quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Low
“Ones and Sixes”


Aquilo que os Low lograram atingir ao longo de duas décadas, torna-os uma das bandas mais prolíferas, entusiasmantes e consistentes do universo indie. Desde o lançamento de “I Could Live in Hope”, disco datado de 1993, que o duo – e casal – Alan Sparhawk e Mimi Parker, naturais do Minnesota, conseguiu reunir uma base de fãs fiéis muito por culpa de uma música de contornos espartanos e minimalistas, à base de guitarra baixo e bateria (e das duas complementares vozes de Sparhawk e Parker) que estaria na fundação do movimento slowcore.

Em mais de vinte anos de existência, os Low mantiveram uma elevada fasquia qualitativa (sinceramente, não nos lembramos de um “mau” disco da banda) e souberam manter-se à tona e, desde que se juntaram ao catálogo da editora Sub Pop, por alturas da edição de “The Great Destroyer” (2005), até arriscaram uma abordagem mais pop, com elementos aqui e ali mais electrónicos.

A música para os Low é algo em permanente – mas tímida – evolução, e a exploração de outros territórios sonoros, ainda que sem grandes desvios de uma matriz inata, leva Sparhawk e Parker até discos como o mais recente “Ones and Sixes” (Sub Pop, 2015), décimo primeiro tomo da carreira desta dupla, que é mais uma centelha brilhante a juntar à sua discografia.

Gravado nos estúdios April Base, quartel-general de Justin Vemon – a.k.a. Bon Iver -, “Ones and Sixes” contou com a colaboração de Glenn Kotche, baterista dos Wilco, e a produção conjunta entre a banda e BJ Burton, assumindo-se como uma súmula dos diferentes caminhos que os Low têm percorrido, principalmente a partir de “Thinks We Lost in the Fire” – talvez o derradeiro suspiro da fase mais ensimesmada e negra do grupo.

Hoje, a banda navega entre ambientes mais “quentes”, tão caros a discos como “C´mon” e “The Invisible Way” e momentos mais interiores, soturnos, de, por exemplo, “Drums and Guns”. Este processo, pensado, tranquilo e natural, tornou possível acolher ingredientes electrónicos em composições como “Congregation” ou “Gentle, neste último caso com algumas referências a fazer lembrar momentos mais downtempo de alguns projectos associados a Trent Reznor.

Esses momentos mais misteriosos, densos, encaixam de forma perfeita com outros registos mais “baladeiros” à base de guitarras, como o desafiante “Lies”, canção que tem lugar no pódio das mais emblemáticas da carreira da banda e cujo clímax nos remete para a assertiva assunção de que a música é muitíssimo mais que uma matemática de acordes, podendo ser mesmo encarada como a mais sublime forma de catarse.

Outro dos grandes momentos de “Ones and Sixes” é “Landslide”, um tour de force de quase dez minutos que nos faz regressar a faixas como a maravilhosa “Lullaby”, do já referido disco de estreia dos Low, ou “Stay”, pérola que nasceu aquando da saída de “Long Division” (1995), e que se pauta por vibrantes camadas de uma negritude apaixonante, alimentada pelas vozes complementares de Alan Sparhawk e Mimi Parker, dissonantes mas complementares, únicas e deliciosas.

Ao longo das 12 partes de “Ones and Sixes” são perceptíveis laivos de novas explorações musicais, como o uso mais recorrente à distorção, o que dá ao universo do disco um carácter mais “cru” e que contrasta com outras formas mais intocáveis, puras. Essa experimentação instrumental eleva ao estado de cristalina sonoridade algumas adições vocais e melodias muito bem construídas, que vão fazer as delícias dos ouvintes mais exigentes, que não ficarão indiferentes a composições como a viciante “No Comprende”, a curtinha “No End”, a mais gingona “Kid in the corner” ou a descaradamente etérea “DJ”.

Esta maior diversidade e exploração de sons transformam “Ones and Sixes” numa espécie do melhor de “dois mundos”, uma mais-valia que segue várias direcções. Se, por um lado, mantém a exigência sonora que os velhos fãs esperam, por outro abre novos horizontes para os recentes ouvidos que chegam ao paraíso musical dos Low.

in deusmelivro

“A Irmandade do Santo Sudário”
de Julia Navarro


Tinha o sonho de ser bailarina mas acabou por se entregar ao jornalismo. Natural de Madrid, Julia Navarro é uma das mais conhecidas vozes da comunicação em Espanha e, há mais de uma década, autora de romances – podemos dizer best sellers.

