez por serem as músicas mais densas e menos imediatas da carreira dos americanos. “Turn Blue” e “ Bullet in the Brain” foram, ainda assim, dois bons apontamentos das novas canções, especialmente a última, com o seu teclado catchy a brilhar.

Os grandes momentos do concerto ficaram guardados para perto do final, com os hits a sucederem-se uns atrás dos outros, “She’s Long Gone” abriu o apetite e, logo a seguir, veio a enorme “Tighten up”, que conseguiu, finalmente, desencadear alguma reação no público. Houve ainda tempo para, antes do encore, se ouvirem “Fever“ e a muitíssimo aguardada “Lonely Boy”, que deixou o recinto aos pulos e em completa euforia.

Agradecendo o apoio do público e despedindo-se, os The Black Keys abandonaram o palco e, sem que ninguém esperasse, voltaram para um encore, onde os fãs mais ávidos se deliciaram com uma potente versão de “Little Black Submarines” e com o hino da fase Blues da banda, “I Got Mine”.

Au Revoir Simone | 00.00, Palco Heineken

Ainda com os ouvidos sintonizados no concerto dos The Black Keys, chegámos ao Palco Heineken para ver as meninas Au Revoir Simone. Aparentes problemas técnicos levam o concerto a atrasar uns minutos (excelente a pontualidade habitual do cardápio apresentado no NOS Alive), o que em nada perturbou o trio composto por Erika Forster, Annie Hart e Heather D'Angelo.

Por detrás de sintetizadores e caixas de ritmos, as Au Revoir Simone encantaram quem se atreveu a passar perto de uma hora no Palco Heineken, para ouvir uma música que já foi definida como um cruzamento entre o dream e o indie pop de fortes camadas eletrónicas e que, ao vivo, soa muito mais potente e vigorosa.

A contenda começou com os acordes singelos de “Gravitron”, retirada do recente “Move in Spectrums”, que assumiu um perfil eletrónico e foi sedutoramente apresentada em cascata. Mais dançável, “Just like a Tree” abraçou os presentes de forma graciosa e foram poucos os corpos que resistiram aos bonitos sons que vinham do palco. À medida que se cantava “stay away from me”, mais o público se aproximava da magia do trio nova-iorquino.

Com uma batida difusamente sintética e de ritmos matemáticos, “Don’t Tell Me”, canção que faz parte do álbum “Still Night, Still Light”, dividiu a atenção entre o seu espetro sonoro e a candura das suas intérpretes. O concerto agrada a todos e do palco salta um desejo: “Quem nos dera tocar em Portugal todos os dias!”.

Da alegria a ambientes mais soturnos, as Au Revoir Simone espalham magia. Em “The Lead is Galloping” ensaia-se uma coreografia e, no refrão, as mãos estão no ar. Depois, “Somebody Who” traz fantasmas do som de uns Pet Shop Boys, enquanto “Crazy” e, no final, “Shadows” levam as meninas a afastarem-se momentaneamente das teclas e, à vez, a trabalharem as quatro cordas do baixo ou as seis da guitarra.

Buraka Som Sistema | 00h25, Palco NOS

Com quase dez anos de carreira e de hits, os Buraka Som Sistema foram, ao vivo, tudo o que se pode esperar da banda lisboeta. Cada vez mais sexuais e frenéticos, abriram o concerto com o ritmo imparável de "Ba Ba Ba (Hangover)", logo seguida por "Stoopid", o novo single.

Com uma secção rítmica letal e com três mestres de cerimónias que não pararam por um segundo, sempre com a perfeição noção do que fazer e de como lidar com o público, muitos foram aqueles que não resistiram aos apelos de Blaya e companhia e se entregaram à dança desenfreada, bracejando pela noite dentro e despedindo-se da melhor forma desta segunda noite de Alive, repleta de acontecimentos.

