segunda-feira, 31 de março de 2014

“A Misericórdia dos Mercados”
de Luís Filipe Castro Mendes

Racionalidade poética



Dividido entre duas paixões, a diplomacia e a poesia, Luís Filipe Castro Mendes é um dos mais elogiados representantes de um certo pós-modernismo poético que miscigena o romântico e o clássico, o onírico e o racional.

Desse intrincado jogo literário resulta agora “A Misericórdia dos Mercados” (Assírio e Alvim, 2014), uma obra transversal que, assente num determinado conceito “niilista/realista”, pensa o Homem em função da sua posição na sociedade de consumo, ou na qualidade de fiel depositário do legado literário cultural do(s) último(s) século(s).

Entre a melancolia e a ironia, entre a descrença e uma (falsa) noção de esperança, Luís Filipe Castro Mendes faz, entre outras breves análises, um elogio crítico do capital e da posição do cidadão nesse cenário. No auge desse triste constatar, escreve-se no poema que dá nome a este livro: «… os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação. Nós é que não fazemos falta».

Ao longo das páginas desse livro não são esquecidos os herdeiros de abril e gente de outras artes e culturas, como Van Gogh, Marcel Proust, Rilke, Tabucchi, Jorge de Sena ou Miguel Gomes. Em “A Misericórdia dos Mercados” e por entre linhas de alguma resignação, há também espaço para a magia da poesia como em “A Anunciação”, onde se acredita que um poema se assemelha a «um riso atrás da cortina da vida».

Com uma obra que teve o seu início na década de 1980 com “Recados”, o seu livro de estreia, Luís Filipe Castro Mendes – que já viu a sua obra ser agraciada com o prémio da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto – confirma, com este “A Misericórdia dos Mercados”, que à poesia é possível uma abordagem conjuntural de uma sociedade atormentada pela devassidão económica e financeira. Ainda que os céus se afigurem cinzentos, a criação poética possibilita sonhar com um arco-íris depois da chuva, pois «o nosso amor é uma vigília sem quebras e nunca nenhum povo se deixou hibernar».

In Rua de Baixo

sábado, 29 de março de 2014

“Flavia de Luce e a Bola de Cristal da Cigana”
de Alan Brandley

Um policial para todas as idades



Bishop’s Lacey, no coração do countryside inglês da década de 1950, vive momentos de alguma agitação aquando da realização da quermesse local. Uma das barraquinhas é diferente. Nela, uma velha cigana dispõe-se, em troca de algumas moedas, a ler a sina dos mais curiosos. Flavia de Luce não resiste e recorre aos préstimos da velha mulher e, a partir desse momento, desencadeiam-se uma série de bizarros acontecimentos na pacata aldeia.

Flavia tem onze anos e é a mais nova de três irmãs. Tem, na paixão pela química, a sua maior razão de vida. Conhecida pelo temperamento difícil, prefere a solidão do laboratório vitoriano – localizado na fria ala este de Buckshaw – à companhia de outros seres vivos, com uma honrosa exceção em forma de inspetor policial.

O pai, um filatelista inveterado, passa grande parte do seu tempo a examinar selos através de uma lupa especial, de forma a encontrar nos pequenos pedacinhos de papel algo que os transformem em especiais alvos de venda, pois as dificuldades financeiras que o pós-guerra adensou estão a fazer estragos. A mãe de Flavia, Harriet, a herdeira da propriedade e do espólio familiar, desapareceu nas montanhas no Nepal e está, presume-se, morta.

Enquanto a mansão se degrada, os jardins aparentam lugares abandonados há décadas, o papel de parede não se distingue da humidade, vão desaparecendo algumas peças do espólio da família. Mas Flavia tem outras preocupações, a maior das quais sobreviver à provação da existência das irmãs, cujo passatempo preferido é maltratá-la. Se Ophelia se perde diante da imagem que o espelho reflete na sua presença e Daphne se refugia na literatura, estas duas almas tão diferentes unem esforços para assustar Flavia, que apenas se sente segura a explorar fórmulas químicas ou ao volante da sua bicicleta Gladys, uma herança da mãe desaparecida.

E foi num desses passeios em duas rodas que Flavia entrou na referida barraca da cigana, acabando por se achar em sarilhos por, acidentalmente, incendiar o local. Apesar do calor das chamas e da aflição inerente, a velha acaba por escapar a tal provação e, na sequência desse infortúnio, Flavia sente-se na obrigação de se redimir e decide ajudar. A proposta é instalar a caravana da vidente em terrenos da propriedade da família de Luce que, em tempos, havia expulsado a velha alma dos mesmos lugares, pois suspeitava-se que tinha sido ela a pessoa que raptara uma criança da aldeia.

