quarta-feira, 5 de março de 2014

“A Porta Secreta”
de Ana Teresa Pereira

O princípio do mundo



O universo particular de Ana Teresa Pereira pauta-se por um misto de serenidade, mistérios – num sentido muito amplo – umas pitadas de atmosfera britânica, tons de um deslumbramento naïf e um ensimesmado bom gosto.

Nada e criada no Funchal, a autora de livros como “Inverness” e “Até que a Morte nos Separe” mantém um perfil discreto, fascinante e ímpar. Reclusa de uma ilha e de uma forma de escrever deliciosamente única, Ana Teresa Pereira coloca magia nos seus livros: as palavras envolvem o leitor, comovem, sejam policiais, ensaios sobre a natureza humana ou livros juvenis.

E aquilo que “A Porta Secreta” (Relógio d’Água, 2013) revela é uma aconchegante história juvenil que reúne muitos dos tiques da escrita da autora. Há nevoeiro, vidas simples que se cruzam no destino, referências ao cinema clássico, flores que libertam um cheiro reconfortante, casas que se transformam em lares, animais de estimação, momentos de crise emocional que aspiram esperança e felicidade, pinturas que mudam vidas.

Ema, mãe de Sara e Miguel, amante confessa do ambiente outonal, procura uma nova casa e quer ultrapassar a perda do marido. A ideia é abandonar o cinzentismo urbano e abraçar o campo colorido. A medo, faz a vontade aos pequenos e arrenda uma casa no campo. As rotinas mudam, para melhor. A Ema, Sara e Miguel junta-se um cão – Tom – e uma gata – Lucy -, que conferem ainda mais conforto a uma família (in)completa. Ao fim de semana faz-se pão caseiro, passeia-se, explora-se a vizinhança, descobre-se uma porta secreta. Para onde?

Os mistérios sucedem-se e “A Porta Secreta” traz ao leitor pequenas estórias dentro da estória. Há um misterioso e sisudo jardineiro que veda a passagem a quem quer explorar uma casa museu sem o ser, há luzes que se acendem a meio da noite numa casa vazia, quadros que podem mudar a vida de quem os observa – referência a uma omnipresente atmosfera britânica -, rostos e pinturas que revelam a presença de Deus, um pintor especial que gosta de livros policiais, gente que ama.

É também inegável a presença do espírito literário de Enid Blyton mas, em vez de cinco almas aventureiras, “A Porta Secreta” dá-nos quatro humanas e duas animais. Mais, deste simples mas maravilhoso livro, Ana Teresa Pereira revela pinceladas de uma humanidade imensa que se revelam através das ações de “o” Miguel ou de “a” Sara, bem como resultantes do imaginário de Turner, aqui bem patente na forma de um quadro seminal. Mais uma vez a pintura assume-se como uma fórmula aglutinadora de poesia quotidiana.

Envolto de um mistério e carinho juvenil, as páginas fluem delicadamente, algumas delas ilustradas pelos traços cinza de Eduardo de Freitas. Alguns personagens são “negligenciados” em detrimento do que realmente importa, mesmo que por vezes essas ausências assumam a forma de um ligeiro puzzle emocional. Resumindo – ou talvez não -, “A Porta Secreta” é um livro que se deixa ler de forma dolente, outonal, delicada e que é ideal para toda a gente, dos 9 aos 99.

In Rua de Baixo

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