sábado, 2 de abril de 2016

“Balbúrdia”
A Pato Lógico está a oferecer livros.

 
“Balbúrdia” é uma das mais recentes novidades da editora Pato Lógico, título que integra a coleção Imagens que Contam. As 32 páginas do livro revelam, sem palavras, as histórias do foguetão do Tintim, um tambor que toca assim-assim, um elefante às riscas, um pião que roda pouco, um robô que parece louco. São brinquedos e mais brinquedos a encher um quarto que faz tempo não é arrumado por inteiro. Até que um dia os brinquedos ganham vida…

A obra de Teresa Cortez, “Balbúrdia” lembra-nos que no peito dos desarrumados também bate um coração que vibra. A par do lançamento do livro, a editora está a organizar um passatempo. Para tal, a Pato Lógico convida-nos a mostrar as nossas balbúrdias, sejam elas compostas por brinquedos, roupa ou demais objetos. O que fazer? É simples, basta expressar esse caos organizado através de uma descrição ou ilustração e enviar o resultado para loja@pato-logico.com até ao próximo dia 11 de abril. As participações serão avaliadas pela autora e equipa do Pato Lógico, e a Balbúrdia mais criativa recebe um exemplar autografado pela autora.

In Rua de Baixo

“Vozes de Chernobyl , História de um Desastre Nuclear”
de Svetlana Alexievich

Monólogos do Futuro


A vida, tal como a conhecemos, mudou no dia 26 de abril de 1986. O mundo acordou, meio atordoado, com as notícias do desastre nuclear de Chernobyl. As dúvidas sobre o assunto eram muitas e as autoridades soviéticas não fizeram muito para as esclarecer.

As notícias, tímidas, chegavam a conta-gotas. A comunidade internacional perguntava, os soviéticos escondiam. A gravidade dos factos, terríveis e irreversíveis, haveríamos de saber muito depois, levou para o local milhares de homens parcamente equipados e emocionalmente despreparados.

Enquanto a radiação se espalhava pelo planeta (atingiu o território de mais de três quartos do continente europeu) e o quarto reator da central nuclear libertava «50 milhões de curies de radionuclídeos» a céu aberto, bombeiros, polícias (membros da milítsia, designação por que era conhecida a polícia na União Soviética), profissionais de saúde e civis eram engolidos pelo silencioso vórtice radioativo que transformaria toda a região – conhecida por a “Zona” – num cemitério sem memória que até «as minhocas e os besouros abandonaram».

Mas é desse intrincado, e por vezes muito doloroso, puzzle de recordações que se molda a vida, mesmo que o objetivo seja o seu esquecimento, o fim da dor e, a bem dos que sobrevivem, do recomeço da vida.

Foi essa espécie de exorcismo (no caso, por via de uma estrondosa solidariedade e capacidade humana) que levou a jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich, Prémio Nobel da Literatura de 2015, a entrevistar mais de 500 pessoas que, de alguma forma, estiveram envolvidas no desastre de Cherbobyl.

Durante cerca de três longos e penosos anos, Alexievich ouviu habitantes da região, “liquidadores” (membros do pelotão de limpeza), viúvas, crianças, cientistas, políticos e inclusive, por mais incrível que possa parecer, gente que se mudou pata Chernobyl depois da explosão do reator.

O resultado, brilhante, tocante e maravilhosamente literário, é “Vozes de Chernobyl , História de um Desastre Nuclear (Elsinore, 2016), livro tecido pelos testemunhos, apenas eles, de alma aberta, onde as raras intervenções da autora – que se limita a breves e singulares contextualizações – sublinham o sofrimento humano de quem abriu coração e alma para exorcizar os seus piores fantasmas.