Texto: David Silva e Carlos Eugénio Augusto
Fotografias: Manuel Casanova e Rita Bernardo

In Palco Principal

NOS Alive'14, dia 1

E tudo o vento tocou



Foi transversal o primeiro dia do NOS Alive'14. Desde ambientes intimistas, passando pelo rock e pelo pop, viveram-se horas mágicas no Passeio Marítimo de Algés, que teve a música como a maior das artes. Dos portugueses Noiserv e Tiago Bettencourt, passando pelos aglutinadores Imagine Dragons e The Lumineers, até aos ambientes mais negros dos Temples, The 1975 ou Interpol, e finalizando com a energia contagiante dos cada vez maiores e mais seguros Arctic Monkeys, as mais de 50 mil almas presentes no recinto sentiram a comunhão de sonoridades várias.

Noiserv | 17h50, Palco Heineken

Calor, muito calor neste primeiro dia de NOS Alive'14. Enquanto se tomam as primeiras decisões, se consultam os horários dos concertos, a sombra é um local deveras requisitado. E, quando aliada à sombra, vem a (boa) música, o local serve de pousio.

Ainda que não tenha sido essa a principal motivação das muitas dezenas que se encontravam no Palco Heineken minutos antes das 18h00, os “ocasionais” que procuravam resguardar pele e ossos dos mais de 30 graus que se sentiam no Passeio Marítimo de Algés, apesar do vento, sentiram um bom porto de abrigo na curta, mas muito interessante, atuação de David Santos, aka Noiserv.

O alinhamento deste mini-concerto foi como uma refrescante viagem à espiral melódica da discografia de David Santos. Sozinho em palco, tendo por companhia os seus instrumentos, este homem de recursos múltiplos é dono de uma atmosfera particular, que mescla elevadas doses de uma complexa estrutura sonora, entre sons acústicos com uma parafernália de tiques minimais de natureza digital, que sublinham a nostálgica beleza da sua obra.

Comunicativo, bem-disposto e preocupado em saber as horas, de forma a controlar a sua atuação, David Santos conduziu-nos numa viagem entre “One Hundred Miles from Toughtless” e o mais recente “Almost Visible Orchestra”. Os aplausos, herdados de um público que conhecia o seu reportório, sublinharam temas como “It’s Easy to be a Marathoner Even if you are a Carpenter” ou “I Was Trying to Sleep When Everybody Woke Up”, onde guitarras e pianos em loop davam as mãos a pequenas faíscas eletrónicas em caleidoscópio, que testavam o audímetro dos presentes ao jeito do ritmo cardíaco.

Ainda que o festival não seja o ambiente ideal para sentir a lindíssima música de David Santos, os sons que povoam o universo Noiserv não deixam ninguém indiferente e é notório o prazer que o músico sente ao tocar ao vivo, ainda que pareça estar dentro de um casulo particular. A batida naif de “Bomtempi”, qual desvario meteorológico é um exemplo disso. A voz saída através de um megafone engrandece uma atmosfera minimal e dolente, onde todos os sons, matematicamente livres, têm um lugar próprio, uma conexão sonora irrepreensível.

Antes da despedida, feita através de “Don’t Say Hi if You Don’t Have Time for a Nice Goodbye”, David Santos falou de um sonho que pode acontecer, de um acreditar que ainda é possível, mesmo num Portugal ancorado em crises várias. Xilofone, voz, piano, melódica e afins, em camadas loop, funcionam como um até já por parte do senhor do carrossel. O músico sai do palco sob aplausos e a sua música continua a ecoar. Soube a pouco, mas ainda há muita música pela frente.

Ben Howard | 18h00, Palco NOS

Ainda o sol ia bem alto quando o britânico Ben Howard estreou o Palco NOS. Neste primeiro dia de festival, marcado por muito calor e pela enchente em Arctic Monkeys, muitos foram aqueles que rumaram ao palco NOS e por lá se deixaram ficar, a desfrutar da Folk colorida do homem de “Only Love” e de “Keep Your Head Up”.