E, como Flavia tem uma espécie de íman para estranhos acontecimentos, ao visitar mais tarde a cigana encontra-a numa poça de sangue, à beira da morte. Ato de vingança ou não, este acontecimento desencadeia uma sucessão de bizarras ocorrências – entre elas conta-se a morte de um conhecido malandro de Bishop’s Lacey, a entrada em cena de Porcelain, neta da velha cigana que afinal dá pelo nome de Fenella, a intervenção de fanáticos religiosos e um nunca mais acabar de intrigantes acontecimentos.

Naquela que é a terceira aventura de Flavia de Luce, depois de “A Talentosa Flavia de Luce” e “Flavia de Luce e o Mistério do Bosque de Gibbet”, o escritor canadiano Alan Brandley traz-nos “Flavia de Luce e a Bola de Cristal da Cigana” (Planeta, 2014), um policial muito interessante, de características juvenis, narrado na primeira pessoa e que consegue, num ápice, levar o leitor para dentro de uma trama que tem como destacado interesse o modus operandi de uma menina de onze anos que se revela uma detetive de primeira água.

De uma forma bem-humorada e simples, Brandley mostra-nos o encanto de uma pacata aldeia através de um romance que vai buscar alguns pozinhos de perlimpimpim a tradicionais contos de “órfãs” que enfrentam as atrocidades das ciumentas irmãs, mas sem a pouco simpática figura da madrasta. Flavia é, sem dúvida, uma personagem fascinante, algo inocente e irresistível que se move num intrincado jogo entre o passado e o futuro e que, nesta aventura, abraça provações por si desconhecias de forma a desembaraçar uma sucessão de acontecimentos repleta de nós e pontas soltas. Conseguirá a menina de grandes olhos azuis desenlaçar estes mistérios?

In Rua de Baixo

sexta-feira, 21 de março de 2014

“A maldição dos Dain”
de Dashiell Hammett

Thriller em três atos



Publicado pela primeira vez em livro no final da década de 1920, e anteriormente exibido em fascículos na Black Mask – revista de características pulp norte-americana –, “A Maldição dos Dain” (Porto Editora, 2014) é um dos mais emblemáticos livros de Dashiell Hammett, que chegou recentemente aos escaparates.

Tido, justamente, como um dos fundadores do romance policial noir, Hammett fez escola enquanto escritor depois de uma infância repleta de experiências nas ruas de Filadélfia, tendo mesmo desempenhado a função de detetive privado na agência Pikerton antes de atingir os 20 anos.

Através da figura de Continental Op, um detetive durão que trabalha ao serviço da Agência Continental, Dashiell Hammett conta, na primeira pessoa, uma intrincada trama onde está bem patente um retrato da sociedade norte-americana dos anos 1920, com destaque para os seus vícios e “virtudes”.

Este thriller, contado em três diferentes atos, centra-se na vida de Gabrielle Dain Laggett, uma jovem extremamente cativante junto dos homens – apesar da sua peculiar aparência -, viciada em morfina e em cultos religiosos. Aparentemente, quem a rodeia sofre de uma espécie de violenta maldição: quem ousar penetrar no seu circuito íntimo vê-se arrastado para a morte.

O jogo começa depois de Continental Op ser chamado a intervir num misterioso roubo de diamantes pertencentes à família Leggett. Tendo como cenário São Francisco, o detetive tenta desvendar uma estranha teia de roubos, mentiras e assassinatos. No meio da investigação, Op descobre a ligação de Gabrielle à seita do Santo Graal, que promove verdadeiras cenas de Hollywood de forma a cativar seguidores, bem como para resolver questões que se assumem de vida ou morte. À medida que a investigação decorre fica a dúvida: será que a maldição familiar existe de facto ou estamos perante algo muito mais humano e fatal?

Através de um crescendo emotivo em forma de delicado puzzle, onde o sangue é um elemento assíduo, Hammett vai apresentado personagens como cientistas à beira do colapso nervoso, famílias “unidas” pela desgraça e interesse, deuses com pés de barro, escritores manipuladores, gente desconfiada da sua imagem refletida no espelho e uma miríade de personagens em carrossel, bem como uma América violenta onde as armas são a solução mais acessível e definitiva para os problemas.

Ao longo das três partes deste romance – “Os Dain”, “O Templo” e “A Estrada da Falésia” – existem personagens e “protótipos” que marcam os acontecimentos, tornando-se no maior atrativo deste livro. Se Continental Op é dono de uma linguagem descritiva e serve de fio condutor a todo este romance, Gabrille é, aos 20 anos, uma “femme fatale”, inebriada pelo efeito da morfina que, enquanto o mundo desaba à sua volta, se refugia num passado que justifica qualquer tipo de atitude por mais descabida que aparente ser. Já o escritor Owen Fitzstephan é a caricatura do novelista – e por que não dizê-lo do próprio Hammett – que, através de um raciocínio “lógico”, tenta desmantelar um estranho enigma; os seus diálogos com Op revelam-se autênticos pontos de situação de um livro repleto de voltes de face e reviravoltas.