E é sobre a primeira das suas obras, “A Irmandade do Santo Sudário” (Bertrand Editora, 2015) – lançado primeiramente em 2004 e recentemente reeditado -, que versa esta reflexão, um livro que, nas palavras da própria autora, resulta de uma intrínseca vontade de “inventar histórias em frente de um monitor.

Com um ambiente que decerto entusiasmará os fãs de Dan Brown ou do “nosso” José Rodrigues dos Santos, o livro abre com o relato de um misterioso incêndio na Catedral de Turim, repositório do conhecido Santo Sudário, que levou à morte um homem com algumas sequelas físicas pouco comuns: sem língua e com as impressões digitais deformadas.

Para tentar esclarecer este invulgar caso é chamado à cena do crime Marco Valoni, detective do “Departamento de Arte” da Polícia Italiana. A investigação leva a crer que se trata de algo mais do que um acidental incêndio, trazendo à memória um acontecimento, ocorrido no mesmo local, anos antes e que tinha no seu epicentro um ladrão… sem língua e desprovido de impressões digitais. Dá-se assim o início a uma extensa busca que vai colocar a vida de Valoni em perigo.

A narrativa tem um início algo pausado mas, à medida que os acontecimentos se sucedem, aumenta o seu ritmo e, preparem-se os leitores, a velocidade pode vir a ser alucinante, sublinhada com traços de clara influência cinematográfica.

Julia Navarro traça um caminho bifurcado em “A Irmandade do Santo Sudário”: se, por um lado, somos envolvidos na própria história do Santo Sudário, por outro sentimos, de chofre, os estilhaços inatos a uma investigação moderna. E, como em muitos dos livros do género, as conspirações abundam ao virar de cada capítulo, neste caso alternando entre acontecimentos do passado e presente.

Valoni é obrigado a lidar com vários grupos de interesses distintos, entre eles uma facção cristã turca com sede na cidade de Urfa, comunidade fundada no rescaldo da morte de Jesus.

Somos assim levados num carrossel emotivo que rodopia através dos séculos e que acompanha o trajecto do Santo Sudário, que terá sido encaminhado e vendido em Constantinopla – seguindo depois para terras de França.

Reclamando por algo que apelidam como seu, os referidos cristãos de Urfa desesperam por recuperar o Sudário. Mas os problemas avolumam-se, pois o grupo não está sozinho neste resgate já que os Templários, escondidos do mundo, apostam tudo para que a santa peça de vestuário não acabe em território turco.

A luta promete não dar tréguas, e quem ganha é quem tem o livro nas mãos e “devora” páginas repletas de acção, thriller, intriga e espirais conspirativas, cujo explosivo clímax revela algumas surpresas. O único senão são alguns acontecimentos mais “laterais”, que podem criar alguma confusão e pouco (ou nada) acrescentam ao rumo dos acontecimentos.

Ainda que a linguagem usada por Julia Navarro neste livro seja de uma natureza mais simples (não confundir com simplista) que a de outros títulos seus, “A Irmandade do Santo Sudário” é um livro para ler ou reler, cativante e que deu, e continua a dar, excelentes sinais do que se seguiu e seguirá na bibliografia da autora.

In deusmelivro

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

“Em teu ventre”
de José Luís Peixoto

Elogio à maternidade

 
Sem que exista um fim, ou palavra semelhante, nas últimas páginas de “Em teu ventre” (Quetzal, 2015), José Luís Peixoto partilha uma nota: «Este é um texto de ficção». Mas não será a própria vida um facto ficcionado? Onde começa e acaba o ato a que costumamos definir como realidade? Será esse um termo apropriável, uma forma de encarar o mundo, os seus acontecimentos? E será essa verosímil partilha uma verdade, sentimento ou sensação, pessoal e tornar a mesma num dogma?

