quarta-feira, 29 de julho de 2015

“O Diário de Mary Berg”
de Mary Berg


Com o poderio de Hitler já a invadir toda a Europa, a 16 de outubro de 1940 foi criado o Gueto de Varsóvia. O seu líder era Hans Frank, advogado de formação, que ocupou o cargo de Governador-geral da Polónia entre 26 de outubro de 1939 e janeiro de 1945.

Durante 912 dias, os judeus enclausurados no Gueto de Varsóvia viveram as piores das privações e provações. Prostrados perante os piores tentáculos da violência nazi, às centenas de milhar de pessoas que viveram entre muros apenas restava a (des)esperança de sobreviver à fome, à humilhação e ao atentado à condição humana.

É esse relato brutal que está bem patente nas páginas de “O Diário de Mary Berg” (Vogais, 2015) – que derivou originalmente de uma dúzia de cadernos de memórias -, um poderoso testemunho sobre o Holocausto, vivido, sentido e escrito na primeira pessoa por uma menina que, com apenas com 15 anos, se viu forçada a sentir na pele a injustiça cega de quem se achou no direito de reclamar uma superioridade racial cruel e obscena.

Ler este livro (tal como a maioria dos que abordam o Holocausto) é uma experiência estranha por pensar que tal foi possível. Conscientes do terror que os judeus foram alvo pelos nazis, as palavras deste diário resultam numa amálgama entre a “curiosidade” e o respeito pelos ecos da História e da memória recentes.

Ainda que sejam inevitáveis as comparações entre os relatos de Mary Berg e Anne Frank, este livro tem como “trunfo” a experiência in loco e in vivo da autora. Mary esteve, de facto, no “olho do furacão” nazi, de corpo e alma, vivendo na pele os dramas quotidianos dos residentes do gueto, tal como os seus pais e familiares.

O pai de Mary era um negociador de arte e, por um feliz acaso, a sua mãe era natural dos Estados Unidos da América, trunfo que valeu, durante um período, um estatuto diferente à família, pois uma simples bandeira norte-americana na porta de casa era sinónimo de moderada imunidade que poderia significar uma maior esperança de vida e, com sorte, a sobrevivência e libertação.

Um dos aspectos mais marcantes deste livro é a aparente vida social que foi sendo possível no gueto, com a realização de concertos, o surgimento de grupos de teatro e alguns cursos de formação. À força, no meio dos estilhaços humanos, tentava-se resguardar a sanidade mental (e social). Mary Berg manteve-se viva dentro desta conjuntura cultural, cantou, fez teatro, estudou design técnico e artístico. Esta fé sócio-cultural foi o surreal escape para alguns dos residentes do Gueto de Varsóvia.

Também surreal é a possibilidade de ler uma obra deste calibre. Sabemos que o diário foi publicado durante a guerra como um grito de revolta e um pedido de ajuda ao povo judeu polaco mas que, anos depois, foi reescrito a partir do original. Nos doze cadernos originais, em muitos casos, Mary Berg, para evitar mais vítimas, optou por não revelar apelidos e escreveu notas estenográficas que apenas ela entendia.

Talvez isso explique o porquê de algumas passagens parecerem emocionalmente distantes, principalmente quando existem referências a jovens pelos quais o seu coração se apaixonou, assim como às reacções de emoção e bondade dos seus amigos próximos. Talvez essa fronteira fosse a forma de conseguir aguentar tanto sofrimento sem colapsar em definitivo.

Ao contrário de Anne Frank, Mary Berg não regista grandes referências à própria balança emotiva. A amizade, o amor, eram apenas factuais. A esperança, um sentimento fugidio. Para uma menina que perdeu a adolescência (viveu neste demoníaco local entre os 15 e os 19 anos) entre os muros do Gueto de Varsóvia, a criação do diário foi um garante de uma sobrevivência mental concentrada no acto de respirar, de alguém perfeitamente “normal”.

Mas, contrariamente, o prefácio da edição de 1945, da autoria de S. L. Shneiderman (que na companhia de L. B. Fisher foi responsável pela publicação da versão completa dos textos de Mary Berg em fevereiro de 1945, cujo título original era “Warsaw Ghetto: a Diary”), e a contextualização de Susan Pentlin, nas páginas introdutórias, revelam uma “heroína” que, depois de muito divulgar o que viu durante a Segunda Guerra Mundial, em meados da década de 1950, optou por remeter-se ao silêncio, gesto por demais humano e justificado. O desejo por uma vida banal, sem alarmes, era, afinal, o grande objectivo de Berg e dos milhares que ousaram sobreviver ao Holocausto. A todos eles, uma eterna vénia de respeito.

In Deusmelivro

terça-feira, 28 de julho de 2015

“O Caçador”
de Richard Stark

Um verdadeiro hino à arte desenhada”


Título que integra a Coleção Biblioteca de Alice, “O Caçador” (Edições Devir, 2015), obra de Richard Stark e ilustrada e adaptada por Darwyn Cooke, conta a história de um homem traído pela mulher que amava e sente-se ultrapassado pelo seu colega de crime. Movido pelo sentimento de vingança, Parker, um ladrão profissional implacável e impiedoso, tem apenas um objetivo: reclamar aquilo que lhe foi tirado.”

Com 144 páginas coloridas, “O Caçador” é um claro sinónimo da mestria de um dos nomes mais incontornáveis do universo das novelas gráficas. Falamos de Richard Stark, pseudónimo mais conhecido de Donald E. Westlake, homem que espalhou a sua arte em mais de uma centena de livros de não-ficção, dos quais se integram 24 aventuras de Parker, título que já conta com cerca de oito adaptações ao cinema.”

Histórias onde a ficção criminal é rainha, com ocasionais incursões em outros géneros e na ficção científica, os livros de Westlake, vencedor de três Prémios Edgar, são um verdadeiro hino à arte desenhada, sendo “O Caçador” um dos mais emblemáticos exemplos.”

sexta-feira, 24 de julho de 2015

“Alguém para Tomar Conta de Mim”
de Yrsa Sigurdardottir

Nas labaredas de uma peculiar justiça


Em 2009, um incêndio criminoso que vitimou cinco pessoas e destruiu as instalações de um lar de cuidados continuados em Sogn, a sudoeste da Islândia, colocou o pequeno país em sobressalto. A culpa fora atribuída a Jakob, um jovem adulto com síndrome de Down que na sequência da investigação foi condenado por fogo posto.

Não convencido com o veredicto, Jósteinn Karlsoon, um sociopata internado na Unidade Psiquiátrica de Sogn, assumindo-se como camarada de Jakob, entra em contacto com a advogada Thóra Gudmundsdóttir solicitando a reabertura do caso pois acredita na inocência do punido.

Ainda que muito receosa e timidamente, Thóra embrenha-se no caso e num ápice descobre, entre outras questões, como a sociedade ainda vê e trata os portadores de deficiência. Até ao início da década de 1990, estas pessoas não tinham direito a cuidados especiais e eram, muitas vezes, em casos de extrema gravidade, encerradas em prisões comuns.

Esta disfuncionalidade social muito distante de qualquer laivo de solidariedade, ajuda a contextualizar uma investigação que ameaça mexer com a estrutura da própria sociedade islandesa mergulhada numa profunda crise financeira e também moral.

Aos poucos, certezas e dúvidas ganham espaço num invernoso janeiro de 2010 que apenas aquece verdadeiramente devido ao mistério que Thóra tem entre mãos. Na companhia do seu companheiro Matthew, também ele abraços com as contingências da crise financeira que assola todo o continente, a advogada revê processos, entrevista familiares das vitimas e condenado, conversa com funcionários ligados à referida instituição psiquiátrica de Sogn e os resultados são preocupantes.