Com um alinhamento de seis músicos em palco, as canções de Ben Howard soam cheias e pintadas de pormenores que apenas os insistentes problemas técnicos nas primeiras músicas não deixaram ouvir nas melhores condições. Mais elétrico do que se esperava, o britânico contou com o apoio dos muitos conterrâneos presentes, que, junto com os portugueses, se mostraram conhecedores e não hesitaram na hora de bater palmas e cantar quando chegaram “Wolves” ou “Black Flies”.

Sempre com o nervo a espreitar por detrás da voz trémula, “Keep Your Head Up” foi a mais celebrada de um concerto agradável que, longe de ser memorável, serviu como um óptimo aquecimento.

Temples | 18h55, Palco Heineken

Líderes da nova vaga de Rock Psicadélico vinda de terras de Sua Majestade, os Temples estrearam-se em Portugal com pompa e circunstância, no palco Heineken. Perante uma tenda quase cheia, a banda de James Bagshaw (amuleto dourado ao pescoço, caracóis revoltos como não se viam desde os anos 70) trouxe até Algés o seu álbum de estreia, "Sun Structures".

A tentação à comparação é quase irresistível: os Temples, à semelhança dos Tame Impala, conseguem pegar em influências do passado e, nem por um momento, soar datados. À semelhança do álbum, o concerto iniciou-se com “Sun Structures”, logo seguida por “A Question Isn’t Answered”, acompanhada a palmas, e “Colours to Life”.

Comunicativos q.b, foram agradecendo as palmas e a dança que aqui e acolá ia povoando a tenda, até que chegaram “Move With the Season”, “Mesmerize” ou “Keep in the Dark”, portentos de Rock/Pop Psicadélico, recheados de guitarras embebidas em fuzz e harmonias vocais que não andam longe daquilo que uns Fleet Foxes fazem.

Para terminar, tocaram a inevitável “Shelter Song”, pondo termo a um bom concerto, que abriu o apetite para uma visita em nome próprio e num horário mais adequado.

The Lumineers | 19h20, Palco NOS

Com apenas um álbum editado, os norte-americanos The Lumineers chegam a Portugal pela porta grande e com honras de pisar o palco principal. Ainda com o sol a bater teimosamente "de chapa", valeu aos presentes um vento assertivo, que amenizou a tormenta.

Com um palco ornamentado com três candelabros de luz oscilante, o quinteto natural do Colorado brindou uma considerável moldura humana com mais de 60 minutos de um indie folk muito orelhudo, com destaque para temas como o brilhante “Ho Hey”.

O concerto começou com “Submarines”, um canção que apela ao doce toque do piano e que faz emergir, gradualmente, uma bateria muito presente e um baixo assertivo. A voz quente e despretensiosa de Wesley Schultz incita à partilha e, desde os primeiros momentos da atuação, os The Lumineers têm o público na mão.

“Ain’t Nobody’s Problem”, um original do “amigo” Samwill Joe, revela-se blusy q.b. e coloca toda a gente a dançar enquanto o vento teima em contrariar a potência do astro-rei. Depois, “Flowers in Your Head” leva-nos para um universo do mestre Bob Dylan, ainda que Schultz não tenha um timbre tão nasalado.

“Ho Hey”, uma das músicas maiores dos The Lumineers, revela-se como um tónico revigorante e as palmas surgem compassadas e elevam-se no éter. Verdadeiro hino, “Ho Hey” – que levou o vocalista a interromper a atuação, para pedir que se guardassem os telemóveis – serviu para adensar a comunhão entre músicos e público e provocou uma atmosfera familiar que nos remete para a brilhante atuação dos islandeses Of Monster and Men na edição de 2013 deste Alive que agora tem nova graça.

Explorando o filão único, “The Lumineers”, editado em 2012, a banda toca “Classy Girls”, descaradamente folk e com um toque especial do violoncelo de Neyla Pekarek, que esporadicamente ajuda nas vocalizações. “Subterranean Homesick Blues”, versão de Dylan, assume-se como o momento panfletário do concerto, com destaque para um piano de efusivo e um ambiente saloon. A toada acalma com “Dead Sea”. O piano faz a introdução, surgem imagens marítimas nos ecrãs, o público recupera forças.

