quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

“O inverno de Frankie Machine”
de Don Winslow

As sete vidas do homem do isco



Ex-detetive privado e autor de romances como “Selvagens”, o nova-iorquino Don Winslow regressa aos escaparates com “O inverno de Frankie Machine” (Porto Editora, 2014), um magnífico thriller repleto de ação e recheado de personagens donas de um perfil apaixonante, com natural destaque para Frank Macchianno.

A primeira frase do livro é disso sintomática. Nela, Frank Machainno afirma: “Dá muito trabalho ser eu.” Esse pensamento irá acompanhar o multifacetado personagem ao longo das páginas de um romance que se lê de forma apaixonada e compulsiva.

Apesar de estar a viver os sessenta, Frank Macchianno – conhecido por muitos como Frankie Machine devido às qualidades de atirador de elite – não sente muito o peso da idade, dividindo o tempo por várias atividades – entre elas é conhecido por fornecer o isco na Praia de San Diego, local onde é um fervoroso adepto da Gentlemen’s Hour, um importante ritual surfista.

Trabalhador empenhado desde que a sua filha Jill lhe transmitiu que entrara para Medicina, Frank canalizou ainda mais as suas forças para conseguir dar um futuro condigno à sua única herdeira, fruto da atribulada e omnipresente relação com Patty, sua ex-mulher. Pagar as contas sempre foi a maior demanda para Macchianno.

Mas, entre os seus ofícios, Frank tem um que lhe faz valer sobremaneira a alcunha. Machine é um nome respeitado e temido entre a Máfia local. Ainda que se tenha afastado do negócio há alguns anos, Frank acaba por aceitar voltar uma vez mais ao ativo depois de um boss local pedir ajuda para o seu filho. No entanto, as coisas não são bem o que aparentam e num instante o caçador assume o papel de presa. Num ápice, Macchianno veste o papel de Machine e volta a enfrentar velhos inimigos, amigos, novas “éticas” dentro da Máfia e uma geração sedenta de poder que faz de tudo para subir na família.

Um dos grandes escritores de thrillers cujo enredo envolva o crime e associações mafiosas, Don Winslow começou por se aventurar em séries em nome próprio como “Neal Carey” e “Bonnie Daniels” e, aos poucos e de forma sólida, começou a ombrear com nomes como Dennis Lehane ou Geroge Pelecanos.

Em “O inverno de Frankie Machine”, Winslow transporta o leitor para os cenários quentes de San Diego e da cultura surfista, através de um personagem ímpar como Frank Macchianno, um ser humano à prova de provações várias que se refugia numa fortaleza mental e ética, fomentada através da sua experiência como fuzileiro, veterano do Vietname, “homem de mão” e sniper ao serviço da Máfia, vendedor de peixe, figura social local, fã de ópera e pai. Herói para uns, o diabo para outros, Frankie é uma criação fascinante.

Ainda que estejamos perante um romance vivido a “contrarrelógio”, Winslow (re)constrói a história de Machine através do recurso a múltiplos flashbacks que fornecem as peças que faltam a este puzzle, onde o crime é vulgar e banalizado. Ainda que não esconda a sua costela de gangster, Machine vivia essa “tarefa” através de uma ética própria, e não são raras as vezes que confessa a desilusão que sente ao ser confrontado com os meandros mais escuros do crime organizado, seja ela fora da lei ou “legal”.

Essa sua inolvidável experiência fez Frank viver os altos e baixos das últimas décadas de um país condenado à corrupção, com particular destaque para a cena de Las Vegas durante as décadas de 1970 e 1980. Essa riqueza contextual e a magnífica capacidade de Don Winslow em transpor para o papel a violência inata ao mundo da Máfia, torna “O inverno de Frankie Machine” num romance de corpo e alma e consegue, com distinção, afastar-se da banalidade, assumindo-se como um portentoso romance onde o crime é quem mais ordena.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Trêsporcento
“Lotação 136”

Cascatas fluídas de grandes canções



Segundo a banda, foi “Espero”, faixa incluída em “Hora Extraordinária”, e “Quadro” que motivou a banda a fazer aquilo que, esperavam, ser um disco ao vivo, um registo que aglutinasse a evolução sonora dos Trêsporcento assim como a empatia que existe entre a sua música, a arte de a tocar e a cumplicidade que a mesma confere quando exibida ao vivo.

Assim nasceu “Lotação 136”, um disco que guarda para todo o sempre o espetáculo dado por Tiago Esteves, Lourenço Cordeiro, Pedro Pedro, Salvador Carvalho e António Moura na Sala Vermelha do Teatro Aberto, em Lisboa, a 25 de maio de 2103, e que ganhou a graça devido ao número de pessoas que encheram o referido espaço.

A jogar em casa, o quinteto alfacinha conseguiu, para além de dar um excelente concerto, fazer a súmula sonora dos seus oito anos de existência e dizer presente através de uma vincada veia indie com pitadas de new wave que convidam a abanar corpo e alma. As guitarras, soltas, são uma constância na música dos Trêsporcento, que têm a inteligência de colorir o seu espetro com um interessante e competente diálogo entre um baixo omnipresente e uma bateria que sabem tornar ainda mais compacta a ambiência da banda.

Exemplo desse excelente exercício musical é a faixa de abertura. “Lotação 136”, composição homónima do disco em causa, é um potente instrumental, sinónimo da democracia sonora que tece a filosofia dos Trêsporcento. Se o feedback inicial pode auspiciar uma ditadura das cordas, a entrada da bateria aponta para um ecletismo, aqui e ali dançável e doce. Essa sacarose, bem vincada e saborosa, tem seguimento com “És mais sede”, retirada de “Quadro”, uma composição subtil que cresce e ganha consistência com algum “quebrante” poético e musical. A voz de Tiago Esteves assenta que nem uma luva no ADN da banda que, como reza a letra, “tem lugar no nosso coração”.