É esse um dos maiores desafios da humanidade: distinguir o real do imaginado, sonhado ou sentido. E é esse um dos dilemas que a religião, as suas doutrinas, têm enfrentado ao longo de muitos séculos e que têm na origem da sua devoção factos que desafiam a lógica, o “normal” quotidiano.

Os milagres, frutos de análises várias, encontram-se dentro dessa categoria, entre a dúvida e a devoção, entre a crença e a desconfiança, entre o inesperado e a falácia. Dentro desse quadro, Portugal, viveu nos primórdios do século XX, um episódio que colocou o período entre maio e outubro de 1917 nos anais da religião cristã.

As (supostas) aparições da Senhora de Fátima aos três pastorinhos numa pequena azinheira na Cova de Santa Iria transformaram a vida de Lúcia, Francisco e Jacinta, primos de sangue, nos principais “porta-vozes” da igreja católica em Portugal.

Tendo por base esses acontecimentos, José Luís Peixoto escreve “Em teu ventre”, nas suas palavras uma «novela» que cruza o rigor da sua dimensão histórica e que coloca em cima da mesa uma profunda reflexão sobre um país que aceitou o referido fenómeno e o transformou, via Estado Novo, numa das suas bandeiras.

Se bem que estejamos perante um trabalho de ficção, tal como o referido no início deste texto, «os dados que o compõem têm como base a informação contida nos livros Memórias I a VI, da autoria de Irmã Lúcia de Jesus». E foi com essa informação, assim como de algumas outras publicações da época, que nasceu um livro tranquilo, que caminha entre «instantes de assombro e milagre» e que versa, essencialmente, sobre a maternidade, sobre os trabalhos de quem pare um filho, de quem o trata, acompanha, sente e sofre.

Com a habitual e serena mestria, Peixoto transporta-nos numa viagem ao coração da própria bondade, da inocência, do querer acreditar e de algum desespero. A escrita de “Em teu ventre” é muito mais que uma matemática de palavras, uma soma de constatações, ideias.

As frases, embebidas num misto de simplicidade e assertivo apelo ao coração, são como que um resultado, um sinónimo de uma transcendência comunicacional, seja isso uma forma de partilha coletiva, privada, sacra ou profana.

As palavras, escritas ou ditas, nascidas com aquela particular forma de respirar, num sopro de quebrando, elevam-nos ao expoente do sentimento, das emoções verdadeiras, ora amargas ora doces, mas sempre reais, seja a realidade aqui entendida como uma mãe que sofre pelas “mentiras” da filha traquina ou pela perseguição que a comunidade faz ao seu rebento em busca da salvação.

A transparência sempre foi uma das maiores qualidades da escrita de José Luís Peixoto. Nos seus livros, e este não é exceção, disseca-se a vida, em tons escuros, doridos, dilacerantes, seja o tema o desespero, a solidão, o amor, a religião ou uma mãe que atravessa «a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam».

Livro que se lê num trago, num suspiro, “Em teu ventre” é um olhar sobre o que está além da própria racionalidade, da memória, da paixão, do aceitar de um papel, do destino de se entregar aos trabalhos de parto e dar a vida por quem vem de dentro, do ventre.

In Rua de Baixo

“Menino da Mamã” de Álvaro Magalhães

Os mimos do melhor do mundo 

 
Ter orgulho nos nossos pequenos é tarefa inata. Sejam eles petizes ou já mesmo papás, nunca deixam de ser os maiores alvos dos infindáveis mimos das mamãs. Cristiano Ronaldo não é exceção.

E é a relação entre o craque do Real Madrid e a senhora sua mãe que versa “Menino da Mamã” (Verso da História, 2015) de Álvaro Magalhães, espécie de diário pouco secreto e ficcionado (nas palavras do autor, «ainda mais real») que revela alguns dos segredos da atribulada e exigente vida de Ronaldo, aqui apresentado como alguém cujo ego grande serve de escudo e filtro para as mais variadas e caricatas situações.

Escrito na “primeira pessoa”, “Menino da Mamã” revela tudo e mais alguma coisa sobre os tiques e truques de Ronaldo, a relações com os maiores rivais (Messi no centro das atenções), os namoros secretos ou mais populares, a desconstrução do Tiki-taka, afinal uma invenção da própria mamã Dolores, ou mesmo as táticas de sucesso de Mourinho assim como alguns episódios de Alex Ferguson, Jorge Mendes ou Irina Shayk.