As visões de um incêndio criminoso, assassinato, violação e corrupções várias ganham corpo e para complicar ainda mais toda a investigação surgem dados sobre a morte de uma jovem por atropelamento e fuga, uma casa assombrada e alguns violentos e expressivos desenhos sobre a vida do internato na Unidade Psiquiátrica de Sogn.

Enquanto isso, Thóra recebe mensagens de texto anónimas que apontam direções precisas na investigação e tenta, exasperadamente, juntar as múltiplas peças de um enigmático puzzle.

À semelhança de toda a restante obra da islandesa Yrsa Sigurdardottir, “Alguém para Tomar Conta de Mim” (Quetzal, 2015) é um livro complexo, aditivo e que coloca o dedo na ferida da sociedade dita moderna que tende a esconder problemas (familiares ou outros) com falsas aparências, crimes e delitos realizados em proveito de uma verdade que se quer real, induzida.

Com uma assinalável dose de suspense, Sigurdardottir oferece-nos mais um grande thriller construído com uma bem-sucedida fórmula narrativa que faz com que cada capítulo seja revelado através de uma metodologia em crescendo que, numa primeira fase, contextualiza a ação e revela cenários e protagonistas, para depois, já no domínio dos diálogos, acelerar uma trama que desagua quase sempre numa frase ou ideia derradeira que serve de essencial pista para o que se segue.

Autêntico exemplo do que de melhor se faz em termos da dita literatura policial (nórdica), “Alguém para Tomar Conta de Mim”, eleito por alguns órgãos de referencia como o “Policial do Ano” e cujos direitos foram entretanto já reservados para uma futura adaptação hollywoodesca por parte do veterano produtor sueco Sigurjon Sighvatsson, apresenta os ingredientes certos de intensidade, emoção e assertividade que tornam este livro num dos mais interessantes dentro do género e que lhe vale, dizemos nós, a comparação com clássicos como “Voando Sobre um Ninho de Cucos” de Ken Kesey, muito por culpa por uma pertinente reflexão sobre as perturbações mentais e as consequentes questões sociais das mesmas.

In Rua de Baixo

Of Monsters and Men - “Beneath the Skin”

O suave travo da bonança


Corria o já longínquo ano de 1988 quando se sentiu, de uma forma definitivamente pronunciada, o primeiro grande eco alternativo da música feita na Islândia. O álbum “Life's Too Good” trazia os The Sugarcubes ao radar europeu (e não só) e era impossível ficar indiferente a tal assombro indie rock, que viria a atingir o seu auge com “Here Today, Tomorrow Next Week”, disco editado em 1989 e que confirmava a genialidade musical de Bjork Guðmundsdóttir e restante banda. Dessa safra, ficariam para a história temas como “Birthday”, “Deus”, “Regina” ou “Tidal Wave”.

Depois, já com Bjork a aventurar-se a solo, foram surgindo, naturalmente, mais focos de interesse vindos da Islândia. Com maior ou menor fulgor, nomes como os Múm, Gus Gus e, mais recentemente, Sigur Rós elevaram a bandeira islandesa e invadiam majors e editoras mais independentes. Curiosamente, ou não, a este movimento emigratório sonoro não se associavam bandas de cariz mais comercial – entenda-se o termo como não necessariamente depreciativo. Até que tudo mudaria em 2011, com a edição de “My Head Is An Animal”, trabalho de estreia dos Of Monsters and Men e que logrou escalar os tops britânicos e norte-americanos.

O sucesso do quinteto liderado por Nanna Bryndís Hilmarsdóttir e Ragnar "Raggi" Þórhallsson desenhava-se através de temas descaradamente pop, como “Disty Paws” ou o hit “Little Talks”, e essa magnitude fez-se sentir aquando da passagem da banda pela edição do Optimus Alive'13, com um palco Heineken completamente a abarrotar.

Três anos depois, a banda regressa com um muito aguardado “Beneath The Skin” e o resultado é um disco muito interessante, mais interior e emotivo, onde se destacam canções como as pérolas “Crystals” ou “I of the Storm”, os dois primeiros singles retirados do álbum, que revelam um relativo distanciamento da harmonia entre as vocalizações de Nanna e Ragnar, evidenciando um também caloroso formato, que privilegia refrões orelhudos sublinhados por uma bateria muito interventiva mas que, ainda assim, não esconde a veia folk da banda.

Por exemplo, “Human”, a segunda faixa de “Beneath the Skin”, eleva a presença da bateria (algo tribal), ainda que sejam deliciosamente audíveis laivos de cordas e, ocasionalmente, um feedback que desperta de alguma letargia. Aqui, as vozes masculinas e femininas misturam-se sem medos, algo que também sucede em momentos mais escuros como a tranquila e sedutora “Hunger”. E porque a luz, por vezes, se esconde por detrás das montanhas do pensamento, momentos como “Organs”, à base de piano, uma guitarra acústica e um quase impercetível violoncelo, conferem uma tranquilidade sublime em ritmo desacelerado.

Independentemente de cadências e estruturas sonoras, o segundo disco dos Of Monsters and Men é uma coleção de excelentes canções. Além das já referidas, destacamos ainda peças como “Black Water” ou “We Think”, momentos de indesmentível beleza que versam sobre palavras saídas de um qualquer conto efabulatório, ou não.

Sem grandes alaridos ou a tendência de dar um salto maior do que a perna, os Of Monsters and Men sabem o que querem fazer e até onde podem ir, e “Beneath the Skin” mostra ser um disco competente, assertivo, bonito e com um par (ou dois) de excelentes canções. Excelente para a época estival, este é um disco de consumo moderado, que se aprende a ouvir e, como um bom vinho, deixa um travo agradável no palato depois de consumido.

Alinhamento:

01. Crystals
02. Human
03. Hunger
04. Wolves Without Teeth
05. Empire
06. Slow Life
07.Organs
08.Black Water
09.Thousand Eyes
10.I of the Storm
11. We Sink

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

segunda-feira, 13 de julho de 2015

NOS Alive'15, dia 3

Dia de sotaque britânico


No derradeiro capítulo de NOS Alive'15, foram muitos e bons os concertos que aconteceram no Passeio Marítimo de Algés, que tiveram como denominador comum o sotaque britânico, com algumas honrosas exceções vindas dos Estados Unidos da América e Austrália. Se, logo no início, os irreverentes Sleaford Mods gritaram que o punk está bem vivo e recomenda-se, os portugueses Dead Combo mostraram como é fácil golear a jogar em casa e Azealia Banks não teve pudores: arrebatou e fez dançar. Pelo meio, os Mogwai deram um espetáculo cheio de força, Sam Smith encantou muitos milhares, os The Jesus and The Mary Chain recuperaram “Psychocandy”, Chet Faker entreteve as massas durante uma horita e os Disclosure, em formato live, demonstraram que estão em grande forma.

Sleaford Mods | 18h30, Palco Heineken

Vamos tentar explicar. Imaginemos um cruzamento entre Jello Biafra, Paul Gascoigne, spoken word, hip-hop minimalista e eletrónico, hardcore, um microfone, um computador, uma cerveja e uma garrafa de água. O resultado é, mais coisa menos coisa, os britânicos Sleaford Mods, uma dupla de Notthingham composta por Jameson Williamson (voz) e pelo “maestro” Andrew Fearn (programações), que trouxe ao palco Heineken a mais radical experiência punk da história do Alive.