Uma palavra para a sátira que é feita em volta da seita do Santo Graal, que revela o sentido crítico que muitos atribuíam a um país cuja descrença na religião tradicional se virava para cultos profícuos, em soluções alternativas para todos os males e maleitas cuja concretização tinha como base uma fé estritamente associada ao vil metal. Mais uma vez, Dashiell Hammett não perde a oportunidade para diabolizar sociológica e psicologicamente a sociedade da época.

Ainda que longe da subtileza de obras como “O Homem Sombra”, também ele recentemente lançado pela Porto Editora, “A Maldição dos Dain” é um romance clássico aconselhadíssimo a todos os amantes de um bom policial, especialmente aos leitores que apreciam a presença de alguns tiques de um acutilante “soft gore”. O ambiente é sedutor e a ação é uma constante, enquanto se avança face a um mistério repleto de teorias circulares e assentes em sucessivas camadas onde a razão e a insanidade são inseparáveis.

In Rua de Baixo

terça-feira, 11 de março de 2014

Band of Horses
“Acoustic at the Ryman”

Um abraço infinito



Nascidos na “elétrica” Seattle, em 2004, os Band of Horses contam com quatro álbuns de originais cuja orientação sonora vagueia entre o rock de características indie e o alternative country, sendo que o recente “Acoustic at the Ryman” se aproxima mais do ambiente intimista do som oriundo de Nashville, muito por culpa da ausência da eletricidade e da refrescante presença do piano.

Gravado com a ajuda do formato Direct-Stream Digital, em alta resolução, e tendo por palco o icónico Ryman Auditorium – conhecido por ser o lar do Grand Ole Opry, um evento dedicado à country music cuja primeira edição remonta a 1925 – “Acoustic at the Ryman” é muito mais do que um simples registo ao vivo, é uma forma de reconstruir algumas das mais bem-sucedidas e brilhantes canções de uma banda que tem na vibrante voz de Ben Bridwell um dos seus maiores trunfos e que na edição de 2013 do Optimus Alive tivemos o privilégio de ouvir bem perto.

Gravado num ambiente que sugere uma invejável intimidade entre banda e público, este disco promove as influências que os Band of Horses receberam em termos de maneirismos sulistas e country, mas que nos seus registos mais elétricos não são tão notórias. O resultado é uma coleção de (apenas) dez músicas que encantam pela simplicidade que exibem, graças a uma deliciosa entrega dos músicos, que arriscam momentos sem rede, como acontece, por exemplo, na versão de “Older”, um exercício que permite um final à capela, depois de uma interpretação a invocar o “fantasma” de Neil Young.

O disco abre com “Marry Song”, um dos temas mais bem recebidos de “Cease to Begin”, e, logo à primeira, é impossível não sentir a magia de uma interpretação que entra pelos ouvidos adentro e teima em ficar no mais íntimo dos nossos cantos interiores. O piano vibra dolente, enquanto as cordas sublinham as palavras cantadas pela voz à beira do abismo romântico de Bridwell. As palmas que assinalam o final da canção são sinónimo do que se sentia nas duas noites de abril de 2013 que resultaram neste álbum. Inveja? Sim, pura e dura.

“Slow Cruel Hands of Time”, de “Mirage Rock”, mostra como umas simples cordas podem transformar uma canção em algo maior que a vida, em momentos onde apenas existe a música, quem a toca e que tem a sorte de a ouvir e guardar dentro de si. Bridwell solicita apoio vocal e o resultado é tocante. Por entre gritos surdos de algum histerismo contido surgem as primeiras notas de piano de “Detlef Schrempf” e o resultado é uma verdadeira obra-prima romântica até à medula. Impossível ouvir apenas uma vez.

Em território declaradamente country, "Everything's Gonna Be Undone" arranca palmas a compasso, enquanto se cantam versos sobre corações partidos. Ainda a falar em paixões dilacerantes, "No One's Gonna Love You", um dos maiores hinos da banda e o regresso a “Cease to Begin”, exige silêncio a quem ouve e dedicação a quem dedilha a guitarra e canta. Aplausos curtos e tímidos assinalam momentos intensos e irrepetíveis.

Em temas como “Factory”, resgatado de “Infinite Arms”, o calor resultante das vozes que em palco abriam a alma aumenta as doses de doces harmonias que têm na já referida “Older” o seu expoente máximo. Já "Wicked Gil", de “Everything All the Time”, é apresentada sob uma roupagem cuja emoção reside na fantástica combinação entre piano e voz, que relegam para “segundo plano” os restantes instrumentos.