Um dos momentos mais fortes de “Lotação 136” é “Cascatas”, um verdadeiro hino pop assente numa linha de baixo de assinalável beleza que vicia logo à primeira audição. Ouvem-se saudosos ecos dos anos 1980 e é impossível resistir ao natural impulso de sacudir o corpo. Mais densa e, podemos dizer, “pesada” que que o registo em estúdio, “Cascata” é outra nota evidente da qualidade e evolução dos Trêsporcento.

A seguir, sem esquecer raízes e camaradas de luta, os Trêsporcento fazem uma soberba versão de “Grande mentiroso”, um original dos Capitão Capitão, que se revela envolta de uma deliberada contenção que liberta energias várias, todas elas positivas, nos momentos certos. Os diálogos entre guitarras são eficazes enquanto baixo e bateria levam a música mais longe. Depois, “Genes” começa num tom mais sussurrado e interior para, aos poucos, evidenciar a luz característica do quinteto.

Recuando ao primeiro EP, “Dás a mão e não sentes” é uma amostra do tudo que os Trêsporcento podem e querem ser. Os ritmos mais escuros dão, paulatinamente, espaço a momentos mais aguerridos e puramente rock que fazem as guitarras gritar mais alto, o mesmo acontecendo às cordas vocais de Esteves. As palmas, tal como a música, soam mais fortes. O clima de assinalável e saudável intensidade continua com “Quero que sejas minha”, faixa que encerra “Quadro”, e que é uma verdadeira montanha-russa emotiva. O desespero cantado encontra na música a correspondência procurada em momentos de simbiose perfeita. Muito bom, mesmo.

Depois da banda apresentada, “Se não queres estar presa” segue a viagem de “Lotação 136”, agora por caminhos mais insuflados e em género de “fanfarra” pop/rock indie - entenda-se tal designação como um elogio -, onde o baixo brilha sobremaneira. O refrão, fortíssimo, serve-se do “desalinho” das cordas e o final da canção surge cedo demais. “Elefantes azuis” devolve, ou adensa, a vontade de dançar e todos os elementos dos Trêsporcento têm oportunidade de brilhar. O final do disco faz-se com os oito minutos e 32 segundos de “Espero”, (grande) canção-charneira de uma banda que está, tudo leva a acreditar, a um pequeno passo de subir ao patamar mais alto do espetro musical nacional. Resta saber se eles próprios querem fazer essa escalada. Nós, esperamos por eles.

Alinhamento:
01.Lotação 136
02.És mais sede
03.Cascatas
04.Grande mentiroso
05.Genes
06.Dás a mão e não sentes
07.Quero que sejas minha
08.Se não queres estar presa
09.Elefantes azuis
10.Espero

Classificação do Palco: 7/10

In Palco Principal

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

“A rainha dos sipaios”
de Catherine Clément

A fascinante história da Joana d’Arc indiana



No dia do seu nascimento, o astrólogo da família decreta que a pequena Manikarnika será rainha. Pertencente à casta dos brâmanes maratas, a escolhida terá como futuro marido alguém deveras incomum entre os seus. Como os astros não mentem, anos mais tarde, outro perito da adivinhação estelar e especialista na arte da astúcia concretiza aquilo que o destino ditou e propõe a Moropant, o pai da jovem: a união da sua filha com o viúvo marajá de Jhansi, conhecido pelos seus tiques “maneiristas”.

Forçada ao seu fado, Manikarnika torna-se companheira do marajá e muda, definitivamente, a sua graça para Chabili, a Adorada, nome de guerra que nasceu do relacionamento da jovem “arrapazada” com os filhos do Peshwa Baji Rao.

Os primeiros momentos de cumplicidade entre os noivos são estranhos e Chabili encontra, na figura de Gangadar Rao, um homem psicologicamente falido, dono de uma tosse persistente e que tem por hábito fantasiar-se de mulher. Pragmática, a nova rainha consegue conquistar a confiança do seu marido e, aos poucos, arranca do monarca laivos de liberdade vedados ao espetro feminino, ao mesmo tempo que arrebata o coração dos locais.

Mas, numa época em que a Índia estava à merce do império Britânico, os problemas surgiam de vários quadrantes, centrando a sua génese na Companhia das Índias Orientais. Os “John Company”, tal como eram conhecidos os ingleses que tomavam a Índia como sua, faziam crescer a indignação e a ira entre os sipaios, soldados indígenas de derme escura que ousaram revoltar-se contra humilhações várias, rajás destronados e explorações diversas.

Na liderança e pensamento dos revoltosos estava a imagem da rainha de Jhansi, a jovem Chabili que desposara o controverso Gangadar Rao e, tomando como suas as rédeas do seu corcel, desafiou o inimigo debaixo de vestes masculinas, uma espada na mão e um colar de pérolas ao pescoço, instigando assim o movimento que se denominou por “revolta dos sipaios” e que rasgou o coração da Índia do século XIX, vítima de “deserdações” e doutrinas como a de Dalhousie.

É e essa história apaixonada e apaixonante que a filósofa e romancista francesa Catherine Clément conta em “A rainha dos sipaios” (Porto Editora, 2014), um notável romance histórico, narrado através de deliciosas aventuras épicas que originaram uma série de pressupostos que desencadearam num conflito pela independência de um território que, durante anos, viveu a ferro e fogo, tendo nas vozes de Karl Marx e Friedrich Engels o mais fiel espelho dos acontecimentos através dos seus relatos jornalísticos.