Fruto de uma conjugação hipnótica de elevadas porções de niilismo, uma forte contestação social e uma descontração muito britânica, Jameson e Andrew chegaram ao palco como desconhecidos e saíram dele como um projeto que faz sentido, que primeiro se estranha, depois entranha, faz dançar e dizer cheers.

Entre “Silly Me” e “Tweet Tweet Tweet” passou pouco mais de meia hora e, desde que Fearn tocou no computador (nota de rodapé: Fearn, de cerveja na mão, passa o concerto a olhar para o público, a cantar para si e raramente toca na sua “máquina de ritmos”) e Jameson se fez ao microfone, é impossível resistir ao carrossel punk e “hooligan” dos Sleaford Mods, bem doseado pela rodopiante dança do vocalista, que encontra força e fôlego numa garrafa de água e numas bastas sacudidelas de cabelo com a mão, ingredientes principais num intenso ritual “autista” em forma de discurso contestatário.

Pelo caminho ficaram momentos como “Bunch of Counts”, “Live Tonight”, “Middle Men”, “Jolly Fucker”, “Tied Up in Nottz”, “Fizzy” (com dedicatória especial ao governo britânico) e “Jobseecker”, havendo também tempo para o novo single, “Tarantula Deadly Cargo”.

Rebeldes com causa, os Sleaford Mods são, mais do que uma banda, uma expressão urbana, um grito urgente e político, e um fenómeno a ter em conta. Afinal, punk’s not dead!

Dead Combo | 19h40, Palco Heineken

Neste último dia de NOS Alive 2015, olhando para o cartaz e respetivos palcos, os cardápios estavam delineados sem mácula, pois se, por exemplo, houvesse quem procurasse uma jornada mais “indie”, não precisava de sair do Palco Heineken. E, tal como há dois anos, neste mesmo lugar, os Dead Combo voltaram a dar um concerto inspiradíssimo, percorrendo um pouco de toda a sua discografia, mas com uma aproximação mais rock, pois Tó Trips e Pedro Gonçalves tinham como convidados, na bateria e precursões várias, respetivamente, Sérgio Nascimento e Isaac Achega.

Como habitual, sentada junto ao seu “fúnebre” altar decorado com flores, caveiras, e artefactos vários, a dupla iniciou hostilidades com o agitado “Cacto”, seguiu trajeto com o dolente “Rumbero”, fez abanar mentes e corpos com “Rodada”, num piscar de olhos ao universo do western spaghetti, e não perdeu oportunidade de revisitar “Bunch of Meninos” através de uma excelente versão de “Waits”, um elogio à parcimónia blusy do ontem quarteto, que libertava uma energia que contagiou as felizes almas que estavam no palco Heineken.

Enquanto uma tela nas costas do coletivo exibia imagens que contextualizavam os acordes, a viagem continuou com mais uma pérola retirada do último álbum de originais, a tropical “Hawai em Chelas”, que antecedeu dois dos mais brilhantes momentos da atuação: os já clássicos, alguns com dedicatória às "nossas miúdas", “A Menina Dança” e, talvez a melhor peça de filigrana nascida das mentes de Trips e Gonçalves, “Povo que Cais Descalço”, um exercício lindíssimo de um fado especial, tocante e maravilhosamente oferecido.

Numa apresentação que apenas pecou pela escassez de tempo (não ultrapassou os 50 minutos), tivemos a felicidade de ainda ouvir “Elétrica Cadente”, dançar com “Lisboa Mulata” e, para o final, com a bandeira grega em fundo e os ecos de um certo “oxi!” na memória recente, “Zorba the Greek” encerrou um grande concerto.

A moda dos calções, os calções da moda e outras indumentárias do NOS Alive 2015

Os festivais de música também são exímias passarelas de moda. Aqui criam-se tendências, absorvem-se tendências, marcam-se tendências, sendo as principais marcas presentes as principais responsáveis das direções tomadas. Se num ano optam por oferecer aos visitantes lenços para colocarem à volta do pescoço, toda a minha gente vai andar de lenço ao pescoço. Se no ano a seguir optarem por oferecer chapéus de palha aos visitantes, toda a minha gente vai andar de chapéu de palha. E por aí em diante.

Porém, a questão consegue ser bem mais complexa do que isso. A tendência vai ao ponto de – à imagem do rebanho que segue o seu pastor sem saber bem porquê – obrigar ao uso de indumentária x ou y porque está na moda, sob pena de, no caso de não obedecerem à norma estabelecida no Decreto-Lei para festivais nº42/2015, serem para sempre banidos da comunidade festivaleira. Os mini-calções da moda são um bom exemplo disso. Mesmo não ficando bem em toda a gente, toda a gente os usa, deixando à mostra partes do corpo que, por um lado já extravasam o conceito de sensualidade, por outro mostram ao mundo que não foi feita a devida pré-época estival no ginásio.

Mas, como nem tudo é um mar de espinhos, ainda há quem tenha conseguido imprimir um cunho pessoal nos trajes que escolheu para o festival. Para além das habituais t-shirts alusivas às bandas (há umas de Muse, com toda a digressão detalhada nas costas; outras de Prodigy e ainda umas de Disclosure, para além dos habituais clássicos de Nirvana, Metallica, AC-DC, Faith No More e até Run-DMC), há aquelas célebres t-shirts que distorcem os nomes das marcas (o resultado final está, normalmente, relacionado com drogas, comas alcoólicos ou frases de engate à trolha). Um pouco para todos os gostos.

Por outro lado, há quem exagere na excentricidade das indumentárias, marcando, por isso mesmo, a diferença. Há quem se vista à punk, parecendo ter saído de um concerto no CBGB, há quem se vista à hippie, parecendo ter viajado no tempo de 1969 para os dias de hoje e há quem exiba umas dreadlocks de fazer inveja ao mais dedicado rastafari. Vimos ainda um conjunto de rapazes com uns fatos de patinho de borracha (a dada altura, fazem uma espécie de centopeia humana na plateia no palco principal – WTF??!!), uma super-mulher (super-homem, ou lá o que era aquilo), umas vaquinhas malhadas, uns dinossauros e outros pormenores capazes de chamar à atenção pelas melhores razões. Há que saber distinguir o original do banal.

Sam Smith | 21h00, Palco NOS

A lição que Sam Smith trouxe ao NOS Alive foi simples: é possível servir bons concertos sem ter que transformar o recinto numa pista do Pacha ou numa festa de reveillon madeirense. Basta fazer uso daquilo que realmente vale e que, até ver, ainda é o mais importante nestas andanças: a música ter uma boa dose de carisma, ser bom comunicador (não basta pendurar a bandeira do país que visita ao pescoço e passear-se em palco como forma de homenagem local), ter uma boa banda de suporte já é meio caminho andado para o sucesso. Os outros 50% ficam na mão do público. Se este estiver para aí virado, tudo bem. Se não estiver, paciência.

No caso de Sam Smith, a empatia foi imediata. A sua entrada em palco, de sorriso rasgado, visivelmente satisfeito com o facto de estar de volta a um dos seus “festivais preferidos” (no ano passado tinha atuado no palco secundário; este ano, saltou para o principal – não há músico que não se sinta realizado ao inteirar-se destes progressos na carreira), quebrou, juntamente com as histórias de amores e desamores que fez questão de partilhar com o público (as suas inspirações para o álbum), a barreira que frequentemente se ergue entre palco e plateia, criando um laço de cumplicidade que durou até ao final da atuação.

