terça-feira, 28 de junho de 2016

“O Livro dos Baltimore”
de Joël Dicker

O regresso (auspicioso) de Marcus


A sensação que fica depois de ler “O Livro dos Baltimore” (Alfaguara, 2016), do suíço Joël Dicker, é idêntica à de um atleta que termina uma maratona, sem fôlego mas satisfeito, com o dever comprido, não importa a posição.

Exatamente três anos depois da edição de “A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert” eis que somos novamente convidados a entrar em mais uma corrida literária com o escritor Marcus Goldman e, ainda que a sensação do seu todo e processo criativo seja de um constante deja vu e algo fundado por camadas mais ou menos estereotipadas, o resultado final é muito, muito interessante.

Antes de mais, prepara-se o leitor, ávido conhecedor, ou não, da ainda curta obra de Dicker, que depois de começar a ler “O Livro dos Baltimore” é impossível parar. Desta vez, Marcus, agora um escritor de sucesso no epicentro de um bloqueio criativo, mergulha de cabeça na história da sua família e do Drama que a abalou definitiva e eternamente, tendo como protagonistas os Goldman, nomeadamente os bem-sucedidos Baltimore e os suburbanos Montclair, estes últimos diretamente ligados a Marcus.

Não querendo levantar qualquer spoiler, podemos afiançar que Joël Dicker volta em “O Livro dos Baltimore” ao muito eficaz e construído território narrativo dos flashbacks através de vários segmentos temporais que condensam os principais anos de Marcus, Hillel e Woody, os três primos que componham o núcleo duro do “Gangue dos Goldman”.

Centrando o corpo da estória na adolescência e juventude do trio, Dicker revela o crescimento dessa fraternidade tripla (que mais tarde passa a acolher um desafiador quarto elemento) cujos amores, sonhos, ambições e desejos tinham muitos traços em comum, mesmo que a inveja, por vezes, assombrasse, ainda que de forma mais ou menos tímida, esse universo. Tudo era partilhado, vivido em formato mosqueteiro, até à chegada de Alexandra, a musa inspiradora do trio que lutava, em surdina, pela sua atenção e, claro está, paixão.

Todo o romance centra-se na perspetiva de Marcus, pelo seu relato e particular visão. À medida que as páginas avançam, leitor e Marcus estabelecem uma relação de confiança e somos levados a pensar que estamos lá, no palco imagino por Joël Dicker, à semelhança de um personagem como Leo, vizinho de Marcus, uma espécie de grilo falante que alerta, de forma sui generis, a consciência do protagonista.

Não é por isso difícil, sentir o mundo dos Goldman bem perto de nós, entrar e nele ficar, até ao fim, e interiorizar os seus elementos: Hillel, filho de Saul e Anita, tios adorados de Marcus, inteligente mas de débil constituição física; Woody, quase-órfão e criança disfuncional, adotado pelo clã de Baltimore, atlético, com um apurado sentido de justiça (muitas vezes aplicada com os punhos) e um promissor futuro no mundo do Futebol Americano; Marcus, o primo suburbano, maduro e objetivo, cujo único desejo é prolongar, ad eternum, o “Gangue dos Goldman” e fervoroso crente na redenção por via da amizade.

É também Marcus que vai tomar as rédeas da narrativa e que vai desenhar-nos o intrincado puzzle que é a vida dos Goldman, procurando conhecer os segredos mais obscuros, assim como as intrigas e mentiras da sua família para conseguir, finalmente, entender o que sucedeu antes e depois do Drama, naquele fatídico Dia de Ação de Graças de 2004 e que vai revelar que, afinal, os nossos heróis podem ter “pés de barro” e o que é, ou parece, verdade é uma profunda mentira, transformada por Joël Dicker num livro sedutor e que será um companheiro ideal para os dias de verão que, feliz e finalmente, chegaram.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 27 de junho de 2016

“O Universo Concentracionário”
de David Rousset

Os escravos só dão o seu corpo


Entre os nomes que mais refletiram o flagelo do terrorismo nazi, tanto por via de experiências in loco como através de uma assaltante e terrível herança social, saltam-nos à memória Primo Levi, Robert Antelme ou Hannah Arendt.

Mas muitas outras personalidades lutaram com todas as suas forças contra a máquina montada pelos homens comandados por Hitler. David Rousset, filósofo francês, perfila-se nessa honrosa lista e o facto de ter sido capturado pela Gestapo em 1943 e deportado para os campos de trabalho de Buchenwald e Neuengamme, gravou-lhe no corpo e alma vivências dilacerantes.