Notoriamente fascinada pelo personagem de Chabili, Clément faz um brilhante retrato de uma mulher magnífica, integra, obstinada e inteligente que lutou com todas as suas forças por uma Índia diferente, tornando-se numa heroína com direito a canções que ainda hoje são ensinadas às crianças indianas.

Desde a sua infância até à precoce morte, a menina-mulher guerreira adorada apossou-se de várias e corajosas vestes, assumindo-se como uma espécie de Joana d’Arc indiana, líder de um exército de autênticas amazonas que tinha como fim devolver a integridade e orgulho a um povo subjugado pelo invasor colonizador.

In Rua de Baixo

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Doki-Doki Universe
PS Vita

Coração de robot



Elevadas doses de originalidade, um argumento assente na resolução de puzzles, um competente grafismo naif e uma filosofia simples de gameplay que afasta para longe qualquer tipo de conflitos primados pela violência. Eis alguns dos principais predicados de Doki-Doki Universe, um jogo transversal para as várias plataformas Sony com assinatura HumaNature Studios e que encanta através de um minimalismo desarmante e empatia desde os primeiros instantes.

O (anti)herói desta demanda é QT3 um robot que procura conhecer a felicidade através de um profundo autoconhecimento. Votado à solidão, QT3 tenta evitar uma eventual reprogramação e para isso tem de descobrir na sua alma maquinal laivos de uma humanidade latente e emergente. A tarefa não é fácil mas a esperança acompanha as várias camadas de lata de QT3 que decide explorar o universo, visitar vários planetas, ajudar camaradas de viagem a resolver os seus problemas e com isso aprender sobre o confuso comportamento do funcionamento da “máquina” humana.

Assente num perfil gráfico que aposta numa estética “ingénua”, Doki-Doki Universe tem uma narrativa deveras imaginativa que mistura simplicidade e alguma bizarria. Cada viagem planetária revela um destino diferente, com propósitos díspares e não se surpreendam se em alguns desses locais sejam os humanos a assumir o papel de “animais domésticos” e o seu grande líder seja uma capivara ou o cenário ser uma lixeira intergaláctica onde os dejetos assumem as mais diferentes formas e…cheiros. Desconfortos e imagens orwellianas à parte, cada planeta que QT3 visita é sinónimo de surpresa e superação.

Na grande maioria das vezes os cenários de Doki-Doki Universe associam-se a ideais simplistas e inocentes sendo que em alguns momentos é difícil não fazer a comparação com o imaginário cartoon que desagua em analogias de lugares reais. Um desses exemplos é “Afri”, um local cósmico cujos habitantes de tonalidades epidérmicas escuras se deixam enfeitiçar pela “magia” que a tecnologia pode oferecer. Nesse local a tarefa de QT3 resume-se a retirar um nativo da solidão. Por vezes metaforicamente absurdo, esta criação da HumaNature Studios tem o condão de explorar alguns filões cujo dramatismo está intrinsecamente associado às falências da existência não robotizável.



A essência da resolução dos dilemas encontrados por QT3 centra-se no diálogo e na procura da identidade alheia. Assim, no gameplay, a interação com os muitos personagens faz-se com um simples toque no mesmo (falamos do ambiente PS Vita) que depois abre um menu privado tripartido que permite ver os itens associados à personagem, dialogar com ela ou ver os seus troféus. As conversas são feitas através de balões de diálogo à moda da BD e a voz dos personagens lembra os adultos de Charlie Brown. Os referidos ícones (adicionáveis ao menu da “nuvem”) podem ser ganhos depois de ultrapassar os desafios em forma de puzzle e existem cerca de três centenas. Quando se assume que QT3 terminou a sua tarefa, quer explorar o restante universo ou matar saudades do seu planeta, basta tocar no nosso querido robot e subir a bordo de um simpático porquinho alado.

Tal como a simplicidade que ecoa na sua banda sonora, a jogabilidade de Doki-Doki Universe é extremamente acessível ainda que por vezes se possa tornar algo monótona. Ainda assim, mais que uma mera exploração de dificuldade, estamos perante um ambiente que assenta na criatividade e imaginação dessa mesma jogabilidade. Ora vejamos, é necessário animar uma derretida boneca de neve entretanto teleportada para longe do seu planeta? Basta procurar algo gelado. Um camelo do planeta Faraó gosta de coisas bonitas, então, num impulso, oferecemos-lhe flores. Se quiser divertir-se e procurar conhecer melhor os gostos dos seus amigos ocasionais explore os inúmeros itens e enfeite o cenário com, por exemplo, meninas a andar de baloiço ou decore a paisagem com vedações, muros, casas, candeeiros. Mas atenção, existem alguns personagens bastante exigentes mesmo que o capricho seja a obtenção de uma simples galinha.

Para conseguir completar as missões é preciso ganhar itens e podemos ter acesso a eles através de prendas oferecidas pelos personagens. Para isso existem duas formas de o fazer. Ou conquistamos a sua simpatia ou deixamos os mesmos em estado de fúria. Seja qual for o objetivo é muito fácil, acreditem, deixar-nos enfeitiçar pelo perfil de algumas das criaturas do universo de Doki-Doki – que em japonês é uma onomatopeia que significa o bater do coração – e por momentos sentimos uma ligação aos mesmos através das tentativas de os agradar…ou não.