“I’m Not The Only One” é a primeira do alinhamento. Há pessoas que arrancam a correr em direção ao palco de forma desenfreada, para não perderem uma letra que seja da música. Há muitas raparigas – mas também muitos rapazes – a quererem garantir a proximidade de Sam Smith, afinal de contas, estamos perante uma estrela internacional, vencedora de um Grammy para Melhor Música (“Stay With Me”, uma das mais celebradas do alinhamento) e Artista Revelação do Ano, entre outros. Entenda-se a loucura.

À medida que vai interpretando temas do seu álbum de estreia, “In The Lonely Hour”, Sam Smith vai introduzindo as músicas e explicando como surgiram e a importância que tiveram em certas fases da sua vida. Diz que “Leave Your Lover” é umas das suas favoritas do álbum, que “Lay Me Down” é dedicada a um rapaz que lhe partiu o coração por completo e que “Money on My Mind”, tema de abertura de “In The Lonely Hour”, é a única canção que não fala de amor. A dada altura, partilha com o público os problemas que teve de identidade, em assumir quem realmente era (a referir-se, certamente, à descriminação que ainda existe em torno da homossexualidade). É um concerto, mas podia muito bem ser uma conversa ou um desabafo. Um relato de vida.

Há tempo ainda para uma homenagem à falecida Amy Winehouse (uma baixa insubstituível na história da música), com "Tears Dry On Their Own”, e uma passagem por “Le Freak (Freak Out)”, dos Chic, e “Ain’t No Mountain High Enough”, de Marvin Gaye e Tammi Terrell. Por esta altura, Sam Smith já tem o público completamente na mão, o que faz com que “La La La”, tema de Naughty Boy ao qual o vocalista empresta a voz, seja apenas de consolidação junto dos milhares que assistem atentos e participativos na plateia. Todos cantam. Todos dançam. Todos aplaudem.

Mas a apoteose acabaria por vir em “Stay With Me”, tema cantado a plenos pulmões em todo o recinto, levando o próprio Sam Smith a emocionar-se, de lágrimas nos olhos, perante tamanha adesão. É que não houve vivalma que não soubesse a letra de cor e não participasse neste magnânimo coro. De arrepiar.

Mogwai | 21.10h, Palco Heineken

É preciso recuar até à já longínqua edição de 1999 do Festival Paredes de Coura para recordar a primeira vez que os escoceses Mogwai pisaram o território luso. Na memória ficou um concerto quente, cujo alinhamento explorou com grande avidez dois dos maiores símbolos discográficos da história do movimento post-rock: “Young Team” e “Come On Die Young”.

No ano em que comemora 20 anos de estrada, música e muitos palcos, a banda de Stuart Braithwaite e companhia chegou a este NOS Alive 2015 com uma vontade de dar a conhecer o seu riquíssimo catálogo musical, unindo passado e presente, guitarras ao desalinho com laivos recentes de eletrónica, e um carisma sonoro que nos transporta para um Olimpo repleto de pedais distorcidos, feedbacks em espiral melódica e outros desvarios típicos do ADN post-rock.

Os primeiros acordes surgiram com “White Noise”, faixa retirada de “Hardcore Will Never Die, But You Will”, mas, lamentavelmente, o som não ajudou muito na fase inicial do concerto. Ainda assim, essa questão foi sendo revolvida gradualmente e pudemos assistir a uma boa performance dos Mogwai, agora versão sexteto, devido à inclusão de Luke Sutherland, escritor e músico inglês, que tem acompanhado a banda.

Envolto de um misterioso ambiente sónico, “Summer” fez recuar até aos iniciáticos tempos de “Young Team”, com os cortantes riffs a contrastarem com momentos mais contemplativos, numa espécie de montanha-russa auditiva, plena de emoção, que nos faz subir e descer a pulsação a um ritmo frenético - sentimento esse que encontrou eco na muito aplaudida versão de “I’m Jim Morrison I’m Dead”, um exercício que inicia com um piano quase onírico mas que acaba por terminar num saudável e melódico frenesim. Mais agressivo, “Rano Pano”, um regresso a “Hardcore Will Never Die, But You Will”, fez sobressair a bateria de Martin Bulloch, ainda que nunca retirasse espaço ao espetro sónico, agora assombrado por salpicos eletrónicos, característica essa que teve expoente máximo com “Mexican Grand Prix”, a lembrar os ritmos mais dançáveis de uns Joy Division.

“Hunted By Freak”, faixa que abre “Happy Songs for Happy People”, tornou a atmosfera mais negra e a esta penumbra sónica juntou-se o violino de John Cummings, que momentaneamente abandonou a guitarra. O público reagiu com muitas palmas, que se adensariam com os primeiros acordes de momento épico que é “Mogwai Fear Satan”, uma das maiores e melhores composições da banda escocesa. O resultado é um longo caleidoscópio que provoca calafrios, acelerações cardíacas, espasmos de energia, um desejo de explodir num qualquer céu estrelado.

Até ao final, ainda ouvimos “Teenage Exorcist”, com Braithwaite ao microfone, “Remurdered”, sacada do alinhamento de “Rave Tapes”, e, como remate final, a deliciosa “Batcat”, com direito a repetição devido a problemas técnicos com uma das guitarras, mas que, resolvida a situação, funcionou com um epílogo hardcore exuberante.

Feitas as contas, analisados os prós e contras (técnicos), o saldo é muito positivo - nada que se estranhe da assinalável mestria desta banda, pois eles são os "Mogwai, from Glasgow, Scotland".

The Jesus and Mary Chain | 22h35, Palco Heineken

Quem gosta realmente de música, aprendeu a crescer com ela, com os seus ensinamentos, histórias, heranças e raízes. Com o passar dos anos surgem novas bandas, movimentos, são criados estilos mas não é todos os dias que temos a oportunidade de ver ao vivo quem está na génese de um estigma criativo, de uma imagem única que inspirou gerações a pegar em guitarras, baixos e bateria, e ter o pretensiosismo de formar uma banda.

É por isso um prazer (re)ver os agora grisalhos irmãos Jim e William Reid, que ousaram, no início da década de 1980, formar uma banda que, também ela, se inspirou nos universos de gente como os The Stooges, The Velvet Underground ou The Beach Boys e fez alguns dos melhores discos da rica história da música alternativa. E foi para apresentar, na íntegra, um desses brilhantes tomos, que os The Jesus and The Mary Chain subiram ao palco Heineken e abriram a caixa de Pandora que foi, é e será, sempre, “Psychocandy”, um disco de 1985 mas que continua a soar a novidade.

Para dar as boas-vindas aos escoceses, reuniu-se um palco Heineken bem composto, sem estar cheio, com gente que seguramente abraça e ultrapassa a ternura dos quarenta e está de alma aberta para receber o negrume dos feedbacks de William e o sussurro vocal de Jim.

De uma maneira que afastou fantasmas de anteriores concertos em formato vamos-lá-despachar-isto-rápido, os The Jesus and Mary Chain exploraram literalmente o filão de “Psychocandy” e, com muito fumo à mistura, o palco transformou-se num santuário sónico de melodias que cruzam mel e fel, saudade e sorrisos tímidos.

Logo a abrir, “Just Like Honey” fez com que não fosse preciso beliscarem-nos, pois, mais do que um sonho, era um concerto de The Jesus and Mary Chain e, ao longo de mais de uma hora (oxalá fosse mais…), sentimos batidas seguras, guitarras em louvor de pedais abençoados pelas divindades feedbackianas e uma atitude expressiva (ou não) q.b. por parte dos principais protagonistas.