Rousset foi o primeiro que ousou introduzir a palavra “Gulag” (campo de trabalho soviético) no léxico dos franceses revelando assim aos seus compatriotas o sistema desumano levado a cabo pelas políticas de Estaline.

A sua libertação das amarras nazis, em 1945, fez crescer dentro de Rousset o sentimento, determinado, de contar ao mundo o que se passava dentro do arame farpado. Assim, ainda física e psicologicamente debilitado, e com o precioso auxílio de Sue, sua esposa, durante cerca de três semanas dita um texto que versava sobre uma visita guiada ao campo de extermínio de Buchenwald.

Esse trabalho, registado em forma de visita guiada, seria publicado em La Revue Internationale em três partes: a primeira em dezembro de 1945, e as duas restantes em janeiro e fevereiro do ano seguinte. O interesse gerado pelos referidos relatos leva a que os mesmos sejam editados em forma de livro, obra essa que seria galardoada com o Prémio Renaudot e figura ainda hoje como um dos mais poderosos e profundos testemunhos de um sobrevivente dos campos nazis.

Falamos de “O Universo Concentracionário” (Antígona, 2016) um livro que reflete o devastador quotidiano dos presos nos campos de concentração assim como o terrível impacto que essa vida cravava em quem lá passou, sobreviveu ou morreu. Este testemunho criado por David Rousset vagueia entre episódios mais descritivos, uma objetividade distante e factual e momentos em que se questiona as diferenças de natureza da espécie humana.

Com recurso ao glossário que Rousset compilou nas últimas páginas do livro, ao leitor é permitido entender o funcionamento da «máquina de extermínio e de produção de terror concebida por Hitler», bem como refletir o exercício criado por o filósofo francês na tentativa de desmontar, de forma assinaladamente lúcida, a obscena brutalidade nazi.

O sangue-frio com que este livro foi escrito e sentido, leva o leitor a imaginar (e não mais que isso) a humilhação das pancadas recebidas por gente de fatos às riscas azuis e brancas/cinza que viu a sua dignidade destruída em nome de um “política” irreal, criada nas sombras de um líder refém da sua solitária loucura.

Ainda que a morte esteja omnipresente no todo de “O Universo Concentracionário”, nas suas entrelinhas também é possível sentir uma pontinha, racional, de vitória por parte de quem conseguir fintar a dama da foice e é hoje, por direito próprio e devidamente reconhecido por todos que amem a paz, um herói. E é por isso que livros como este são obrigatórios para que todos pensemos nos erros do passado, evitando-os, veemente, no presente e futuro preservando assim a memória de quem perdeu a vida por ter nascido com uma fé própria cujo corpo foi escravizado mas nunca o seu crer e alma.

In Rua de Baixo

“Os Últimos Sete Meses de Anne Frank”
de Willy Lindwer


A História recente tornou um relato como “O Diário de Anne Frank” num dos livros mais comoventes e importantes de todos os tempos, assumindo o estatuto de importante testemunho de um dos seus períodos mais negros. Aquilo que seria apenas uma forma de a pequena Anne tentar ordenar o caos (e a dor) que reinava na sua cabeça, é um autêntico marco da “literatura” em forma de quase confissão.

Muito se tem falado, escrito ou visto sobre o rescaldo do Holocausto mas, ainda assim, continuam a existir algumas pontas soltas, pormenores que podem fazer a diferença no estranho acto de tentar entender a razão de tamanhos e desumanos actos.

E é essa (tentativa de) contextualização que levou o cineasta holandês Willy Lindwer a escrever “Os Últimos Sete Meses de Anne Frank” (Vogais, 2016), que pretende reunir mais peças do puzzle que se tornou o percurso da família Frank em plena Segunda Grande Guerra. O livro surge na sequência do documentário televisivo homónimo – que teve honras de ganhar um Emmy -, mas cujo título pode remeter para alguma incongruência ou assumir-se como algo forçado pois, o seu conteúdo, transcende a pessoa de Anne, sendo no mínimo estranho dizer-se no prefácio do livro que todas as testemunhas conheceram Anne Frank – quando, num caso em particular (Hannah), a entrevistada nasceu depois da sua morte.

Para o documentário e livro Lindwer falou com seis mulheres, todas elas assombradas pelo fantasma comum da guerra e do stress emocional associado e que, de uma forma mais ou menos directa, tiveram contacto com Anne Frank ou os seus familiares,nos últimos sete meses da sua vida em Westerbork, Auschwitz e Bergen-Belsen – mas que conseguiram algo que a pequena Anne não conseguiu: sobreviver.