As constantes viagens feitas através do “Space Map” permitem empreender visitas recorrentes a alguns planetas assim como levar QT3 a conhecer asteroides que revelam personagens que têm a particularidade de envolver-nos em intrincados questionários que podem ajudar a definir traços da personalidade do jogador. As surpresas são muitas e os divertidos resultados remetem-nos para um mundo de bipolaridades várias. Acima de tudo, Doki-Doki Universe dá um valente pontapé na lógica.



Os resultados desta demanda são analisados através de relatórios elaborados pelo Dr. Psicanalista, um terapeuta que tem a tarefa de verificar se QT3 está a conseguir desenvolver os seus níveis de humanidade. Esses relatórios baseiam-se nos resultados do gameplay e na constante evolução da personalidade do robot construída por uma corrente ação-consequência assim como através do conhecimento que apenas a experiência permite.

Outro dos trunfos deste jogo é a sua interatividade. A meio de um qualquer cenário ousem testar o painel traseiro da Vita e fazer deliciosos “tilts”, ensaiar deliciosos acenos de adeus ou mandar beijinhos soprados. Alguns destes truques são feitos com o simultâneo auxílio do joystick direito sendo que o seu análogo canhoto serve para direcionar o simpático QT3. Também no que toca à interatividade, Doki-Doki Universe permite receber mensagens dos outros personagens ou fazer ligações ao Facebook e enviar mensagens animadas com a mesma ferramenta. Para tal cliquem no ícone do “envelope”. A possibilidade de fazer cross-save entre as várias plataformas Sony é outro atrativo deste jogo.

Inocente e arrebatador, Doki-Doki Universe foi feito para a criança dentro de cada um de nós. Com um elenco maravilhoso e aventuras ligeiras muito bem pensadas é adorável a tarefa de conferir humanidade a um robot que tem num balão vermelho o seu melhor companheiro. Ainda que existam alguns senão em termos técnicos tais questões são secundárias face ao prazer que retiramos ao tomar a pele de QT3. Evitemos a sucata e sigamos o Alien Jeff através de uma galáxia hilariante. Para isso basta dar um pulinho à PlayStationStore. Vamos?

In Rua de Baixo

“A fome do licantropo e outras histórias”
de Miguel Miranda

Profissionário em vinte e cinco atos



Autor de vários romances, aventuras policiais e livros infantis, Miguel Miranda divide a sua vida entre duas paixões: a medicina e a escrita. Depois do muito interessante romance “A Paixão de K” e dezoito anos depois de “Contos à moda do Porto”, a primeira aventura literária em forma de curtas estórias que lhe valeu o Grande Prémio do Conto da APE, o autor natural da Invicta regressa a esse género com “A fome do licantropo e outras histórias” (Porto Editora, 2014), um livro assaz pertinente, divertido e sagaz.

Ao longo de vinte e cinco tomos, cada qual dedicado a uma atividade profissional mais ou menos artística, ética ou vocacional, Miguel Miranda ordena alfabeticamente experiências de uma existência construída através de uma amálgama de sentimentos que fazem uma transversal viagem entre a realidade e a ilusão, a vida e a morte, o plausível e o imaginário.

Com mais ou menos páginas, sempre tendo a brevidade como principal filosofia, ao longo de “A fome do licantropo e outras histórias” é permitido ao leitor embrenhar-se por ondas surrealistas através de personagens como um adivinho, um capador, um falcoeiro, um guarda-noturno ou um oftalmologista, assim como conhecer a poligamia lírica de nuances policiais de um jardineiro obcecado por gardénias, o compulsivo fado de um experiente penetra, a irónica desventura de um kamikaze urbano líder de uma quadrilha de bravos membros do nacional chico-espertismo, os ambientes gore de um licantropo sanguinário ou um recoveiro perito na anulação da memória.

Todos estes contos assentam num cativante “canibalismo” literário que colocam o leitor no papel de um voyeur face às várias condições humanas, bem como à própria noção cognitiva de existência que podem levar um meteorologista à beira da angústia cósmica, uma tanatologista a sentir a morte como um mera leviandade ou um soba sábio a tirar dividendos da sua condição extrassensorial.

Deste requintado prato literário, o ingrediente que faz a ligação perfeita entre os diferentes paladares e odores é a linguagem utilizada por Miguel Miranda, repleta de sofisticação e sobriedade – aqui e ali com alguns tiques “barrocos” -, que resulta em apimentadas doses de humor, desafio, tragédia, felicidade, dúvida, traição e uma noção de finitude que depende de cada caso, de cada conto.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Trêsporcento em entrevista

"Não faz sentido cobrar um valor fixo por um álbum quando, no site ao lado, o mesmo produto se encontra disponível gratuitamente"

Esperam encerrar um ciclo com “Lotação 136”, disco ao vivo recentemente editado, numa altura em que, pela primeira vez desde a sua génese, têm um elemento novo, na bateria. Falamos dos Trêsporcento, uma banda fiel aos seus princípios e que tem sabido crescer de forma ponderada e consciente. Ainda que tenham segredos que não possam revelar, aproveitámos para falar com a banda sobre os seus oito anos de história, o negócio da música na internet e outras questões.



Palco Principal – Estão juntos há cerca de oito anos e, entre 2009 e 2014, lançaram um EP e três álbuns, incluindo o novíssimo “Lotação 136”. A vossa evolução enquanto banda tem sido aquilo que esperavam?