“Slow it Down” deixa, num primeiro momento, o palco à mercê de Schultz, que depois ganha a companhia de Pekarek e Jeremiah Fraites. Vivem-se momentos mais íntimos, apela-se à calma. Esse sentimento prossegue com “Duet (Falling in Love)”, uma canção simples e arrebatadora, e “Charlie Boy”, uma composição que apela à dolência. Por esta altura o sol já se pôs por detrás do palco e o vento dá tréguas. Coincidência?

Retemperadas as forças, os The Lumineers tocam “Darlene” e “Elouise” de uma forma especial. Tal como tem sido apanágio da digressão da banda, Schultz vai para o meio da multidão munido da sua guitarra. Qual manobra populista, o público reage de forma efusiva à prestação e as atenções dividem-se entre o vocalista e outro membro da banda em especial. A razão é simples: o homem do acordeão pendura-se na estrutura que alberga a mesa de som, depois de passar pelo meio dos presentes. Bom, é indie folk e todos gostamos.

Já nos derradeiros minutos da atuação da banda ecoa “Flapper Girl”, que contou com uma intro à base de um pequeno piano de recorte clássico. Antes do final há ainda espaço para a nova “Gun Song” e, mesmo no ocaso do concerto, ficou “Big Parade”, entusiástica canção que teve direito a um inusitado momento de freeze por parte de todos os elementos da banda. Até à vista, rapazes.

Imagine Dragons | 20h50, Palco NOS

Por esta hora, debandada geral para o palco NOS, para ver o fenómeno Imagine Dragons . Originalmente programados para o Palco Heineken, os americanos subiram de divisão para o palco principal devido à aparente muita procura de que eram alvo, e provaram que a decisão foi acertada, com um concerto que contou com muito público e muito apoio dos portugueses.

Conterrâneos dos The Killers, os Imagine Dragons fazem uma Pop raçuda, várias vezes com um, senão os dois pés assentes num Rock que, aliado à interação que o vocalista Dan Reynolds vai tendo com o público, prova-se tiro certeiro na multidão.

Com um infindável número de timbalões e bombos em palco, foi ao som destes que o concerto começou. “Fallen Tiptoe” abriu caminho para “Hear Me” e foi logo audível a reação entusiasta do muito público feminino presente.

A seguir veio algo com tanto de inesperado quanto de escusado: uma cover de "Song 2", dos Blur, que não trouxe nada de relevante ao concerto e ao original de Damon Albarn e companhia. A caminho do final do concerto chegaram as inevitáveis “On Top of the World” ,“Demons” e, a fechar, uma “Radioactive” muito celebrada mas que, à semelhança da música destes Imagine Dragons, nunca deixa de soar a produto pré-fabricado, demasiado mecânico para se esperar algo mais do que um fenómeno de massas.

The 1975 | 20h55, Palco Heineken

Ainda pelo Palco Heineken, muitos foram aqueles que aproveitaram o final do concerto de Temples para darem um pulo ao Palco NOS, onde os The Lumineers iam fazendo as delícias de quem por ali andava.

Apesar de o público não abundar, os fãs de 1975 revelaram-se devotos à causa de Matthew Healy, e várias foram as vezes em que o entusiasmo demonstrado roçou a histeria. Donos de uma pop resgatada diretamente dos anos 80, com uns toques de indie e synth pop, os 1975 fazem música para uma relação amor-ódio, em que, ora com guitarras ao leme, ora com sintetizadores de gosto duvidoso, não fica mais do que uma sensação de aborrecimento e de dejá vu, num concerto competente e bem tocado, que decerto fez as delícias dos fãs mais convictos, mas que foi insuficiente em passar disso.