Já no caso deste “Acoustic at the Ryman”, “Funeral” leva a audiência ao delírio e o crescendo da sua interpretação eleva ao máximo esplendor a genialidade do quinteto de Seatlle. O final de curtíssimo disco é feito com um “Neighbor” cantado a várias gargantas, à capela, que faz descobrir que existe talento vocal para além de Bridwell.
 
Acima de tudo, este disco mostra uma outra faceta de uma banda que se “esconde” atrás de várias camadas de eletricidade e tiques de estúdio, mas que é, na realidade, um coletivo muito talentoso, capaz de sobreviver a transmutações sonoras várias, mantendo sempre um nível qualitativo elevadíssimo.

Coerente, envolvente e altamente recomendável, “Acoustic at the Ryman” apenas peca, dizemos nós, numa pequena questão. Exigiam-se mais versões, interpretações, chamemos-lhe o que quisermos, de “Is There a Ghost”, “Laredo” ou “The First Song”. Seria bom demais?

Alinhamento:
 01.Marry Song
02.Slow Cruel Hands of Time
03.Detlef Schrempf
04.Everything's Gonna Be Undone
05.No One's Gonna Love You
06.Factory
07.Older
08.Wicked Gil
09.Funeral
10.Neighbor

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

segunda-feira, 10 de março de 2014

Cristina Branco em entrevista

"A minha voz habita facilmente vários espaços no mapa da música” 

Uma das mais marcantes vozes da sua geração, Cristina Branco relembra os 17 anos de carreira em “Idealist”, uma caixa com três discos que evocam o passado, sentem o presente e apontam ao futuro. Assumidamente eclética e, hoje, longe dos idealismos de outrora, Cristina Branco fala-nos um pouco sobre a génese desta edição tripla, do papel da música na sua vida, da nova geração de fadistas e da possibilidade de um pequena tour por terras nacionais.



Palco Principal – Desde sempre pautou a sua carreira de forma dissidente, tendo em conta aquilo que se entende como o perfil do fadista. Pisou o palco pela primeira vez no estrangeiro (na Holanda) e conseguiu, como poucos, crescer com o Fado. Esta coletânea reflete todo esse percurso ou serve como um qualquer ponto de viragem?

Cristina Branco - A antologia reflete simplesmente o caminho, desde os primórdios envergonhados até uma interpretação mais consistente.

PP – É sabido que fazer um “melhor de…” é tarefa complicada. Como surgiu a ideia para a criação de “Idealist” e qual o critério para chegar a estas quase seis dezenas de canções?

CB - Sim, foi complicado. Devo dizer que a ideia não partiu de mim - foi a editora que o sugeriu, numa primeira instância. Aliás, dificilmente me imaginava a realizar esta tarefa tão cedo, sendo que, na verdade, já lá vão 13 discos! O critério foi intuitivo e, mais do que outra coisa, um exercício de memória. Foram os temas eleitos do público e os que me marcaram por esta ou aquela razão, pessoal, profissional. Costumo dizer que os meus discos refletem a minha evolução como indivíduo, dão-me sempre a antevisão do momento seguinte.

PP – Depois de ouvirmos os três discos de “Idealist” (“Fado”, “Poemas” e “Ideal”), sentimos a complexidade da sua obra, assim como o seu lado eclético. Em que território é que a Cristina Branco se sente “melhor”? Enquanto recria clássicos fadistas, como “Gaivota” ou “Trago um fado nos sentidos”, quando interpreta temas como “A case of you” ou “Construção”, ou quanto canta originais seus?

CB - Se não me sentisse confortável em todos esses territórios, seriam experiências falhadas por esta ou aquela razão. A verdade é que a minha voz habita facilmente vários espaços no mapa da música. Eu sou todos eles, porque os interiorizo antes de cantar e dou-lhes um cunho muito pessoal. Claro que os originais não têm passado, foram feitos para mim e tudo o que lhes imprima é novo e, logo, um desafio ainda maior.

PP – Sendo que a grande maioria dos temas de “Idealist” são Fado, como fazer coexistir a canção portuguesa por excelência com outras peças cantadas em francês, inglês ou castelhano? Deixa-se de ser “fadista” ao cantar numa língua que não o português?

CB - Acredito que sim. Ser fadista é estado de alma, diz-se. Não renego essa também minha condição, mas não creio que, quando me atiro a outros géneros musicais, a expressão fadista coexista. Fecho os olhos e vou buscar a minha orelha eclética, curiosa.

PP – Tem por hábito afirmar que é uma mulher privilegiada, pois sempre “cantou o que quis cantar”. Depois de 17 anos de carreira, 13 discos lançados e muitos concertos dados ainda sente esse privilégio? É uma idealista por natureza?

CB - Tenho esse privilégio e outros, como partilhar o palco e os discos sempre com grandes músicos! Idealista já fui mais, apesar de, na música, ainda ter algumas reservas de convicção!