Depois foi abrir ouvidos e alma e deixar entrar o som trashy de “The Living End”, “In a Hole” ou “Never Understand”, a densidade de “Taste the Floor”, o espectro sónico da belíssima “Taste of Cindy”, a urgência surf de “The Hardest Walk”, o elogio ao baixo que são “Inside Me” e “Something’s Wrong”, as mais doces “Sowing Seeds” e “Cut End”, a melodia de “You Trip Me Up” e o longo e denso suspiro que é “It’s so Hard”. Tudo isto embrulhado com assinalável entrega (é preciso dizer também mestria?), reconhecida harmonia vocal, muito fumo e um jogo de luzes que transformou o palco num altar de tons cinzentos, onde a luminosidade era, acima de tudo, sonora.

Depois de “Psychocandy”, tivemos ainda o privilégio de ouvir mais três peças da história da banda. A saber: “Head On”, “Some Candy Talking” e, por fim, “Reverence”.

Chet Faker vs Azealia Banks: um verdadeiro choque térmico

Não há nada que se possa dizer do concerto de ontem de Chet Faker que possa acrescentar alguma coisa ao que foi dito e escrito relativamente às duas datas no Coliseu dos Recreios. É um músico talentoso, um verdadeiro sonoplasta multifacetado: constrói canções, manipula-as à sua maneira, mete efeitos, sobe faders, roda botões. E, quando é altura de cantar, não falha. Servem de exemplo temas como “I’m Into You”, “Talk Is Cheap” e a cover de Blackstreet, “No Diggity”. Até aqui tudo bem.

Porém - e desculpem-nos os fãs mais afincados, ou mesmo aqueles que não tiveram hipótese de o ver nos Coliseu e encontraram nesta passagem pelo festival uma bomba de oxigénio -, este não era o concerto indicado para esta hora, para este ambiente, para este palco. A música de Chet Faker é perfeita para sunsets nos bares de praia da Costa da Caparica ou fins de tarde nas esplanadas dos cafés das docas lisboetas - não é para ser encaixada com calçadeira entre Sam Smith e Disclosure. Nem tão cedo perdoaremos esta falha de Stromae...

A passagem do concerto de Chet Faker para o de Azealia Banks equiparou-se àquelas alturas em que entramos dentro de uma banheira de água quente sem preparação prévia. Por esta altura, Azealia Banks levava a tenda Heineken ao rubro com os seus temas vibrantes, carregados de subgraves (sub, sub, sub e mais sub), ao bom estilo de Missy Elliot, e com a sua presença contagiante em palco – bem como a dos seus bailarinos. Estão a ver aquelas festas nos clubes nova iorquinos carregados de pessoal até não poder mais e com um ambiente de cortar à faca? Nada a ver. Este é o ambiente perfeito para quem gosta de rap pelos contornos meramente musicais, ainda que as letras de Azealia Banks não tenham muito sumo para espremer - veja-se o caso de temas como “Yung Rapunxel”, “Bbd (Bad Bitches Do It)” e “Desperado”. O concerto ideal para a hora, espaço e público em questão.

Disclosure | 01:00, Palco NOS

Já vimos neste palco muitos espetáculos de música electrónica, como Chemical Brothers, The Prodigy, Duck Sauce, Steve Aoki (a cantar desde 1919....), LCD Soundsystem, e outros que a memória já não consegue alcançar, e garantimos: este foi, de longe, um dos melhores.

Luz e vídeo sóbrios, sem grandes extravagâncias e sem, voltamos a repetir, transformar o recinto numa discoteca parola (não há tartes nem confetis, nem serpentinas, nem vuvuzelas, nem pirotecnia pacóvia, nem bolas, nem o raio que o parta). Há linhas de luz robotizada que sobem e descem consoante as músicas, há todo um cenário de leds que vai ilustrando a atuação do duo (houve mesmo um gato a atravessar o ecrã de um lado ao outro, ou foi mera alucinação?), e, claro, há todo um conjunto de canções orelhudas, dentro do limite do aceitável, capazes de levar multidões ao êxtase.

Iria este concerto dos Disclosure aproveitar a presença de Sam Smith para uma participação no tema “Latch” e, quem sabe, para estrear ao vivo a nova música que o coletivo se prepara para tornar pública? Esta era uma das maiores incógnitas de todo o festival. Incógnita essa que se evaporou no momento em que o coletivo se atirou a “Latch”, já no encore, sem que Sam Smith tivesse entrado em cena (vem, não vem, no verso, no refrão – nada....). Foi pena, mas não evitou que a festa se fizesse na plateia, até porque foi o próprio público a tomar as rédeas da canção e mostrar que ainda havia energias de reserva para garantir que o duo britânico voltasse a sair de Portugal com boa impressão - umas juras de amor entre palco e plateia acabaram por garantir que o sentimento era recíproco.

Kwabs, o homem de “Walk”, acabou por ser o único convidado da atuação, tendo-se juntado ao duo para dar voz a “Willing & Able”, um dos temas novos que o coletivo trouxe para o concerto.

Ver DJs ou produtores atuarem em formato live deixa sempre uma incógnita no ar: mas estarão eles realmente a fazer alguma coisa? Ou será apenas um excelente exercício de coordenação e mímica? Se muitas vezes desconfiamos das rainhas (e reis) da pop quando sobem ao palco e protagonizam concertos irrepreensíveis a nível vocal, porque não desconfiar do pessoal que se esconde atrás de um deck de CDs ou de um móvel recheado de samplers, computadores, sintetizadores e mais uma data de aparelhos dignos de um cockpit dos mais avançados Boeings? Será sempre um gigantesco ponto de interrogação. Na atuação dos Disclosure houve coisas tocadas; outras pré-gravadas, não sabemos ao certo o quê, mas também não é assim tão relevante.

Do alinhamento do duo fizeram parte temas como “White Noise” (a primeira de todas, a estender a passadeira vermelha a “F for You”), “You and Me”, “When a Fire Starts to Burn”, “Help Me Loose My Mind” (uma das mais belas de “Settle”) e “Grab Her”. Houve espaço para outros temas novos, como “Bang That” e “Holding On”, pastilhas efervescentes para a pista de dança, a seguirem a mesma fórmula e a resultarem ao mesmo nível das mais antigas. No final da atuação, depois de uma celebradíssima “Latch”, que não deixou ninguém indiferente (visto aqui de baixo, até na zona VIP há pessoas atentas e a dançar, por mais incrível que pareça), a expressão de satisfação era geral. Estava assim concluída mais uma edição do NOS Alive, pelo menos para nós, pois as tendas Clubbing e Heineken ainda propunham música até às tantas.

Com Manuel Rodrigues

Fotografias: Marta Ribeiro e Rita Bernardo

In Palco Principal

domingo, 12 de julho de 2015

NOS Alive'15, dia 2

Foi você que pediu um dia eclético? 


Fusão, noise, rave versão hardcore, hip-hop, dance, soul, pop e alguns silêncios. Eis aquilo que muito se ouviu no segundo dia de NOS Alive, data que ficou marcada pelo apelo excêntrico dos Blasted Mechanism, pelo punk urgente dos meninos Marmozets, pelo elogio da palavra da senhora Capicua, pelo desvario dançante dos The Ting Tings e Róisín Murphy, pela irreverência synthpop dos Future Islands, passando pela dicotomia caos/silêncio de The Prodigy e James Blake.

Blasted Mechanism | 18h00, Palco NOS

Uma das bandas que faz parte do imaginário coletivo dos portugueses, os Blasted Mechanism são a prova de que vale a pena subir aos palcos e distribuir magia em forma de música, tenho ganhado, merecidamente e há muito, um especial culto.