Tiago Bettencourt | 21h15, Palco Heineken

Com o som dos Imagine Dragons a invadir o Palco Heinenken, estão apenas algumas dezenas de pessoas a aguardar a entrada em palco de Tiago Bettencourt, agora sem os Mantha. Indiferente, Tiago, o rapaz da guitarra escarlate, vem decidido a fazer um bom concerto. E consegue-o, a contra-relógio, e com espírito assumidamente rock.

A atuação começa com uma toada pujante e, num ápice, estamos embrenhados no mais recente “Do Princípio”, através da quente “Maria” - um elogio à mulher. O som de Bettencourt ao vivo é bem mais intenso que no registo de estúdio, algo que faz crescer ainda mais a chama da música do cantor e músico português. A prova disso é a brilhante versão de “Só Mais uma Volta”, repleta de groove em forma de carrossel. De bom gosto.

Com o público agarrado ao som que sai do palco, chega a vez de “Laços”, com Bettencourt agora ao piano, a pedir que se cante alto, de forma a não sentir a presença dos ecos que chegam do palco NOS. A prestação é sofrida, quente, e leva-nos ao melhor/pior que há em nós. A acompanhar as teclas, nota-se o sublinhado da bateria e baixo, que reforçam o espírito solene do momento. O resultado foi uma chuva de aplausos de uma plateia agora devidamente preenchida.

A reivindicativa “Aquilo que Eu não Fiz” leva-nos de volta a “Do Princípio” e este exercício poético face à crise conjuntural já se revela um caso sério junto das massas. E como agitar é preciso, “O Labirinto”, do álbum “O Jardim”, e “Ameaça”, do disco de 2014 (e com Fred na bateria), faz sobressair a veia rock de Tiago Bettencourt.

A festa continua com “Cenário”, dos tempos dos Toranja, mas um dos momentos mais altos do concerto. Surge, então, “Canção de Engate”, um original de António Variações, que contagia a alma mais ensimesmada. Com um perfil de noite de verão, somos levados até “Acústico” e a letra é cantada em uníssono. O piano lança notas dolentes e dentro de nós surgem fantasmas e sentimentos contraditórios.

Pensa-se em sentimentos que devem ser como as músicas, que tornam eternas as coisas pequenas.
Ainda as palmas soam quando surgem os primeiros acordes de “Carta”, uma das mais emblemáticas canções de Tiago Bettencourt, e que serve de rampa de lançamento para a belíssima “Morena”, que, apesar de recente, já é cantada por todos de forma irrepreensível. O concerto termina com “Chocámos Tu e Eu”. O clima é de festa. A música é quem mais ordena.

Interpol | 22h30, Palco NOS

Com novo álbum na manga e depois de uma ausência de três anos, era grande o interesse neste regresso dos nova-iorquinos Interpol a Lisboa. Mas, fruto da ansiedade para com os "Macacos", muitos foram aqueles que se dedicaram à epidemia das selfies e que simplesmente desligaram de um concerto que, fruto da hora, do público e talvez do local, pareceu sempre fora de contexto.

“Say Hello To Angels“ e “Evil”, a abrir, fizeram relembrar o bom que é ouvir a voz de Paul Banks e os jogos de guitarra entre este e Daniel Kessler. Com um alinhamento em que músicas novas conviveramm em harmonia com os clássicos de 2004, os ritmos foram geridos com a sabedoria de quem já faz isto há muito tempo - e simplesmente não falha.

“C’mere” ,“Obstacle 1”, “PDA” e “Slow Hands”, a fechar, foram a cereja no topo do bolo para todos aqueles que ali estavam por Interpol e não a marcar lugar para Arctic Monkeys.

Elbow, Palco Heineken

No Palco Heineken, devido ao conflito de horários entre Interpol e Elbow, não foi possível assistir ao concerto dos ingleses desde início, mas ainda chegámos a tempo de ver “One Day Like This” cantada pelo público, às ordens do mestre-de-cerimónias Guy Harvey, como se a sua vida dependesse disso. Bonito.