PP – Para além dos muitos temas já anteriormente editados, “Idealist” traz três surpresas: os inéditos “Fado de partilha”, “Se fores, não chores por mim” e “Na rua do silêncio” - dois originais e uma reinterpretação. Qual a razão da sua inclusão nesta coletânea?

CB - Porque pedi para regravar alguns dos temas mais antigos, mas pouco depois percebi que não seria justo para com o público (isso surgirá em palco apenas), e a proposta passou a ser de criar novas músicas. Foi muito justo e muito mais estimulante! Assim percebemos todos que o caminho continua!

PP – O Fado é, hoje, um género com enorme aceitação e são muitos os novos e bons intérpretes que têm surgido ultimamente. Como encara esta “nova geração” de fadistas?

CB - Têm uma grande vontade e um desprendimento do passado que lhes permite ousar e ainda assim defender o bastião! Com eles, também chegou um público jovem, seja pela nova atitude, seja pela qualidade, seja pela curiosidade que veio de fora e entrou de rompante, mostrando a todos, finalmente, que se podem orgulhar de algumas coisas que se fazem em português e para portugueses. Bem hajam!

PP – Para promover “Idealist” tem agendados dezenas de concertos em países como Israel, Rússia, Bélgica, Holanda, Alemanha, Espanha, Suécia, França…e Portugal. O que a motivou a colocar o concerto marcado para o dia 11 de dezembro no CCB – único agendado para terras lusas – como última data?

CB - Foi mero acaso e fruto de um encontro de agendas entre o CCB e nós. Além disso, como há ainda alguma liberdade de movimentos, resolvemos considerar a construção de uma pequena tour à volta dessa data.

In Palco Principal

Playstation 4

De e para jogadores



Numa época em que se celebra a oitava geração das consolas de videojogos que mais pode acontecer? A Sony entrou nesta guerra há já algumas décadas e tem vindo a criar laços há quatro gerações. É certo que por vezes o embate particular com a Microsoft tem ensombrado o sucesso do gigante nipónico mas a nova PS4 tem tudo, ou pelo menos assim o parece, para cimentar, ainda mais, a posição da Sony no mercado.

Não vai ser fácil bater a concorrência – a Xbox One parece ser uma excelente máquina – nem fidelizar os fãs da PS3 mas só o tempo pode ditar a longevidade da PS4. À primeira vista, ainda sem ligar a consola, saltam aos olhos algumas diferenças face à antecessora consola da casa mãe. O seu perfil é mais elegante e atraente, o DualShock 4 é uma agradável surpresa e sabemos de antemão que a compatibilidade entre PS4 e PS3 está, globalmente, assegurada e que a PS Vita assume-se como o parceiro interativo perfeito.

No que toca ao design, a nova consola da Sony vai buscar mais familiaridade à PS2 do que em relação à PS3, mesmo tendo em conta as suas versões slim lançadas ultimamente. A cor preta, sóbria, interage de forma perfeita com o seu perfil angular que lembra um paralelogramo. A frente da consola mostra duas entradas usb, o botão de on e eject e a entrada de Blu-ray. Como que dividida em dois, a PS4 revela uma linha que ao contrário de outras não divide mas sim aglutina. Trata-se no néon que indica aquilo que a consola está a fazer. Ao ligar pela primeira vez a PS4 e impossível não sentir um arrepio ao olhar para aquele fio de luz azul…

Analisando a traseira da PS4, encontramos uma miríade de entradas. Para além da entrada do cabo de alimentação, registamos a entrada HDMI, uma porta Ethernet, uma porta ótica de áudio bem como uma entrada usb para ligar acessórios como por exemplo a PlayStation Camara. Para auxiliar a identificação dessas entradas através do tato a PS4 observa uns recortes na sua estrutura.

Ainda a respirar com dificuldade continuamos a “desembrulhar” a PS4. Tal como todas as consolas, a nova geração Sony não deve ser apenas julgada pelo seu aspeto. Para além da arquitetura do hardware está a parafernália técnica do seu sistema operativo e a PS4 revela algumas semelhanças com o universo PC.
Tecnicamente estamos perante uma consola de 16-core, um processador Jaguar de 64 bits com oito gigas, uma RAM GDDR5 e a sua unidade gráfica tem um processador AMD. O disco tem 500 gigas e à semelhança da PS3 a drive é de Blu-Ray. Não existem versões de disco diferentes e o sistema não permite a aplicação de discos externos. Eis a principal razão que inviabiliza a realização de downloads de filmes ou música na PS4. A gestão média é realizada inteiramente através de streaming.

Em termos de acessórios, a PS4 não vem muito recheada. Para além da consola em si, recebemos um DualShock4 – seja feita a devida vénia – , um cabo usb com redução micro-usb, um cabo HDMI e uns auriculares que podem ser ligados ao comando.