Pelo meio ficamos também a saber os três mandamentos do “Abelhinha” (adivinhem quem será…), os pesadelos que impedem Cristiano de dormir, histórias sobre uma certa bola de borracha, o porquê das mulheres não gostarem de futebol, memórias do mundial de 1966 que enchem todos de orgulho e são sinónimo de sonhos inspiradores e prémios como a “Fralda de Ouro”, troféu que é uma «realidade paralela à Bola de Ouro».

No fundo, estamos perante de uma delirante e muito divertida história que assenta uma narrativa assaz interessante de Álvaro Magalhães que tem no apoio ilustrado de Carlos J. Campos um poderoso aliado para transformar os muitos minutos de leitura de “Menino da Mamã” em momentos de inspirado e inspirador prazer.

Para ler antes de adormecer ou depois de um estafante dia de aulas, “Menino da Mamã” é um pedaço de sonho, inspirado num misto de imaginação e realidade, sobre alguém que preferia conversas de futebol em vez da história do Gato das Botas e que muitas vezes, rapaz birrento, muda de CR7 para CRP(roblem) mas que facilmente regressa à colmeia mais doce do universo: o colo da mamã.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

“O Drible”
de Sérgio Rodrigues

O jogo só termina quando o árbitro apita


O futebol é uma arte. A literatura também. Juntar estes dois mundos pode parecer estranho, uma quase incompatível heresia, mas quando feito com a genialidade dos bons protagonistas o resultado é uma goleada literária que explora na plenitude os trunfos da bola e das letras.

Quase como metáforas perfeitas da geometria do jogo da vida, alguns lances nascidos dentro das quatro linhas ficam cravados na memória como hinos eternos do mais cristalino estado de pureza artística. Dentro deste universo, lembro, por exemplo, o calcanhar do Madjer na final de Viena ou, mais recentemente, a triangulação “galática” entre Gaitán e Lima no dérbi eterno de Lisboa.

E é o chamado “ópio do povo” que inspirou o brasileiro Sérgio Rodrigues, ficcionista, crítico literário e jornalista, a escrever “O Drible” (Companhia das Letras, 2015), um livro que transporta o leitor para o colorido e particular universo dos anos 1970, cujas primeiras páginas remetem para o primeiro Mundial de Futebol disputado no México. O calendário marcava o dia 17 de junho de 1970, o Brasil ganhou ao Uruguai por três a um mas o mais emblemático lance do jogo não deu em golo.

A jogada durou nove segundos e a simulação de Pelé sobre Mazurkiewicz, o guarda-redes uruguaio, ficou registada nos anais da história do futebol. São precisas seis páginas para Sérgio Rodrigues recuperar esse momento e, no final, quase como num fôlego, visualizamos ou relembramos esse lance genial.

É com esse pedaço de epifania desportiva protagonizada Edson Arantes do Nascimento que está lançada a narrativa que fez com que Sérgio Rodrigues arrecadasse o Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura de 2014, um romance apaixonado e por vezes envolto de uma enorme camada de tensão que utiliza a metáfora de um drible, qual momento de inaudita magia, para trazer a lume as incertezas da vida e os lugares estranhos que a mesma nos pode encaminhar.

No cerne da trama está Neto, um quarentão revisor de livros de auto-ajuda que vive uma existência amargurada, sem luz. Fechado numa concha que remete para a cultura pop, kitch, nos anos 1970, tem como hobby colecionar velharias e romances fugazes com raparigas do bairro onde vive. Conduz um Maverick preto de 1977 (o seu «Batmóvel») e é no conforto de um sofá em tons zebra que ouve a sua datada coleção de vinil, outro dos seus maiores passatempos.

O seu maior desgosto encontra eco na falta de atenção de um pai “ausente”, homem despedaçado pelo suicídio da sua mulher e mãe de Neto, quando este contava apenas cinco primaveras. Esse homem é Murrillo Filho, conhecido cronista desportivo dos anos dourados do futebol brasileiro, que agora tenta aproximar-se do filho depois de saber que a morte o espera abraçar em breve.