Trêsporcento - Quando nos juntámos, fizemo-lo apenas pela paixão que tínhamos por música e pelo gozo de tocarmos juntos enquanto amigos. Nunca tivemos quaisquer expetativas nem nunca estabelecemos metas enquanto banda. Provavelmente, essa é a razão de ainda estarmos juntos: não temos pressões internas ou externas sobre o caminho a tomar ou sobre o objetivo a atingir. Isso dá-nos uma liberdade enorme para deixarmos as coisas fluir normalmente e crescermos de forma natural, definindo o nosso próprio caminho, sem o perigo de eventuais expetativas não serem atingidas.

PP – Ainda que tenham muita experiência de palco, álbuns gravados e uma dedicada legião de seguidores, os Trêsporcento continuam envoltos de algum mistério. Faz parte da vossa filosofia manter este espetro de culto?

TPC - Não, não faz, mas não é uma coisa em que pensemos muito. Sabemos o que faz parte da nossa filosofia, para usar as tuas palavras: é estarmos concentrados na música que fazemos, e não na imagem que projetamos. Isto tem a ver com a nossa história: nós não começámos com nenhuma ideia formada sobre o que queríamos ser ou parecer. E a nossa experiência era zero. Hoje sabemos o que deve ser feito para “comunicar” uma banda, para fazer com que os media prestem atenção, mas ainda bem que não sabíamos quando começámos. Olhando para trás, foi uma sorte que as coisas tenham acontecido dessa maneira. Estar envolto nalgum mistério não nos parece mal.

PP – Com um som assumidamente indie, os Trêsporcento fazem canções envoltas de um grau de intimidade muito grande, nomeadamente no que toca à poesia cantada. Podemos dizer que a vossa maior inspiração deriva da vivência pessoal de cada um de vós?

TPC - Sim, é verdade. Muitas das músicas estão relacionadas com experiências, sejam pessoais, sejam das pessoas que nos envolvem. A vida e as experiências são bons temas para se cantar.

PP – Já disseram em entrevistas que gostam muito da música dos anos 2000 e de bandas como os The Strokes, Radiohead e Bloc Party. Que músicos vos têm atraído mais a atenção nos últimos tempos?

TPC - Gostamos muito de bandas como Queens of The Stone Age, We Were Promissed Jetpacks (que vão lançar um álbum ao vivo em fevereiro), Alt-J, Daughter, Gisela João ou Explosions in The Sky.

PP – Lançaram recentemente “Lotação 136”, um disco ao vivo gravado na Sala Vermelha do Teatro Aberto, e que é uma espécie de tributo a quem vos acarinhou e vos seguiu na estrada. Encaram este disco com um final de um ciclo?

TPC - Sim, é, claramente, um final de ciclo, ao mesmo tempo que é o princípio de outro, apesar de não ter sido pensado dessa maneira. O disco surgiu pela vontade que tínhamos em registar as versões ao vivo destas canções, que, quer por falta de habilidade nossa, quer pela energia natural que está associada ao palco, acabam por ser uma coisa diferente da que está em disco. Por outro lado, esta gravação coincide com a primeira alteração à nossa formação em sete anos, com a entrada do António para a bateria. A isto juntou-se também a sensação de que o “Quadro” representa uma espécie de segunda parte para o “Hora Extraordinária”, fechando assim esse ciclo. Não sabemos o que vamos fazer daqui para a frente, porque ainda não escrevemos nada, mas estamos convencidos de que aquilo que fizemos até aqui está esgotado, num certo sentido.

PP – Na apresentação de “Lotação 136” confessaram que músicas como “Espero” refletem um pouco a vossa evolução enquanto banda, enquanto um conjunto de músicos que luta, tendo em conta a superação. Sentem que são hoje melhores músicos do que aquando da edição do EP de 2009?

TPC - Na altura em que gravámos o EP éramos apenas um grupo de amigos que se iniciava na música e no processo de fazer e gravar musica. Não sabíamos muito bem o que fazer nem como fazer, apenas sentimos a vontade de fechar um ciclo com aquelas gravações. Hoje, passados cerca de oito anos de ensaios, palcos, e estúdios, sentimos claramente que somos, não só melhores músicos enquanto executantes, mas também enquanto banda que pensa na música como expressão daquilo que quer fazer. Foi obviamente um processo gradual, e fomos sentimos que cada nova edição ia sendo melhor e mais Trêsporcento que a anterior, o que nos fez sempre avançar para uma próxima edição.

PP – Para além de, corajosamente, já terem feito edições de autor noutras ocasiões, “Lotação 136” está à disposição para download em troca daquilo que o “consumidor” achar justo. A internet alterou, na vossa perspetiva, a “comercialização” da música enquanto objeto de consumo?

TPC - A internet alterou a comercialização global, isso é um facto. A música inclui-se neste bolo de comercialização e sofreu, obviamente, alterações na forma como é passada para o público. A oferta multiplicou-se, o valor da música diluiu-se e isso obrigou a novas estratégias Para nós, atualmente, não faz muito sentido estar a cobrar um valor fixo por um álbum ou música quando, no site ao lado, o mesmo produto se encontra disponível gratuitamente.

PP- Em termos de divulgação, o que acham mais importante: ter airplay na rádio, fazer (muitos) concertos, apostar numa boa máquina de promoção via internet…

TPC - Como divulgação, a internet tem uma força extraordinária e deverá ser, há já bastante tempo, a melhor forma de fazer chegar a música ao público em geral (o caso dos Arctic Monkeys). No nosso caso, a rádio teve também uma importância vital para dar conhecimento da nossa música, não só ao público, mas também aos “players” que atuam no mundo da música. Os concertos, apesar de serem aquilo que nos dá mais gozo fazer, não foram, até à data, a melhor forma de divulgar a banda.

PP – O que podemos esperar dos Trêsporcento em 2014?