O imenso mundo azul

Chega a vez de fazer a ligação da consola, de lhe dar vida. O coração pulsa e o écran ganha uma tonalidade azul. Passadas três décadas das primeiras ligações do saudoso ZX Spectrum, ligar uma consola ou “bicho” semelhante continua a ser um ato maravilhoso. De DualSchock4 em riste, que bela sensação…, começamos a interagir. Linguagem em português e as primeiras instruções tem a ver com poupanças de energia. Ajustado o tempo de sleep da consola recebemos com um sorriso a mensagem: “A sua PS4 está pronta”. É nós, estaremos preparados?

As primeiras impressões revelam um ambiente interativo. O menu mais fluído que o da PS3 apresenta novidades. Cinco “quadrados”, uma mão cheia de potencial. Vemos o ícone The Playroom e mais ao lado os três “w”. A ordem é para avançar e chega a vez de gerar um perfil. Nome próprio, apelido, avatar…check! Depois definir o grau de privacidade no PSN. O que podem ver os nossos amigos? A decisão é nossa. Ah, e podemos partilhar atividades no PSN, aceder ao Facebook e ainda aderir ao PlayStation Plus.

Estamos, definitivamente, a operar num interface muito interessante. O antigo XrossMediaBar, incluído no mundo Sony nos últimos anos foi repensado e a PS4 revela-se bem mais ágil com a ajuda do PlayStation Dynamic Menu. A interatividade é constante, as janelas como por exemplo a que leva à PS Store é um forte atrativo. A dinâmica do ambiente faz com que tudo o écran viva e dependendo daquilo que estejamos a fazer assim reagirá todo o conjunto.

A zona principal apresenta uma linha à base de generosos ícones que se expandem assim que se solicita a sua atividade. À esquerda, por exemplo, estão as novidades e podemos vislumbrar jogos recentes. Mesmo ali pertinho fica o “Live” e o browser ou ainda a informar sobre algumas transferências ativas.

Independentemente da secção onde nos encontramos, existe informações sobre “amigos” em linha. Queremos jogar online? Mostrar feitos em forma de gameplay? Dizer que estamos “vivos”? Tudo é possível neste mundo onde a interatividade aproxima os utilizadores e a presença das redes sociais permite levar-nos cada vez mais longe.

O interface dinâmico pode registar alterações quando, por exemplo, inserimos um Blu-ray. Automaticamente o jogo é instalado no disco rígido. O processo é extremamente rápido e insonoro. Depois de terminado eis que temos mais uma janela no nosso menu dinâmico. Tal também se verifica ao instalar um jogo a partir da PS Store.



Vamos jogar?

A PS4 é bonita? Sim. O interface é dinâmico? Sim, sim. E a máquina, que tal se porta? Na teoria a PS4 é bem mais potente que a sua antecessora mas é complicado conseguir respostas concretas quando estamos cerca de sete dias diante de consola e temos uma experiência de cerca de sete anos com a máquina a comparar.

Para além das questões que já focamos como a interação entre menus, velocidade de transferências e afins, um forte indicador dos trunfos da PS4 é a sua realidade em termos de jogos pois, sem sombra de dúvidas, a nova consola da Sony nasceu com esse propósito. Ao testar jogos como “Knack” e “Killzone: Shadow Fall” é nítida a melhoria técnica no que toca ao pormenor e efeitos visuais. Ainda assim, dizemos nós, essas questões ainda podem ser melhoradas e a PS4 precisa, urgentemente, de um jogo charneira.

A ideia que a todos transparecia aquando o lançamento da PS4 é que estaríamos perante a mais significativa revolução entre gerações de consolas mas tal não é notório. Dizemos mais, se já existiu um importante salto qualitativo entre gerações de consolas tal existiu no confronto direto entre a PS2 e a PS3.

Que podemos então afirmar à laia de conclusão? Bom, entremos no campo das perspetivas. Se encararmos a PS4 como uma “evolução” da PS3 não estaremos longe da verdade. A nova consola Sony apresenta uma nova filosofia no que toca à realidade da jogabilidade permitindo a partilha de momentos de jogo e ações diversas e aposta no contacto com as redes sociais. Em termos de comando, o DualShock 4 bate de longe o antecessor a família Sixaxis. No que toca aos acessórios, a câmara é um objeto deveras interessante e em conjunto com o DualShock4 permitem ao Playroom brilhar sobremaneira. Mas será que vale, para já, a pena apostar na sua compra? Bom, se já tem uma PS3, aconselharíamos a esperar mais um pouco mas se está na dúvida entre a aquisição de uma destas duas consolas não hesite e atire-se de cabeça à PS4.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 6 de março de 2014

Guta Naki - "Perto Como"

No hemisfério certo



Corria o ano de 2010 quando ouvimos pela primeira vez os Guta Naki. Fruto de um esporádico zapping na tv, quis o destino que os ouvidos de quem agora vos escreve tivessem sentido um arrepio singular ao escutar “Um Novo Mundo”. O projeto português passou, então, a despertar grande curiosidade. A investigação pós-descoberta revelaria que a banda alfacinha havia vencido o Restrat Resound Fest, evento que também já consagrou bandas como os Pontos Negros.