No ano em que completa duas décadas de existência, o coletivo de Valdiju, Guitshu e companhia continua a ser responsável por um rock de fusão que tem as principais referências na World Music e nos filões alternativos e eletrónicos, não sendo estranha a convivência entre guitarras elétricas de duplos braços, bambulecos, um didgeridoo, tambores e aquilo que a imaginação propuser.

Visualmente (e, por vezes, também sonoramente) herdeiros da excentricidade de uns Sigue Sigue Sputnik, ainda que sem ramificações cyber-punk, os Blasted Mechanism voltaram a ocupar lugar no palco principal no Alive, depois do concerto memorável que deram na edição do Alive Oeiras 2007. E, tal como nesse dia, ontem os Blasted voltaram à carga com mais um espetáculo carregado de energia, que teve como um dos principais atrativos “Egotronic”, o mais recente álbum da banda.

E seria mesmo “Really Happen”, canção retirada do novo disco, a abrir a contenda e a espalhar brilho, excentricidade e um ritmo forte à base de riffs pujantes, batidas certeiras e uma eletrónica bem latente, alicerçada na habitual e competente componente cénica, desta vez com os membros da banda “vestidos” em tons de negro e branco.

Ao longo de perto de uma hora bem passada, os Blasted Mechanism fizeram o já muito público dançar, bater palmas e sentir o seu espólio criativo com clássicos como a galáctica “Blasted Generation”, a descaradamente dançante “Karkov (Nadabrovitchka)”, o interventivo “Puxa Para Cima a Tua Energia”, o também recente “Liberation” e, a fechar, o instrumental “The Atom Bride Theme”, composição que colocou definitivamente o coletivo no radar da música nacional.

Marmozets | 19:20, Palco NOS

Energia, garra e entrega. O concerto de Marmozets incendiou por completo o palco NOS, numa hora em que ainda poucas pessoas se concentravam na plateia e em que o sol começava timidamente a caminhar em direção ao horizonte do atlântico. Amplificadores de guitarra no máximo (nível 11), baixo possante e distorcido, bateria agitada e uma voz feminina que consegue ir do registo dito normal à berraria. A ficha técnica dos Marmozets sublinha que estes são afiliados à editora Roadrunner, casa-mãe de bandas como Slipknot, Caliban, Hatebreed e Lamb of God. Isto explica muito daquilo que se passou em palco.

São miúdos, é verdade – a média de idades deverá rondar os 25 anos (se tanto), sendo que a vocalista, Becca Macintyre, tem 19 anos. Mas isso não lhes impede de se comportarem em palco com a mesma postura dos trintões e quarentões que exercitam o mesmo género. Becca, irmã de Josh (bateria) e Sam (guitarrista), vai apresentando as músicas ao público à medida que as interpreta, gingando pelo palco ao bom estilo de Jagger e aumentando a concentração de testosterona na plateia. Os seus irmãos, bem como Jack e Will Bottomley (guitarra e baixo, respetivamente), vão assegurando a parte instrumental, e, sempre que podem, vão puxando pelo público - numa das pausas, um dos guitarristas consegue bater o recorde de “fucks” numa frase, rematando com um “you’re fucking amazing” e levando a plateia ao delírio.

Por este palco já passaram bandas como Paramore, verdadeiras desilusões no que toca à performance ao vivo. Estes miúdos, com apenas um álbum editado, de onde retiraram temas como “Love You Good”, “Captivate You”, “Born Young And Free” e “Hit The Wave”, conseguiram chegar e vencer. Ainda para mais depois de se terem atirado a uma versão de “Iron Man”, dos Black Sabbath, para regozijo dos publico mais velho. Há que ser inteligente...

Capicua | 20.50h, Palco NOS Clubbing

O circular constante num espaço como é o festival NOS Alive proporciona assistir a fenómenos curiosos. Muitos são os que aproveitam as tendas dos palcos temporariamente vazios para descansar, comer ou simplesmente conversar. À medida que os artistas chegam ao palco, alguns vão à procura de melhor destino.

Mas também há casos em as pessoas acampam para esperar pelo seu artista preferido, para ter o melhor lugar, para ver bem de perto tudo o que se passa e é transmitido no palco. E foi isso que aconteceu com o (muito aguardado) concerto de Ana Matos Fernandes, conhecida no meio musical como Capicua.

Com a tenda do NOS Clubbing a abarrotar pelas costuras, Capicua, M7, Virtus na programação, DJ D-One no scratch e Dário na arte desenhada em forma de grafitti informático, ofereceram um dos momentos mais memoráveis deste segundo dia de NOS Alive, com a habitual mestria de um Hip-Hop que tem como especial encanto a descarada métrica da língua portuguesa e a genialidade das letras de Capicua, mulher que não vira a cara à luta e que é, hoje, um dos nomes maiores da cultura musical nacional.

Ainda que lesionada, Capicua não deixou de saltar, timidamente, pedir braços no ar e dar, de mão beijada, música com sentido, palavras cujo fado versa sobre causas sociais, medos diversos, injustiças, ódios, política, amor, desejos e uma liberdade que, nas suas palavras, "é feita e conquistada todos os dias".

Depois de uma entrada à capela em que Capicua, qual mulher do Norte, reforça que todos podemos ser "o fruto da cultura", “Mão Pesada” foi o primeiro capítulo musicado, seguindo-se de “Jugular”, um dos temas incluídos no coletivo de remisturas intitulado “Medusa”, o swingante “Sereia Louca” e “Maria Capaz”, tema a que nem um “prego” de Capicua retirou o brilhantismo.

Com toda a gente de braços de ar, Capicua não deu tréguas e desfilava, com distinção e um delicioso fôlego “tripeiro”, temas como “Tabu”, “Casa de Campo” e “Medusa”, momento que contou com a presença de Valete.

O concerto terminaria com “Barulho”, não sem antes o muito público presente ter direito a fazer uma viagem até “Vayorken”, tema que torna impossível não dançar, vibrar, sentir Capicua, ou, por que não dizer, "a Ana da bronca, sempre do contra".

Um passeio pela cobiçada zona VIP, ao som de Sheppard

A avaliar pela quantidade de pessoas que se aglomeram na entrada da zona VIP do festival, esta é uma das zonas mais concorridas do recinto. Há quem tente intrujar os seguranças à porta. “Mas a minha amiga entrou”, “mas o outro disse-me que podia”, “mas eu sou filho ou sobrinho de fulano tal” - todos os argumentos são válidos para aceder ao terraço do espaço, que fica mesmo de frente para o palco principal, mas a uma distância generosa. Mas, afinal de contas, o que haverá de tão aliciante nesta zona? Vamos averiguar.

No piso térreo podemos dar de caras com um ambiente digno de uma festa da discoteca Lux. Há miúdas giras, de sorriso rasgado, a garantirem que vale a pena permanecer algum tempo dentro do espaço e não ir já embora. Há um DJ a tocar num prestigiado Funktion-One e algumas pessoas a conversar aqui e ali. Há quem se cruze connosco de nariz empinado, transparecendo um enorme sentimento de superioridade. Afinal de contas, VIP é a sigla para “Very Important People”. Mas também há quem olhe para nós e pense que somos importantes, filhos de algum músico, primos de algum elemento da organização, ou, até, quem sabe, um dos artistas que vai pisar um dos palcos secundários. Este é o quem é quem versão festival, um poker face ao nível da mais profissional liga de poker.