TPC - Temos uma grande notícia a divulgar, mas ainda não podemos falar dela, para grande pena nossa…

In Palco Principal

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Gran Turismo 6
PS3

De quatro rodas até à Lua



Viviam-se os últimos dias de 1997 e a Sony a par da Polyphony Digital, empresa sua subsidiária, apresentavam ao mundo um simulador de automóveis cuja capa era constituída por um vulto de um carro coberto com uma “lona” sob um céu ameaçador. Na época a plataforma explorada era a primeira Play Station e para atrair os ávidos amantes de simuladores auto os japoneses avançavam com a ideia de um jogo que permitia a “condução” de 140 carros desportivos exibidos através de um revolucionário grafismo 3D.

Muitos anos depois, a saga idealizada por Kazunori Yamauchi, designer de jogos de consola e antigo piloto profissional de automóveis, está de volta e Gran Turismo 6 promete deixar a concorrência a anos-luz de distância assumindo-se como o mais completo e perfeito episódio da série, um exclusivo PS3 que promete deixar todos colados à magia inata deste jogo.

É pertinente iniciar esta análise fazendo referência à reputação que a Polyphony tem vindo a construir em volta dos lançamentos da sua responsabilidade, todos eles envoltos de uma reputação e evidentes credenciais cujo fator comum tem o realismo como filosofia o que levou mesmo a empresa a envolver-se no desenvolvimento de simuladores automóveis para algumas marcas nipónicas.

Ao colocar pela primeira vez GT6 na PS3 o frenesim começa a tomar conta do nosso sistema nervoso. Por vezes são poucas as diferentes em termos de filosofia de jogo e novidades gráficas entre evoluções dentro da mesma saga. Que esperar de Gran Turismo 6? Ao som do piano de Lang Lang, surgem as primeiras imagens da intro. A retina fixa-se na memória de Ayrton Senna, no circuito paulista de Interlagos e a momentos passados dentro das instalações da Fundação do referido malogrado campeão brasileiro de F1. Comemoram-se os 15 anos de Gran Turismo e a Polyphony mostra imagens dos bastidores dos construtores a par de apontamentos de diferentes cenários onde as poderosas máquinas presentes em GT6 podem atuar.

Introduções à parte, chega a hora de dar nome ao nosso piloto. O barulho dos motores ecoam na nossa mente e estamos quase prontos a agarrar o volante. A aventura começa no circuito de Brands Hatch, Grã-Bretanha, e é sugerida uma Track Day a bordo de um Renault Sport Clio R.S de 2011. Progressivamente, o sonho torna-se realidade…

E esse realismo sente-se, e entranha-se, depois de tomar de assalto o novo GT6 e vibrar com a loucura que é sentir a velocidade a bordo de alguns dos melhores e mais rápidos carros do mundo, ingredientes principais de alguns dos suculentos menus servidos através da PS3. Em poucos minutos, sejamos já fãs da saga GT ou não, é impossível não sentir que aqueles carros são extensões de nós próprios. Fisicamente, sentimos a força do carro e o corpo balança a cada pião, a cada mudança de velocidade ou travagem a fundo. A missão é clara: agarrar o volante e deixar-se levar. Ainda que possamos estar perante alguns dos normais tiques dos simuladores do género, GT6 leva-nos mais longe, faz-nos sentir, a fundo, o poder de decisão e a arrebatadora certeza da envolvência.

Pensado para todos, GT6 permite várias experiências. Podemos “simplesmente” optar por uma condução aceleração/travagem ou aventurar-nos numa condução de perícia onde se aconselha o domínio total da máquina quando só a vitória interessa e o desafiador sistema “e-brake” é o que mais ordena. Para tirar partido do realismo do jogo, aconselhamos uma condução manual que permite atingir, de facto, novos patamares de realização pessoal enquanto condutor virtual ávido de uma intensa estratégia de uma corrida que aumenta de intensidade. Essa é um das marcas que diferem a família GT dos menos audazes e ambiciosos simuladores como Need for Speed ou Burnout.

Mas GT6 leva-nos, definitivamente, mais longe. As fronteiras são quebradas e o céu deixou de ser o limite pois é possível correr na Lua. Sim, ao volante de um veículo lunar – o buggy Roving Vehicle LRV-001 – cujo red line resiste até às 80 milhas por hora. A falta de gravidade é outra desafio a ter em conta e GT6 e é sinónimo de outro delicioso desafio.

De regresso à Terra, GT6 dá-nos a possibilidade de participar, por exemplo, no britânico Festival de Velocidade de Goodwood que possibilita percorrer os pouco menos de dois quilómetros da verdejante colina localizada em West Sussex. Neste evento é possível conduzir veículos históricos como o Porsche 917 ou o McLaren MP4-12C, uma “bomba” de sete velocidades cujo velocímetro pode marcar os 350 (!) quilómetros por hora. Neste desafio de três níveis, ainda que Porsche e McLaren sejam boas máquinas, é ao volante do Ferrari Dino 246 GT que a exigência da pista mais se faz sentir e a adrenalina resultante da experiência é apenas descritível por quem já a viveu.

Não é fácil decidir de entre os cerca de 1400 carros disponíveis em GT6 aquele que mais nos agrada ou decidir qual das corridas escolher tal é a abundância quantitativa e qualitativa deste jogo. Para além da habitual parafernália de escolhas de jogabilidade GT6 oferece ainda o Coffe Break, uma funcionalidade que engloba alguns mini-games que vão testar algumas das capacidades do jogador enquanto piloto que aumentam progressivamente de dificuldade.