O resultado são seis poderosos testemunhos cujo conhecimento vem ajudar a perceber melhor o infernal quotidiano dos judeus à mercê do III Reich. Utilizando políticas de intimidação sem precedentes, Hitler construiu um rasto de devastação humana, e são esses testemunhos que estão bem presentes nestes seis relatos que mostram alguns traços que extravasam aquilo que Anne Frank escreveu no seu famoso diário, revelando mais dor, violência e crueldade humana.

“Os Últimos Sete Meses de Anne Frank” centra-se essencialmente nas memórias de Hannah, Janny, Rachel, Bloeme, Lenie e Ronnie, revelando uma outra profundidade da perversidade do genocídio nazi e que pode, nas entrelinhas, aproximar o leitor do universo de Anne Frank.

In deusmelivro

terça-feira, 21 de junho de 2016

“Francamente, Frank”
de Richard Ford

Depois do Furacão


Passaram trinta anos desde que o norte-americano Richard Ford, recentemente distinguido com o prestigiante prémio literário Princesa das Astúrias, escreveu “O Jornalista Desportivo”, o primeiro tomo da conhecida série que tem como protagonista o peculiar Frank Bascombe. Nas últimas páginas desse livro, Ford fazia um, muito particular diga-se, elogio à vida que, segundo o escritor, se situava no limbo entre «uma doença ou uma síndrome».

Essa busca pelo sentido, sofrido e cínico, da existência, Ford continuou a sua saga através de “O Dia da Independência”, “A Gordura da Terra” e, mais recentemente este “Francamente, Frank (Porto Editora, 2016).

De escritor sem grande sucesso, passando por jornalista desportivo ou agente imobiliário, Frank Bascombe tem agora setenta anos (idade bem próximo do seu mentor que conta agora com 72 primaveras), está reformado e é com um enorme prazer que reencontramos um dos personagens mais emblemáticos, e bem construídos, das últimas décadas da literatura norte-americana (e não só) cujo perfil mantém elevadas doses de ceticismo e cinismo ainda que se assuma mais reflexivo e, espante-se, em modo carpe diem.

Em “Francamente, Frank”, damos de cara com este septuagenário a viver em Haddam, um subúrbio de New Jersey, no rescaldo do furacão Sandy. A ironia e o politicamente incorreto continuam a ser algumas das suas mais distintas marcas e, como se de uma viagem sem retorno se tratasse, leva o leitor a mergulhar no quotidiano norte-americano, muitas vezes pejado de sucessos, fracassos ou sonhos perdidos, carregando estigmas sociais e económicos como o racismo, a crise financeira e a inveja pura.

Dividido em quatro capítulos, ou novelas, “Francamente, Frank” traça alguns pertinentes retratos de uma América ferida. Num primeiro momento (“Estou Aqui”), Frank é forçado a recuar ao passado enquanto agente imobiliário uma vez que Arne, um antigo conhecido a quem vendeu a sua antiga casa, lhe pede conselhos para tentar vender da melhor maneira, entenda-se lucrativa, as ruínas que hoje são sinónimo desse imóvel agora devastado pelo furacão.

O segundo “episódio” (“Tudo Podia ser Pior”) explora os resquícios de racismo da sociedade norte-americana e leva-nos a conhecer Charlotte Pines, uma «bem vestida negra de meia-idade», que esperava no alpendre do lar de Frank que, outrora, havia pertencido à sua família.

À medida que Pines revela as suas intenções, percebemos que algo de terrível aconteceu entre aquelas paredes e, de forma algo inesperada, procura algum conforto na pessoa de Frank depois de revelar a tragédia que a sua família foi alvo. Assumindo, mais uma vez, o papel de confessor e “amigo” do desconhecido, o ex-agente imobiliário aceita e entende o conflito interior de Charlotte, alguém que consegue resgatar sentimentos de honestidade e nostalgia do âmago de Frank.

Marcado também pelas suas relações pessoais e atribulada relação com os filhos, uns ainda vivos e outro há muito falecido, Frank mostra a sua faceta (forçada mas firme) solidária com Ann, a sua ex-mulher da qual se divorciou há trinta anos e que agora reside num lar, descrito por Ford como «um plano de laboratório vivo para americanos grisalhos», perto de Haddam.

Entre laivos agridoces, Richard Ford revela neste terceiro momento (“A nova norma”) um Bascombe observador, e algo condescendente, face a Ann, uma mulher sempre pronta a magoar o ex-marido, amarga e que a Doença de Parkinson parece fazer adensar o fel que carrega e que nem a presença “ortopédica” de Frank consegue amenizar, mesmo que a época natalícia seja o cenário.