Com um “discurso” sublinhado com o terrível que é o horror humano, o real e não ficcionado, Svetlana Alexievich consegue, de forma ímpar, fazer-nos sentir a verdadeira dor das pessoas que ouviu, cujos apelidos optam muitas vezes por não revelar, que rasgaram um silêncio que carregam no seu íntimo, que as dilacera, mata, mas também do amor incondicional que têm aos que perderam, aos que ficaram, doentes, e à própria terra, nem que esse seja apenas uma definição dramaticamente utópica e solitária – a belíssima capa do livro, uma imagem do abandonado parque de diversões da cidade-fantasma de Pripyat, simboliza essa ideia de forma absolutamente arrebatadora.

A propósito, confessa Alexievich nas páginas deste livro: «Escrevo e recolho o quotidiano dos sentimentos, dos pensamentos, das palavras. Tento captar a vida diária da alma. A vida de um dia comum das pessoas comuns. Neste caso tudo é incomum: o acontecimento e as pessoas quando se acostumavam a um novo espaço. Para elas, Chernobyl não é metáfora, não é símbolo, é a sua casa.»

O povo que ousou sobreviver a Estaline, a Hitler, aos gulag e campos de concentração, voltaria a enfrentar a morte mas agora através de uma ameaça surda, biológica, cobarde, assassina.

Do prefácio desta obra, da autoria do repórter Paulo Moura, resgatam-se também algumas ideias, sentimentos e marcas: «O sofrimento de Chernobyl tem essa coisa terrível: tal como a radiação, é impossível de circunscrever. As personagens de Svetlana descrevem a forma como o exército foi enviado, com os seus helicópteros, as suas armas, como se se tratasse de uma guerra. No mundo soviético, todos tinham sido educados para a guerra. Mas aquilo não era uma guerra, ainda que matasse. Não imediatamente, em consequência de um tiro ou um rebentamento, mas no decorrer de anos, décadas ou séculos… Chernobyl… A guerra das guerras. Não há sítio possível para o homem se salvar. Nem debaixo de terra, nem debaixo de água, nem no ar».

Pela sua intensidade, dedicação e construção, “Vozes de Chernobyl, História de um Desastre Nuclear” transcende a ideia de livro, de relato ou género jornalístico. É a voz dilacerada de um povo deixado à sua sorte e medos, preso à ideia de irremediável perda e de um futuro incerto, cinzento, um exercício de coragem, e um dos melhores livros deste ano.

In Rua de Baixo

“Âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio]”
de Leonardo

Poesia com sabor insular


Natural de S. Miguel, Leonardo, nome singular para alguém que é dono de uma poesia plural, é um dos mais promissores e jovens artífices da arte palavra.

Depois de em 2013 publicar “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, uma coletânea de poemas e prosas curtas, voltou recentemente a brindar-nos com mais um conjunto de textos que decidiu denominar como “Âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio]” (Companhia das Ilhas, 2015), um livro que junta a palavra com alguns imagens, da autoria de Filipe Paiva, ainda que, estas últimas, de presença algo fugaz.

São sete os escritos, três as imagens, mas muitas as ideias. Fala-se de memórias, de sussurros, de pensamentos eruditos, de perdas, livros idiotas, deuses insensíveis, consolas, devaneios proibidos, laivos de paternidade, transgressões, revisitações, naufrágios, nudez.

Há ainda espaço para declarações, ou referências, a Kurt Cobain, aos Radiohead ou Herberto Hélder, heróis de uma adolescência que se prolonga por toda a vida e deixa rastos, ou rastilhos, que diabolizam, ou não, valores como a liberdade.

Esse sentimento, entre outros, tem honra de descrição, de forma fugidia, pois: «a liberdade é demasiado longe; nunca consegui nadar para todo o seu fôlego; e do que lhe bebi; herdei um extenso sal; na boca que vendi ao tempo; cicatrizadamente migratória».

Pequeno em formato, parco em páginas mas amplo em ambição talento e pensamentos entre o colorido e os tons cinza, “Âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio]” desprende-nos de amarras e (e)leva a poesia para lá de um sentimento pueril dando voz a uma geração convicta da noção de arte e dos conflitos entre passado, presente e futuro, para revelar uma nudez que atravessa o espírito, «devora a roupa» e, só depois, «revela rotos, os tecidos do mundo».

In Rua de Baixo