Bastante divertido, este Coffe Break permite, por exemplo, derrubar pinos de sinalização em pista e carros díspares. Noutro mini-game, denominado desafio-eco, a tarefa consiste em percorrer uma determinada distância utilizando apenas um litro de combustível e pela nossa experiência esta tarefa surpreende os mais otimistas pelo elevado grau de dificuldade e gestão. À medida que são superadas estas provas os jogadores vão conquistando troféus que são sinónimo de pontos ou créditos que dão acesso a outros itens como novos carros. Se a destreza levar o jogador a conquistar o mais alto lugar do pódio destes troféus a recompensa monetária é também uma realidade. Estes novos aliciantes encontram reflexo no modo carreira que conta com três diferentes níveis de prova: campeonato nacional (nível a e b), campeonato internacional (níveis a e b). Depois de ultrapassados estes quatro patamares resta abraçar a competição Super destinada aos veículos de maior potência.

Nas mais recentes versões dos jogos de consola a possibilidade de interagir com a loja PSN é cada vez mais pertinente e GT6 não foge à regra. Verdadeiro aliciante, este fato permite consolidar o modo de jogo online e se optarmos por jogar através de uma carreira individual basta abrir os cordões à bolsa e conseguir progredir no jogo sem ter de fazer todas as etapas de GT6. Ainda assim, tal “facilitismo” pode ser contraproducente em termos de realização pessoal enquanto piloto de sucesso na PS3. Ainda que a referida possibilidade seja de considerar aconselhamos a sentir na íntegra todas as etapas e dificuldades deste fantástico jogo.

Este novo episódio de Gran Turismo faz jus à magnificência dos outros jogos da saga e apesar de GT6 não introduzir novidades de monta ou grandes ideias revolucionárias mantém a qualidade que os fãs deste simulador apreciam com elevadas doses de diversão, tensão e velocidade, fatores multiplicados por inúmeras horas ao “volante” da PS3 ainda que a saída da nova PS4 possam assumir-se como um desafio para a equipa da Polyphony Digital nos próximos tempos.

Não tanto como um “normal” jogo de corridas e mais como um simulador de condução, GT6 é o expoente máximo do seu segmento mantendo o perfil da sua génese. Os controlos são relativamente acessíveis e o vício da condução ganha-se a cada quilómetro. Um must have, definitivamente!

In Rua de Baixo

Seis meses acostados a bom Porto

Grupo Porto Editora apresentou o catálogo do primeiro semestre



Ano novo, livros novos. Com mais de oitenta títulos divididos por cinco diferentes chancelas, a Porto Editora aposta forte neste primeiro semestre de 2014. Na apresentação que a editora levou a cabo na sede do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, em Lisboa – que contou com a presença de Cláudia Gomes, Manuel Alberto Valente, João Rodrigues e Vasco David -, ficámos a conhecer novos autores, reedições, homenagens, edições comemorativas e regressos auspiciosos.

Se já em janeiro podemos contar, por exemplo, com um livro de contos Miguel Miranda e outro romance histórico de João Pedro Marques, no que toca a autores estrangeiros que balançam entre o thriller e o policial saúdam-se “O Inverno Frankie Machine”, de Don Wilson, autor do best-seller “Selvagens”, e dois clássicos de Dashiell Hammett que integram um novo projeto da editora que contemplará também a reedição de títulos de Raymond Chandler, com edição prometida lá para maio. E, já que falamos na literatura onde o crime e o suspense são imagens de marca, a Porto Editora lançará novos livros de John Verdon, Donato Carrisi, Jeff Abbott, K. O. Dahl, Lauren Beukes e Arnaldur Indridason.

Para o público mais jovem esperam-se muitas novidades de Robert Muchamore, a primeira das quais – “Henderson’s Boys – A Arma Secreta” – já em fevereiro, mês que será a data para o novo e esperado romance de Isabel Allende, “O Jogo de Ripper”.

No mês que celebra o dia dos namorados a Porto Editora, através da 5 Sentidos, edita “Espero por ti”, de J. Lynn, um romance de cariz erótico cujo público-alvo é a faixa etária dos 19, 20 anos e tomou de assalto as tabelas de vendas de e-books nos Estados Unidos. Para um público mais adulto, a 5 Sentidos promete mais novidades e serão editados livros de Lisa Kleypas e Sylvia Day.

A Sextante é outra das chancelas muito empenhada em atrair as atenções dos leitores e, para 2014, contam-se novas obras de Aleksandr Soljenítsin, Teolinda Gersão, Philippe Claudel, Edward St Aubyn e Thomas Mann, assim como um livro de contos que contará com a escrita de grandes nomes da literatura nacional no feminino entre os quais pontificam Lídia Jorge, Ana Luísa Amaral ou Maria Teresa Horta. Falamos de “Do branco ao negro”, nos escaparates em fevereiro, uma obra cujos direitos revertem a favor da Associação Alzheimer Portugal.

No que toca à Assírio e Alvim, os primeiros seis meses deste novo ano vão acolher edições de Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa, Jorge Sousa Braga e Ana Luísa Amaral, no que toca à poesia, assim como obras de Nikolai Gógol, Enrique Vila-Matas, Javier Cercas, Luís Filipe Castro Mendes, Almada Negreiros e Luis Quintais.

Também alvo de destaque será Sophia de Mello Breyner Andressen que, a propósito dos dez anos da sua morte, o grupo Porto Editora decidiu publicar “Contos Exemplares”, já em fevereiro, assim como “Dia de Mar” e “Cristo Cigano” lá mais para a primavera.