Na derradeira parte deste livro (“Mortes dos Outros”), Frank é assaltado por um estranho e anónimo telefonema que o leva a assistir aos últimos dias de Eddie, alguém que conheceu em tempos e ganhou a alcunha de Olive, e que está às portas da morte devido a um cancro. No seio desta inesperada chamada está um segredo que pode provocar algum abalo na vida de Frank mas que, acima de tudo, expõe a relação de um homem face à morte, a um fim anunciado.

Seja em qualquer das referidas quatro perspetivas, Richard Ford consegue, de forma natural e desarmante, ligar-nos à “pessoa” de Frank e coloca em jogo memórias trágicas, partilhas de fantasmas inesperados, discursos paliativos, contextualizações ora cínicas, melancólicas ou irritantes e irritadas ou até lições de vida sobre a parentalidade, ainda que fugidia. O resultado é um excelente livro, ainda que curto, e que leva a pensar se alguma vez mais teremos a sorte de voltar a ter como companheiro de cabeceira o “velho” Bascombe, fugidio ser que nos assombra a alma a cada década.

In Rua de Baixo

domingo, 12 de junho de 2016

“A Filha de Estaline”
de Rosemary Sullivan

A triste sina da Princesa do Kremlin


Durante cerca de três décadas, enquanto secretário-geral do Partido Comunista Soviético e do seu Comité Central, Josef Estaline purgou e puniu milhões de pessoas, das quais incluem-se membros da própria família, nomeadamente Svetlana Alliluyeva, sua filha.

A crueldade e o sentido “político” do ditador russo foi uma das suas imagens de marca e em “A Filha de Estaline” (Temas e Debates, 2016), a canadiana Rosemary Sullivan, biógrafa, poetisa, jornalista, crítica literária e professora emérita da Universidade de Toronto, levanta o véu sobre a vida de Svetlana, uma vítima da estrutura maquinal do poder soviético e ao longo de mais de 600 páginas, algumas delas ilustradas com fotos de variadas proveniência e de irrepreensível validade histórica, e revela um rasto de puro terror com base na estreita colaboração entre autora e biografada assim como nos aquivos do FBI, da CIA e do Estado Russo.

Nas primeiras páginas deste livro, Sullivan conta a trágica e solitária infância da chamada “princesa do Kremlin”, uma menina que viu a morte precoce da sua mãe, por suicídio, marcar-lhe definitivamente uma vida votada ao desprezo do pai, homem que muito cedo revelou um perfil frio e assassino. Ainda assim, apesar deste isolamento forçado, Svetlana conseguiu fazer amizades ainda que alguns tenham pago esse atrevimento com a vida.

Ao avançar no livro, o leitor fica a conhecer mais pormenores da complicada existência da filha do ditador soviético. Desde a sua educação passando pela vida amorosa, casamentos e nascimentos dos seus filhos, até obviamente ao relacionamento tenso com o seu pai, Rosemary Sullivan revela, de forma muitíssimo competente e bem documentada (nas últimas páginas do livro existem listas de personagens que fizeram parte da vida de Svetlana, referências bibliográficas assim como registos de fontes), uma narrativa biográfica de excelência sem nunca resvalar para territórios de mera “coscuvilhice” e com um ritmo narrativo brilhante.

Uma das partes mais interessantes de “A Filha de Estaline” é a complexa passagem de Svetlana pelo território norte-americano, decisão que surgiu quando ainda estava exilada na Índia, fruto de uma aproximação político, social e económica entre as duas potências que durante décadas alimentaram a chamada “Guerra Fria”. Alliluyeva, que mudaria de nome para Lana Peters para assim afastar a curiosidade mórbida dos jornalistas ocidentais, chegou mesmo a conseguir uma estranha “independência” do Kremlin mas nunca se conseguiu libertar do epiteto de fantoche político nas mãos de soviéticos e norte-americanos.

Algo que também transparece neste livro é a continuada tentativa de Svetlana em sentir o amor do próximo, procurar afinidades intelectuais e uma estabilidade que resgatasse, definitivamente, um sentimento de normalidade que foi sempre traído por decisões abruptas e desequilibradas emocionalmente. Ainda que descrita como espirituosa, amável e companheira, acabou por dinamitar muitas amizades pelos sucessivos ataques de raiva que talvez derivassem da sua inabilidade de lidar com a liberdade, o que também levou a que destruísse quatro casamentos dando origem a mudanças sucessivas de país, deixando mesmo um rasto de propriedades em dois continentes, vindo a morrer, aos 85 anos, em 2011, na pobreza, em território norte-americano.

Um dos maiores legados que Svetlana deixou foi a raiva e incredulidade face ao seu pai. Numa das suas últimas entrevistas, afirmou: «Não lhe perdoo nada! Se foi capaz de matar tanta gente, nomeadamente os meus tios e tia, nunca lhe perdoarei. Nunca…. Destruiu-me a vida».