No piso superior, o ambiente é similar. Não há DJ nem nenhuma atividade aliciante, salvo uma projeção vídeo alusiva à cidade de Lisboa (Ponte 25 de abril, Rio Tejo, etc.), mas há um bar que serve um gin tónico à maneira. Neste patamar, quem toma as rédeas da música ambiente são os Sheppard, coletivo australiano responsável pelo êxito radiofónico “Geronimo”. Está-se tudo nas tintas para o que a banda faz ou deixa de fazer em palco. Desde que garantam uma música de fundo para que as pessoas possam falar à vontade, sem recear que o vizinho do lado possa perceber que, na verdade, estão a falar mal dele. Sim, os VIPs são como nós, comuns mortais - também cortam na casaca uns dos outros.

Ouvem-se as primeiras notas de “Geronimo”. Algumas pessoas deixam a conversa ao meio e correm em direção ao parapeito desta gigantesca varanda e.... sacam do telemóvel para filmar o momento. Cantam o refrão um par de vezes e regressam ao grupinho onde estavam com a sensação de dever cumprido. A música chega ao fim, ouvem-se uns aplausos eufóricos como se este estivesse a ser o melhor concerto do mundo, e a coisa continua, com a apatia normal de quem está a ouvir música de fundo. O gin está bom, o sorriso das raparigas giras é cativante, mas vamos pregar para outra freguesia.

The Ting Tings | 22.10h, Palco Heineken

Inquilinos privilegiados de um luxuoso edifício musical alicerçado numa mistura de rock indie, new wave e elevadas doses de um descarado punk dançável e sintético, a dupla britânica The Ting Tings, composta pelos multi-instrumentalistas e cantores Katie White e Jules de Martino deu, sem dúvida, um enorme e vibrante espetáculo, tornando, durante uma hora, o palco Heineken numa gigante pista de dança.

Depois da introdução excitante que foi “Jim Morrison Speaks” e do gingão “This is What you Want”, com toda a tenda a saltar ao movimento da deambulação frenética de White, a menina dos The Ting Tings não perdeu a oportunidade de exercitar o seu português através de uma cábula, ao qual não faltou um ou outro requintado palavrão, mas que tinha como mensagem primordial um elogio à celebração da música. E foi, religiosamente, dizemos nós, cumprida a missão.

Mais orgânicos e “pesados” ao vivo, Katie e Jules, na companhia de um DJ, atacaram, numa primeira fase, temas como “Great DJ” e “Hang it Up”, retirados respetivamente de “We Started Nothing” e “Sounds from Nowheresville”, os dois primeiros discos da banda, e faziam crescer as expectativas, pois é difícil entender quais os limites que os The Ting Tings conseguem estabelecer em palco.

Enquanto Katie White troca de guitarra, Jules de Martino, divide a atenção entre bateria e também guitarra, e “Hang it Up”, com muito scratch à mistura, é o trampolim perfeito para a chegada de uma das estreias da noite. Falamos de “Green Poison”, tema incluído no recente “Super Critical”, que foi apresentado com especial pedido de coloração em palco e cujo estonteante groove atinge os nossos ouvidos, e corrente sanguínea, de forma certeira. A celebração seguiu-se com “Shut Up & Let Me Go”, um irresistível apelo à dança onde os esparsos acordes da guitarra de Katie White são como um sentido obrigatório numa estrada sem limites de velocidade.

Mas nem só de guitarras e bateria se faz a dupla Katie & Jules, pois, em vários momentos do espetáculo, foram seis as mãos a manobrar os efeitos sonoros, samples e afins, que trouxeram ao Palco Heineken, por exemplo, ecos dos desconcertantes Talking Heads, através de excertos de “Once in a Lifetime”.

Já de regresso ao set habitual, seguiram-se “Fruit Machine”, em ritmo descaradamente clubbing, o punky “This is Not My Name” e, envolto num saudável caos sonoro, “Hands” seria a apoteose de um magnífico concerto que levou mesmo, nos instantes finais, Jules de Martino a gravar o momento no telemóvel.

Mumford & Sons | 22:20, Palco NOS

Há em Mumford & Sons dois tipos de Mumford & Sons: o acústico e o elétrico. O primeiro de todos – menos interessante, no nosso entender – tem como epicentro o banjo e a viola, indo buscar inspiração à folk pastoral, responsável pelas sonoridades presentes em “Sigh No More” e “Babel”, os dois primeiros álbuns do coletivo. O segundo – mais atrativo para os nossos ouvidos – liga-se à corrente elétrica e vai buscar nos amplificadores a energia necessária (com conta, peso e medida) para explodir ao vivo. Se funcionaram os dois em concerto? É óbvio que não, até porque é a própria banda a primeira a afirmar que já não se indentifica assim tanto com o banjo e os campos verdejantes da folk, sendo este último álbum, “Wilder Mind”, um excelente exemplo disso.

É de admirar a coragem que Marcus Mumford teve para redesenhar a sua sonoridade, arriscando perder alguns fãs e reconstruir o seu batalhão de seguidores. Porém, tal afastamento parece não ter acontecido. As pessoas que cantaram e aplaudiram “I Will Wait”, single do álbum “Babel”, despachado nos primeiros momentos do concerto, foram as mesmas que acenderam isqueiros em “Believe”, belíssimo single do mais recente disco, que conta com um magnetizante crescendo, desembocando numa explosão controlada de instrumentos. Ainda assim, é de salientar que foi maior a entrega do público em temas como “Tompkins Square Park”, “Snake Eyes” e “Ditmas” do que em canções como “Below My Feet”, “Thistle & Weeds” e “The Cave”. E falamos do público em geral, não só dos fãs. É tudo uma questão de décibeis debitados.

Future Islands | 23:30, Palco Heineken

Provavelmente, um dos melhores concertos desta edição do NOS Alive (não façamos juízos precipitados, para não corrermos o risco de sermos apedrejados em praça pública pela falta de coerência das nossas afirmações). A banda de Samuel Herring voltou a repetir a proeza alcançada no Musicbox, desta vez num espaço maior, com mais público e mais condições a nível sonoro, levando o público ao êxtase com um concerto altamente competente, combinando todas as energias e mais algumas que é possível encontrar no cerne do seu vocalista e frontman: elétrica, atómica, sub-atómica, nuclear, térmica. Todas e mais algumas, capazes de nos deixar a refletir se é humanamente possível atingir tal patamar de entrega.

Samuel Herring devorou todos os manuais sobre como ser um bom frontman. Nem precisava cantar. A sua expressão corporal é tão eficaz que consegue substituir de forma fidedigna o uso da palavra. Pura linguagem gestual. Ele abana-se, contorce-se ao bom estilo de Ian Curtis, dança o kalinka, movimenta-se que nem um verdadeiro Cassius Clay (flutua como uma borboleta e pica como uma abelha), esbofeteia-se, dá murros no ar, no peito, esquiva-se de balas perdidas, arremessa objetos invisíveis, ergue taças de líquido imaginário, brinda com o público e bebe de golada, e, ao mesmo tempo, por mais incrível que pareça, canta. E grita. E grunhe. Cada palavra, perdão, cada letra daquilo que diz é sentida, desde a unha dos pés à ponta do cabelo suado. Aqui está um frontman como deve ser. Louco e visceral.

“I don’t wanna talk, lets make some music”, diz-nos no início do concerto. “A Dream of You and Me” é a primeira do alinhamento, uma verdadeira aula de aeróbica para quem quer perder uns gramas para a atual época estival, seguindo-se outras músicas do repertório da banda, como “Walking Through That Door”, “Before the Bridge”, “Doves”, “A Song for Our Grandfathers”, “Light House” e, claro, para satisfação de muitos, “Seasons (Waiting on You)”, um regresso àquele mítico episódio do programa Late Night Show with David Letterman que os catapultou para a ribalta. O público canta, dança, aplaude, tenta acompanhar alguns dos movimentos protagonizados em palco por Herring, e sai do concerto visivelmente satisfeito, com um sorriso que só se equipara à própria qualidade musical dos Future Islands. Sem espinhas.