Arctic Monkeys | 00h15, Palco NOS

Se razão havia para este primeiro dia de festival estar esgotado, a responsabilidade cai num quarteto que nasceu em Sheffield há mais de uma década e cuja figura de proa é Alex Turner. Segundo a organização, estavam mais de 50 mil pessoas no Passeio Marítimo de Algés.

Na sua sétima atuação por terras lusas, os Arctic Monkeys são, sem qualquer tipo de dúvida, as estrelas maiores desta edição do NOS Alive 14, a par dos The Black Keys. Passaram oito anos desde o primeiro concerto da banda de “R U Mine?” em Portugal (no infernal Paradise Garage) e, se na época eram uma espécie de “next big thing” rock, hoje são uma certeza e assumem-se como ídolos maiores de uma fatia geracional que dispensa a efemeridade e agarra-se, com unhas e dentes, ao espírito frenético dos autores de “AM” - disco que dá o mote a esta digressão.

O palco, gigante e repleto de luzes e cor, está feito à medida da classe e ambição dos Arctic Monkeys. Ainda que não sejam necessárias muitas perguntas, “Do I Wanna Know?” abre um concerto que duraria 90 minutos e, pela primeira vez, levaria uma banda a realizar um poderoso encore.

Com um dos riffs mais brilhantes dos últimos tempos, a canção que abra o recente “AM” agarra de imediato o público que enche o palco à beira-mar plantado. Alex Turner é o homem do leme, um frontman de estilo rockabilly, gingão, que não tem pejo em assumir o comando desta potente nau musical que são os Arctic Monkeys.

Vindas do palco, as luzes ofuscam, fazem fechar olhos. Mas é a música que tem o condão de abrir os ouvidos e mentes. “Snap Out of It”, uma das criações mais recentes da banda, é já de domínio público e o falsete de Turner apenas encontra paralelo na potência da bateria de Matt Helders, que também dá uma ajuda nas vocalizações. De olhos nos olhos, Alex Turner, embala a audiência com “Arabella”, um exercício mais “contido” e blusy, que, ainda assim, não descura declarados tiques rock and roll.

“Brainstorm” faz-nos recuar até 2007, por alturas de “Favourite Worst Nightmare”, e no ar ficam laivos de um poderosa simbiose entre ambientes pós-punk e ska, que combinam na perfeição com o competente jogo de luzes que abrilhanta o palco NOS. Seguem-se, sem demoras e diretas à alma, "Don’t Sit Down ‘Cause I Moved Your Chair”, de "Suck It and See”, e “Dancing Shoes”, do debutante “Whatever People Say I am, That’s What I’m Not”.

Depois é a vez da brilhante “Crying Lightning”, cujo refrão consegue contagiar a mais fria alma deste universo. O baixo presente arrebata atenções, a bateria corre desenfreada, as guitarras gritam e o discurso sedutor de Turner faz o resto. Impossível resistir. A seguir, “Knee Socks” faz a ponte entre o passado recente e o presente.

O estatuto da banda britânica é tal, que uma canção como “My Propeller” soa a clássico. O seu swing mescla ambientes de tonalidades escuras com assombros pontuais de fantasmas brit-pop. Depois de uns segundos de pausa, outra grande música: “I Bet You Look Good on the Dancefloor”. Guitarras à solta, numa faixa que Turner dedica a todas as miúdas, sejam elas de 1984 ou não. A massa humana grita, dança, vibra. A música bate o conflito geracional e menores e mais experientes convivem. O sentimento de exorcismo continua com “Library Pictures”, “Fireside” e com um mais acústico “No. 1 Party Anthem”, a lembrar um qualquer final de festa.

“She’s Thunderstorms” começa de forma lasciva mas ganha intensidade durante o seu percurso, antecedendo mais um momento brilhante. “Why’d You Only Call Me When You’re High?” é uma canção madura que parece existir há décadas, tal é a sua presença. Mais antiga, “Flourecent Adolescent” torna o ambiente mais ligeiro e “505” adivinha a saída da banda, ainda que momentânea.