O disco de estreia de Cátia Pereira, Dinis Pires e Nuno Palma reunia uma coleção de excelentes temas, que emanavam um pop melódico, melancólico, que combinava na perfeição tiques elétricos e eletrónicos. A música, quente, hipnótica e algo claustrofóbica encontrava um aliado de ouro na prestação dedicada, por vezes ternurenta, outras vezes lânguida, do espectro vocal de Cátia Pereira. A simbiose entre música e voz resultava na perfeição através de “uma língua sem identidade”.

Passados quatro anos desde a edição do homónimo “Guta Naki”, chega, finalmente, o seu muito aguardado sucessor. “Perto Como”, uma edição Meiofumado, traz mais um punhado de excelentes canções repletas do sentido único que caracteriza a música do trio, assente na relevância e acutilância da voz e dos instrumentos, da palavra e do som. “Perto Como” apresenta um trio mais orgânico, ao qual a guitarra, agora empunhada por Cátia, não é alheia. A atmosfera geral mistura desejo e ingenuidade, uma poesia “literária” e complexa, e a hipnose sonora acontece passados poucos segundos do contacto entre a música e os sentidos de quem a ouve.

Antes do “disco”, os Guta Naki tiverem a gentileza de mostrar o seu novo reportório em registo ao vivo, via internet, no final de janeiro. Para os mais distraídos, o mesmo ainda pode ser visto na página oficial da banda.

No que toca ao segundo longa duração dos Guta Naki, o mesmo observa algumas diferenças face ao disco de estreia do trio lisboeta. No todo, “Perto Como” está mais ensimesmado, experimental e até mesmo mais sensual. À exceção de “Ana”, peça musical cuja letra resulta da adaptação de um poema da escritora Maria Gabriela Llanson, toda a poesia do disco é da responsabilidade de Cátia Pereira que, para além de possuir uma das vozes nacionais mais quentes, revela uma interessante veia poética.

O novo álbum dos Guta Naki começa com uma curta introdução naif, de toada primaveril, onde o riso de “Ikari” serve de ponte para a maravilhosa “Ainda Não Sei”, um exercício dolente onde cordas, elétricas, e elementos eletrónicos coabitam livremente num universo sem rede, que tem numa voz apetecível um excelente porto de abrigo. Ainda que esta canção avance com algumas dúvidas, existenciais ou não, os Guta Naki estão no hemisfério certo.

“Onde Ela Mora” inicia sobre um labirinto, que se desenvolve, aos poucos, numa das canções mais orelhudas do disco. A batida de toada ligeiramente “tropical” serve de uma base, que tem num acorde omnipresente outra ponte de referência. As canções dos Guta Naki têm uma capacidade inata de crescimento e tal característica está bem patente nesta faixa. Já “O Meu Amor é Índio (Pavane para o Moço Morto)” faz brilhar o baixo de Dinis Pires, cujo som procura companhia, a espaços, nas súplicas de uma guitarra sonhadora que, por momentos, se transfigura através de uma alma mais groove.

O disco avança com a bonita “TuNunca”, uma canção que faz sobressair a voz de Cátia que, aos poucos, é envolvida delicadamente por toques suaves de sons oriundos de vários quadrantes. Depois do ritmo mais “baladeiro” de “TuNunca”, chega a vez de “Ana”, um exercício musical espartano que apenas sublinha o espaço dedicado à voz. O som respeita o silêncio e Cátia sussurra para dentro de nós.

“A Terra de Ninguém” faz regressar a guitarra, que traz por companheira a esporádica eletrónica suave e doce. Sem grandes artifícios, os Guta Naki transformam uma canção de “simples” arquitetura em momentos de beleza, acompanhada por um português cheio de açúcar. O final em quebranto eleva as doses de um contido mas muito bem-vindo dramatismo.

O registo segue com a labiríntica “O Homem que Dança”, uma canção descaradamente pop e deveras libidinosa, que traz à baila algumas palavras em inglês. Se sentir o corpo a balançar, ainda que de forma tímida, não estranhe e deixe-se entranhar.
O ambiente electro-noise de “Todas as Tuas Memórias” capta de imediato a audição, quer pela “estranheza”, quer pelo sentido (ar)rítmico. Devagar, devagarinho, somos conquistados por um estado letárgico, quebrado aqui, na parte final da canção, por uma intervenção mais presente dos instrumentos. Ao contrário do que canta Cátia, deixemo-nos ir...