Mário de Carvalho e Miguel Esteves Cardoso são outros dois nomes a reter no catálogo da Porto e “Era bom que trocássemos uma ideias sobre o assunto” e “Novas Crónicas” vão ter honras de edição em fevereiro e abril respetivamente.

Para além dos já referidos nomes, a Porto Editora vai colocar no mercado livros de Luís Miguel Rocha, Richard Zimler, Luís Sepúlveda e Veronica Roth, sendo que obras como “The Return”, de Jason Mott, “The Unlike Pilgrimage of Harold Fry”, de Rachel Joyce e “Canadá”, de Richard Ford, sejam títulos que a Porto Editora pensa que vão agitar sobremaneira o mercado livreiro.

In Rua de Baixo

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

“QUANDO O CUCO CHAMA”
de ROBERT GALBRAITH

Um policial à séria sem recurso a feitiçaria



Quando, por vezes, alguns escritores procuram explorar territórios literários longe do seu normal habitat criativo, fica no ar algum sentimento de reserva sobre a capacidade de superação do autor enquanto criador de novas atmosferas.

Se, em 2012, “Uma morte súbita” significou a primeira aventura de J.K. Rowling no reino adulto dos livros com uma aventura policial bem aceite pela crítica, a eterna criadora de Harry Potter resolveu voltar à carga mas, desta vez, através de um pseudónimo rapidamente descoberto.

Sob a máscara de Robert Galbraith, Rowling tentou, em vão e através de um certo anonimato, afastar-se do “preconceito Harry Potter”, mas conseguiu construir um romance noir q.b. que, alicerçado num interessante humor, agarra o leitor gradualmente, sendo alguns dos seus maiores trunfos o fantástico detetive Cormoran Strike e um enredo meticuloso e muitíssimo bem desenhado.

“Quando o cuco chama” (Editorial Presença, 2013) dá-nos a conhecer um dos momentos mais atribulados da vida de Cormoran Strike, um investigador privado e ex-combatente das forças britânicas no Afeganistão que sentiu na pele a dureza desse conflito, ao ser vítima de um acidente que lhe valeu a perda de um dos pés. Para além das mazelas físicas que o atormentam amiúde, Strike luta pela sobrevivência de um negócio à beira do caos, sentimento extensível à sua vida privada depois do fim da sua relação com Charlotte, sua ex-noiva.

Mergulhado numa profunda depressão sentimental e financeira, Cormoran é contactado por John Bristow, irmão adotivo da entretanto falecida supermodelo internacional Lula Landry, de forma a reabrir um caso encerrado pelas autoridades policias que tinham “logicamente” encarado a morte de Landry como suicídio.
Descrente face ao desfecho do caso da morte de sua irmã, Bristow, depois de aconselhado por alguém que conhecia o trajeto profissional de Strike, contacta o detetive acenando-lhe com uma generosa quantia se o veterano de guerra conseguir descobrir o que realmente se passou com a jovem Lula. Aquilo que muitos acreditavam ser um caso resolvido leva Cormoran a percorrer uma longa e estranha viagem sobre a vida da supermodelo, bem como daqueles que a acompanhavam de perto.

Na companhia de Robin Ellacott, a sua atual secretária temporária chegada ao convívio do investigador privado por um erro de casting da empresa de recrutamento, Strike acredita que esta demanda pode ser a salvação do seu negócio mas, à medida que se embrenha no caso sente que, afinal, nem tudo o que perecia lógico o é afinal, e o mundo que envolvia a jovem modelo é sinónimo de um universo sombrio cujo preço da sua exploração pode ser pago com a própria vida.

Será que alguém queria ver Lula morta? À medida que percorremos as páginas de “Quando o cuco chama” maior se torna a lista de potenciais assassinos. Será que Guy Some, o designer de moda que tinha Lula como musa teria algo a ganhar com o desaparecimento da modelo? Poderá algum dos membros do inenarrável e desavindo casal Bestigui ser responsável pela morte da vizinha? Pode a ambição de um motorista com o desejo do estrelado levar alguém a tirar a vida de outrem? Será que um membro da própria família Landry pode ter arquitetado a morte de Lula? Ou terá sido Evan Duffield, ex-namorado da modelo, o grande responsável por tal desfecho? Qual o verdadeiro relacionamento entre Lula e o rapper Deeby Macc? As perguntas crescem, as respostas são arrancadas a ferros…

Através de um uma narrativa envolvente, sabiamente concentrada do atraente cenário de uma Londres revestida de várias camadas de invernia, Rowling, ou Galbraith, leva o leitor a palmilhar as ruas mais elitistas de Mayfair passando pelos decrépitos bares do East End ou pelo rebuliço noturno do Soho, na busca de pistas que possam colocar Strike no caminho certo para desvendar o triste fim de Lula Landry.

Sem nunca se desviar do seu objetivo, a criadora de Harry Potter escreve uma (boa) estória que precisa de uma certa dedicação inicial por parte do leitor que, aos poucos, se deixa levar pela cadência algo meticulosa e lenta da investigação de Cormoran, vertiginosamente assente no mais pequeno ou aparentemente desprezível pormenor. Rowling volta a apostar na excelente introdução progressiva dos muitos e ricos personagens secundários que podem conter a solução desta terrível charada.

Ainda que se possa, eventualmente, achar a narrativa algo extensa, é evidente a empatia que a escritora consegue arrancar a quem ler este muito recomendado “Quando o cuco chama”, um misterioso romance que exige a máxima atenção e dedicação ao leitor que, por certo, desejará ler mais sobre a dupla Strike e Robin.

In Rua de Baixo