In Rua de Baixo

“Império do Medo – No Interior do Estado Islâmico”
de Andrew Hosken

Políticas de Terror


A história geopolítica das últimas décadas tem sido assombrada por vulgares ataques terroristas, atos que atentam não só contra os ideais do Ocidente mas, acima de tudo, subjugam a vida de inocentes e espalham uma sensação de insegurança e desconfiança.

Nesse sentido, o percurso do ISIS (Estado Islâmico) reflete uma “filosofia” violenta e assassina, frequentemente alvo de destaque nos noticiários de todo o mundo. Somos assim forçados a assistir a histórias reais, de um horror inusitado, cuja assinatura é sinónimo de genocídio, um dos mais vulgares desígnios da cobardia terrorista.

Somos levados a tentar entender as razões para tal, o que motiva os terroristas, quais os seus objetivos, quando irá parar a sangria e qual a real proximidade da mesma. Os recentes ataques que o território Europeu tem vivido tornam a ameaça presente e induz-nos uma sensação de medo permanente pois, afinal, isto não acontece só aos outros.

É com base nestas premissas que Andrew Hosken, jornalista da BBC e uma das principais figuras que cobriram o 11 de setembro e a “Primavera Árabe”, escreveu “Império do Medo” (Planeta, 2016), um livro que versa sobre o Estado Islâmico desde a sua génese, quando era uma célula subsidiária da Al-Qaeda, até hoje, assumindo-se como força dominante de uma vasta área que ocupa territórios entre a Síria e o Iraque e que teima em aterrorizar o resto do mundo.

Ao longo de 15 capítulos, Hosken, profundo conhecedor do perfil do Estado Islâmico, analisa a complexa teia da organização, bem como a sua ascensão, através de uma cronologia de terror crescente. Ficamos assim a saber, por exemplo, que Abu Musab al-Zarqawi, o primeiro líder jordano do ISIS, recebeu o seu batismo radical numa prisão através dos “conselhos” de um extremista islâmico, e como depois conseguiu aliar à causa seguidores com o objetivo de purgar inimigos, especialmente no Iraque, espalhando a morte como uma espécie de obscena assinatura, até conseguir, em 2014, declarar o califado, com uma área semelhante à Grã-Bretanha e governado segundo as leis da Charia, ato que envolveu o domínio de Mosul, no Iraque.

Pelo meio, Hosken opina sobre a (desastrosa) opção norte-americana de dissolver o partido Baath (constituído por maioria sunita, anteriormente liderado por Saddam Hussein até à sua queda em 2003), que levou a que muitos se aliassem à “causa” terrorista, relata a chegada de Abu Bakr al-Baghdadi ao lugar cimeiro do ISIS, depois da morte de al-Zarqawi’s em 2006, e que envolveu uma crescente escalada de terror com a vulgarização de atentados suicidas, massacres, decapitações, raptos e violações de mulheres e crianças, principalmente na província de al-Anbar, uma das maiores do Iraque. Mas talvez um dos principais passos políticos de al-Baghdadi foi a decisão de entrar na Guerra Civil síria em 2011, ato que forneceu ao grupo terrorista um novo ímpeto que acabou com a já referida declaração do califado.

Em “Império do Medo” há ainda tempo e espaço para uma reflexão sobre a reação norte-americana a todo este processo, bem como à ruptura da liderança iraquiana no coração do próprio território, o que possibilitou a homens como Nouri al-Maliki se tornarem donos de uma impensável riqueza, à boleia do lucro proveniente da venda de petróleo, sendo um dos principais mecenas do ISIS na sua abordagem mais global.

Outra das questões mais pertinentes deste livro é a reflexão que o leitor pode fazer de tal manobras de contextualização e questionar o porquê dos desesperados gritos de asilo por parte dos sírios que chegam, desesperados, à Europa com o objetivo de fugir a uma sina de morte e destruição. E enquanto o mundo assiste e ajuda os milhões de refugiados na sequência deste verdadeiro tsunami migratório, outros aproveitam as ondas e espalham marés de terror onde os verdadeiros objetivos são o controlo, o poder e a vingança, a qualquer preço.

Na sua essência, “Império do Medo” é a ferramenta ideal para quem quer entender o contexto político do Médio Oriente (do e no Estado Islâmico) e o seu conteúdo intenso, real e arrepiante, escrito com uma assertividade apenas ao alcance dos grandes jornalistas, faz transparecer a angústia e o medo de um presente envenenado pela violência.

In Rua de Baixo