Entre pai e filho ergue-se uma muralha que dificilmente será transposta, barreira essa alicerçada em mais de duas décadas de mágoas, desconforto esse que é (pouco) contrariado por via de encontros semanais, ao domingo, entre ambos e cujo tema central são relatos e episódios míticos de jogadores de futebol que há muito deixaram os relvados.

À medida que pai e filho e adensam a relação, tal como num desafiante e entusiasmante jogo de futebol, os nervos crescem, as dúvidas aumentam, a vida acontece. O mérito é totalmente da responsabilidade de Sérgio Rodrigues que revela, página a página, um romance compulsivo, escrito à base de uma linguagem que funde estilos “coloquiais” e literários, que nos leva até às tortuosas memórias da ditadura brasileira, época que guarda um terrível segredo da família de Neto e Filho.

Ainda que “O Drible”, eleito um dos 15 melhores romances brasileiros do século XXI pelo jornal brasileiro Brasil Post, seja uma trama carregada de dor, sentimentos (quase) perdidos e reviravoltas, Sérgio Rodrigues estabelece um equilíbrio emocional entre uma carga mais pesada, triste, sem esperança, e alguns toques de habilidade fruto de uma sensibilidade humorística, “taticamente” irrepreensível, que nos prende a atenção até mesmo ao apito final do árbitro, no sofrido tempo de compensação, revelando-se digno de grito de superação até ao último suspiro.

In Rua de Baixo

“Flores”
de Afonso Cruz

Cada pessoa é um universo


Quem gosta de literatura, de livros, reconhece em Afonso Cruz um dos nomes mais entusiasmantes do ato de escrever narrativas desconcertantes, intensas, diferentes, emotivas.

Seja por via do género romance, seja pelos visionários tomos da Enciclopédia Da Estória Universal, Cruz consegue sempre surpreender e o mais recente “Flores” (Companhia das Letras, 2015) segue esse mesmo raciocínio qualitativo e (i)lógico.

No cerne deste livro estão dois homens, dois «universos», duas pessoas que sofrem, cada um à sua maneira, com o quotidiano avolumar dos dias, meses, anos. A vida, longe de perfeita, tem momentos que podem parecer felizes ainda que fugazes e são essas recordações, mais ou menos longínquas, que estes dois seres tentam sofregamente resgatar.

De um lado está um homem maduro cujo passar dos dias é assaltado pelas notícias que surgem nos jornais, nessas folhas cuja mensagem em forma de papel é sinónimo de intrínseca tragédia. Este sucessivo massacre noticioso, juntamente com os problemas que a longevidade, e a solidão, trazem atrelados geram a perda das lembranças, sejam elas o primeiro beijo, as partidas e brincadeiras de criança ou a emancipação de ver e ter uma mulher sem roupa, pronta para (o) amar.

Do outro está um homem pragmático, jornalista, que vive bem com os telejornais, com os dramas televisivos ou impressos em papel, com os cinismos da vida, mas revela atroz intolerância quando vê um chapéu em cima de uma cama. No entanto, lembra bem o calor de um beijo, do amor (perdido) por Clarisse, sua mulher, embora se dê por vencido pelo desgaste da relação.

O destino destes dois homens vai acabar por cruzar-se por forma a contrariar e preencher o vazio que faz parte das suas vidas. E é o vizinho pragmático que decide ajudar o outro, o mais velho, a recuperar a memória perdida por culpa de um maldito aneurisma.

A história cresce, e como o florir de uma bela Dália, Violeta ou Margarida, torna-se num comovente rio que nos leva a navegar por marés de solidão, amor, saudade, traição, culpa e/ou desejo, elementos determinantes para definir a «altitude» das relações.

De um bairro lisboeta até ao coração de um Portugal de outros tempos, da província beata, Afonso Cruz traça em “Flores” uma tangente à própria vida, seja ela envolta de situações esquizofrénicas que levam pessoas a falar e inventar personagens diante do espelho, fadistas que relembrar tempos e traições de uma ditadura que não esquecem, amigos e conhecidos que deambulam em boas e más recordações que servem de peças para um atrevido puzzle biográfico, crianças que escolhem como parceiro o silêncio depois do divórcio dos pais, gente que dança, que não sabe dançar, boxe, jazz, blues e uma misteriosa chave cuja fechadura pode ou não desvendar um redemoinho cuja força é um misto de presente e passado.