Para o final do disco, os Guta Naki reservam “Zeferino” e “Acreditava no Nada”. Se, no primeiro caso, o pop/rock descarnado serve de palco para um canto desencantado, já a derradeira canção do disco, “Acreditava no Nada”, traz de regresso momentos nostálgicos, melancólicos e doces, que misturam acordes de guitarra e uns laivos de piano com uma batida arrastada, que adivinham um sonho que está para vir. Sem dúvida, uma excelente forma de terminar um disco aprazível e reconfortante.

Ainda que não de uma forma tão imediata como o que acontecia no primeiro disco da banda, “Perto Como” é um registo que cativa, que merece atenção e que precisa de ser explorado, pois cresce a cada audição. Sem pressas, os Guta Naki, fazem um disco inteligente, que tem, indiscutivelmente, na simbiose entre voz e som um dos seus maiores atributos e qualidades.

Classificação do Palco: 7/10

Alinhamento:
01.Ikari
02.Ainda não Sei
03.Onde Ela Mora
04.Meu Amor é Índio (Pavane para um Moço Morto)
05.TuNunca
06.Ana
07.Terra de Ninguém
08.O Homem que Dança
09.Todas as Tuas Memórias
10.Zeferino
11.Acreditava no Nada

In Palco Principal

quarta-feira, 5 de março de 2014

“A Porta Secreta”
de Ana Teresa Pereira

O princípio do mundo



O universo particular de Ana Teresa Pereira pauta-se por um misto de serenidade, mistérios – num sentido muito amplo – umas pitadas de atmosfera britânica, tons de um deslumbramento naïf e um ensimesmado bom gosto.

Nada e criada no Funchal, a autora de livros como “Inverness” e “Até que a Morte nos Separe” mantém um perfil discreto, fascinante e ímpar. Reclusa de uma ilha e de uma forma de escrever deliciosamente única, Ana Teresa Pereira coloca magia nos seus livros: as palavras envolvem o leitor, comovem, sejam policiais, ensaios sobre a natureza humana ou livros juvenis.

E aquilo que “A Porta Secreta” (Relógio d’Água, 2013) revela é uma aconchegante história juvenil que reúne muitos dos tiques da escrita da autora. Há nevoeiro, vidas simples que se cruzam no destino, referências ao cinema clássico, flores que libertam um cheiro reconfortante, casas que se transformam em lares, animais de estimação, momentos de crise emocional que aspiram esperança e felicidade, pinturas que mudam vidas.

Ema, mãe de Sara e Miguel, amante confessa do ambiente outonal, procura uma nova casa e quer ultrapassar a perda do marido. A ideia é abandonar o cinzentismo urbano e abraçar o campo colorido. A medo, faz a vontade aos pequenos e arrenda uma casa no campo. As rotinas mudam, para melhor. A Ema, Sara e Miguel junta-se um cão – Tom – e uma gata – Lucy -, que conferem ainda mais conforto a uma família (in)completa. Ao fim de semana faz-se pão caseiro, passeia-se, explora-se a vizinhança, descobre-se uma porta secreta. Para onde?

Os mistérios sucedem-se e “A Porta Secreta” traz ao leitor pequenas estórias dentro da estória. Há um misterioso e sisudo jardineiro que veda a passagem a quem quer explorar uma casa museu sem o ser, há luzes que se acendem a meio da noite numa casa vazia, quadros que podem mudar a vida de quem os observa – referência a uma omnipresente atmosfera britânica -, rostos e pinturas que revelam a presença de Deus, um pintor especial que gosta de livros policiais, gente que ama.

É também inegável a presença do espírito literário de Enid Blyton mas, em vez de cinco almas aventureiras, “A Porta Secreta” dá-nos quatro humanas e duas animais. Mais, deste simples mas maravilhoso livro, Ana Teresa Pereira revela pinceladas de uma humanidade imensa que se revelam através das ações de “o” Miguel ou de “a” Sara, bem como resultantes do imaginário de Turner, aqui bem patente na forma de um quadro seminal. Mais uma vez a pintura assume-se como uma fórmula aglutinadora de poesia quotidiana.

Envolto de um mistério e carinho juvenil, as páginas fluem delicadamente, algumas delas ilustradas pelos traços cinza de Eduardo de Freitas. Alguns personagens são “negligenciados” em detrimento do que realmente importa, mesmo que por vezes essas ausências assumam a forma de um ligeiro puzzle emocional. Resumindo – ou talvez não -, “A Porta Secreta” é um livro que se deixa ler de forma dolente, outonal, delicada e que é ideal para toda a gente, dos 9 aos 99.

In Rua de Baixo