No regresso, os Artic Monkeys trazem três dos seus maiores sucessos: “One for the Road”, “I Wanna beb Yours” e “R U Mine?”. Todos estes temas retirados de “AM” deixam em êxtase os cerca de 50 mil presentes, que tiveram mesmo direito a um “extend-play” da derradeira faixa.

In Palco Principal

Texto: Carlos Eugénio Augusto e David Silva

Fotografias: Manuel Casanova e Rita Bernado

segunda-feira, 7 de julho de 2014

“Amores e Saudades de um Português Arreliado”
de Miguel Esteves Cardoso

Crónicas de um Homem (no) Presente



Uma das melhores formas para relatar o que vai na alma é o ato da escrita pois a palavra falada, por vezes, parece diminuta e sem hipóteses de cumprir o seu propósito mesmo que o exercício do pensamento que a cerca, contextualiza e lhe dá vida, seja perfeito.

Nas últimas décadas, ainda com alguns hiatos momentâneos e assustadoramente reais, Miguel Esteves Cardoso tem marcado a cultura nacional com a sua pertinente (des)focagem da realidade portuguesa.

Desde as assertivas deambulações pela cultura difundidas pelos jornais “Blitz”, “Se7e” e “Jornal de Letras” ou através da acutilante opinião que assinava em publicações de referência como “O Independente” e o “Expresso”, Miguel Esteves Cardoso tornou-se numa das mais emblemáticas vozes de uma geração que cresceu a ler livros como “A Causa das Coisas” ou “As Minhas Aventuras na República Portuguesa”.

Mas nem só ao género crónica associamos o génio de Esteves Cardoso. Romances como “O Amor é Fodido”, “O Cemitério das Raparigas” ou “A Vida Inteira” mostraram outra faceta da escrita de um Homem que nunca teve qualquer tipo de pejo em mostrar os seus medos, aflições, dúvidas ou certezas.

Mais recentemente, depois de associar a sua obra à Porto Editora, vimos serem reeditadas as obras antigas deste lisboeta com costela britânica. Mas para além dessa viagem ao passado, fomos brindados com novas edições como o recente “Amores e Saudades de um Português Arreliado” (Porto Editora, 2014), um livro que reúne crónicas publicadas em um dos mais reputados jornais diários de referência em Portugal.

E tal como seria de esperar, felizmente, o resultado é uma obra que respira a cadência literária e existencial do seu autor. Tal como aconteceu com o anterior “Como é Linda a Puta da Vida”, estamos perante um livro que deve ser lido devagar, com vagar, rejeitando a pressa de forma a absorver o poder da escrita que de semblante diário passa a eterno.

Divido em cinco partes de um mesmo todo, “Amores e Saudades de um Português Arreliado” faz o elogio à vida, para Miguel Esteves Cardoso, a única coisa que realmente existe e interessa. Fala-se, obviamente, de saudades mas acima de tudo da vida no tempo atual ainda que, escreve o autor: “quando o presente não presta mais vale que seja ultrapassado pelo passado”.

Com apurado sentido prático, Esteves Cardoso pensa a vida, simples, sem maquilhagem. Através de um peculiar perfil neurótico, estas pequenas crónicas refletem temperamentos sazonais, a imprevisibilidade meteorológica, o poder dos livros e o seu imaginário, o veraneio de Colares da praia e o do mar, amizades traídas ou roubadas, odores de quem se ama ou inveja da felicidade canina, o que faz sentir a magnitude dos dias oscilantes entre a candura da inércia e o buliço quotidiano.

As palavras escritas neste livro espelham a paixão de Miguel Esteves Cardoso pela vida e, acima de tudo, por Maria João, a sua companheira, a sua mulher, pois apenas a felicidade de estar apaixonado coloca tudo no seu devido lugar, atribui lógica ao caótico puzzle do relacionamento humano.

In Rua de Baixo