Como se escreve, e bem, em “Flores”: «os deuses divertem-se com o nosso sofrimento», pois enquanto homens, gente falível, com defeitos e virtudes, não passamos de «pessoas que se transformam em vidro» tal é a fragilidade patente nos atos individuais ou coletivos.

E para juntar, dar consistência, a todos estes fragmentos, está a arte de Afonso Cruz em transformar um livro numa peça essencial, num companheiro presente, num amigo que não queremos deixar longe. Tal como outros romances do autor, “Flores” é como um abraço sentido em alguém que, finalmente, se deixa conhecer, se revela, um (des)conhecido que ganha o pódio da nossa amizade, que finalmente nos permite «entrar bem mais dentro da espessura».

In Rua de Baixo

“Assim foi Auschwitz”
Primo Levi e Leonardo de Benedetti


Tal como muitos milhares de judeus em plena Segunda Guerra Mundial, o italiano Primo Levi foi deportado para um “campo de trabalho” nazi. O calendário apontava Fevereiro de 1944 quando o promissor químico, na altura com 24 anos, recebeu ordem de deportação para Auschwitz, o derradeiro destino de milhares de pessoas cuja existência não os concebeu enquanto ideais do perfil ariano.

Nessa malfadada experiência, Levi trabalharia na companhia de Leonardo De Benedetti, médico prisioneiro judeu que, mais tarde, depois do final da guerra e da libertação dos campos de concentração pelos Aliados, seria camarada de escrita de um relatório sobre as condições de higiene nesses referidos infernos na terra, a pedido do exército soviético.

Terá sido o primeiro grande exercício reflexivo sobre os Lager – forma como eram também conhecidos os locais de extermínio edificados pelo Terceiro Reich -, tendo chocado pela objectividade e pelo detalhe – “tocava pela precoce e indignada lucidez” – assumindo-se como um primeiro e extraordinário testemunho de Primo Levi, uma das vozes mais relevantes no que toca à antologia de memórias sobre o Holocausto.

Esse relatório e vários outros textos, até à data inéditos de Levi e de De Benedetti, foram agora reunidos em “Assim foi Auschwitz” (Objectiva, 2015), uma reflexão sobre a experiência vivida por mártires que, pela sua condição e convicção religiosa, foram alvo da maior atrocidade vivida pelo ser humano.

Ao longo das quase 300 páginas revivem-se momentos, memórias, factos e dores, mas também – e é isso que distingue de certa forma esta obra das demais escritas sobre o tema – se fazem reflexões e críticas fundamentadas que tornam “Assim foi Auschwitz” numa importante peça que permite conhecer melhor o doloroso e complicado puzzle que foi a Segunda Guerra Mundial e que, sete décadas depois, continua a ser como sal sobre feridas que teimam em não sarar.

Dividido em “capítulos” que versam sobre textos e reflexões registadas entre 1945 e 1986, “Assim foi Auschwitz” inicia precisamente com “Relatório sobre a organização higiénico-sanitária do Lager de Monowitz (Auschwitz III)” – peça inicialmente publicada na revista turisense Minerva Medica e redigida a quatro mãos – e prossegue com vários textos, cronologicamente ordenados, a maioria da responsabilidade de Levi, dos quais se poderão destacar “Relação do dr. Primo Levi nº matrícula 174517 sobrevivente de Monowitz-Buna”, “Testemunhos de um companheiro de prisão”, “Aniversário”, “Carta à filha de um fascista que pede a verdade”, “A deportação de judeus” ou “À nossa geração”.

Entre um registo factual, analítico, e outro lado mais emotivo, há também espaço para a imagem, especificamente no anexo “Documentação fotográfica”, onde o leitor pode contemplar exemplares de época entre relatos oficiais, páginas de jornal ou originais de alguns textos presentes no livro, peças que tornam “Assim foi Auschwitz” uma importante “página” da história de um drama que atingiu desumanamente milhões de inocentes. Como diria Levi, “somos homens, pertencemos à mesma família humana a que pertencem os nossos carrascos. (…) Somos filhos dessa Europa onde está Auschwitz.”

In deusmelivro