The Prodigy | 00:30, Palco NOS

O que se quer de um concerto dos The Prodigy? Certamente não serão os solos de guitarra e muito menos momentos melodiosos protagonizados por algum piano ou violino. Também não são as qualidades vocais dos seus vocalistas (neste caso, mestres de cerimónia), muito menos a inteligibilidade das suas letras. O que se pede num concerto dos The Prodigy é força e potência. Quer-se que as músicas nos cheguem aos ouvidos e corpo como paredes intransponíveis de décibeis, capazes de nos atropelar os sentidos e contaminar o corpo com uma espécie de vitamina para dançar.

Este teria sido um concerto perfeito se o som para o público estivesse bem mais alto. O desempenho em palco do coletivo foi tremendo, com Keith Flint e Maxim incansáveis no incentivo e nas juras de amor ao nosso país, mas a amplificação mostrou-se insuficiente na altura de injetar no público o soro produzido em palco. E, desta vez, a culpa é completamente alheia à banda. Culpe-se o técnico de som. Fogueira com ele.
A abertura do concerto é feita com “Breathe”, um trunfo forte para agarrar o público no primeiro momento.

Os comentários sobre o volume são imediatos e quase unânimes: por esta altura qualquer aparelhagem caseira ou mesmo o rádio a pilhas do nosso avô é capaz de tocar mais alto do que os altifalantes pendurados à esquerda e à direita de cena. A guitarra ouve-se mal, os sintetizadores também, o que nos chega é uma mistura mal amanhada de frequência graves. A história repete-se em “Nasty”, “Omen” e “Firestarter”. Primeiras músicas estragadas. Ainda assim, não há quem se prive de fazer a festa e dançar. Que isto não seja impedimento para a diversão. A purga é fundamental.

Só em “Voodoo People” é que as coisas melhoram – entretanto, pelo caminho, ficaram canções como “Roadblox”. Por esta altura, os instrumentos estão mais audíveis e o técnico parece ter subido ligeiramente os faders da mesa de mistura. “Invaders Must Die” já nos chega em condições, apesar da versão quase irreconhecível servida pela banda, e “Smack My Bitch Up” já nos entra pelos ouvidos qual tsunami devastador, acompanhada por um jogo de luzes quase psicadélico que, ao longo do concerto, foi pintando palco e plateia de forma irrepreensível. “Take Me To The Hospital” é o grito final da banda britânica, um tema carregado de energia, perfeito para rematar em grande a atuação.

James Blake | 01.00h, Palco Heineken

Ainda com muitas convivas a trocarem palavras sobre os concertos dos The Tings Tings e Future Islands naquele mesmo espaço, era impossível ficar indiferente às descargas incendiárias que chegavam do Palco NOS, por via da energia dos The Prodigy.

Alguns estavam mesmo apreensivos sobre como poderia James Blake sobrepor o seu “silêncio” ao referido ambiente, mas, aos primeiros acordes de “CMYK”, o perfil dolente, quebrante e lânguido do universo do músico britânico abafou tudo à sua volta. Estávamos, assim, prontos para uma viagem que iria percorrer "um pouco de tudo", por isso, aconselhava o músico, a tarefa do público era, foi, "divertir-se".

“I Never Learnt to Share”, numa atmosfera quase cerimonial, como de resto é toda a música de Blake, libertava impulsos térmicos, quentes, como os espasmos de uma particular pulsação. Essa matemática sonora encontrou na perfeita equação que é “Limit to Your Love”, um original de Feist, a prova do inquestionável desafio ao silêncio que são as criações presentes em discos como “Overgrown”. Nem mesmo a insatisfação de James Blake com a sua performance – que o levou a repetir o início desta canção – arrefeceu o ambiente. O público respondia afrmativamente e as palmas, tímidas de início, acompanhavam o coro que ganhou ainda mais corpo com o desalinho mais “agressivo” de sublinhado trip-hop.

O desfile seguiu-se entre as marés mais calmas de “I Am Sold”, a mais eletrónica “Life Round Here” e o sussurro que é “Lindisfarne II”. Pelo meio, em alguns pontos da assistência, muitos não conseguiam disfarçar a excitação do dia, tentando elevar a voz acima da música para se fazerem ouvidos, criando um indesejado ruído, mas que se combatia ao fechar os olhos e deixar os sentidos absorver a magia que provinha do palco.
Os agradecimentos de James Blake a tão devota assistência eram transformados em forma de canção e os mais expressivos “Digital Lion” e, principalmente, “Voyeur”, escondiam a fragilidade, timidez e solidão da alma do artista britânico, que encontram verdadeiro sinónimo em composições como a muito aplaudida “Retrograde” e o tomo final que foi “The Wilhelm Scream”.

Ainda que uns furos abaixo da magnífica atuação da edição do Optimus Alive de 2011, James Blake deu um bom concerto, com casa cheia, e que pede um reprise numa sala mais intimista e perto de nós.

Com: Manuel Rodrigues

Fotografias: Marta Ribeiro e Rita Bernardo

In Palco Principal

sábado, 11 de julho de 2015

NOS Alive'15, dia 1

Noite de drones e alguns satélites




Esgotado há muito, o primeiro dia de NOS Alive'15 ficou definitivamente marcado desde que foi anunciado o nome dos Muse como cabeças de cartaz. Mas, além da banda de Matthew Bellamy, havia muito e mais para ver no Passeio Marítimo de Algés, ainda que o inesperado cancelamento de Jessie Ware tenha sido um verdadeiro balde de água fria para milhares de festivaleiros. Ainda assim, numa noite com bons concertos, tivemos o prazer de rever os mais crescidos Alt-j, de dançarmos a valer com Metronomy e Django Django, de sentirmos as boas vibrações de James Bay e Ben Harper, e de viajarmos no carrossel dos Muse.

James Bay | 19h10, Palco NOS

São poucos os que se podem orgulhar de conquistar um lugar no palco principal de um grande festival internacional (narcisismos à parte) logo ao primeiro álbum, mas James Bay conseguiu-o.

O sucesso de “Chaos and the Calm”, um disco que navega entre o indie e um rock que mescla ensinamentos pop e raízes alternativas, foi sinónimo de uma ascensão meteórica para este simpático britânico de 24 anos, que não esconde um certo fascínio pelo legado de Jeff Buckley, tanto em termos vocais como nas cordas das suas (várias) guitarras.

Entre trocas de guitarras, afinações e algumas palavras de agradecimento ao público, James Bay não se escondeu atrás dos raios de sol que inundavam o Passeio Marítimo de Algés e deu um bom concerto. De figura esguia e sempre acompanhado com o habitual chapéu, Bay manteve a audiência sempre debaixo de olho e a reação geral ao muito cool “Craving”, logo nos primeiros momentos do concerto, mostrou que são muitos os que conhecem “Chaos and the Calm”.

De tendências mais blusy e a fazer lembrar, pontualmente, Bruce Springsteen, “When we Were on Fire” levou a já considerável multidão a bater palmas, de braços bem levantados, postura que se estendeu a “If you Ever Want to Be in Love”, um tema em que as cordas e o teclado partilham um estado de graça apenas secundado pela voz.

Os agradecimentos de James Bay, num português bastante aceitável, mostravam uma certa admiração do cantor pela entrega do público e, em forma de celebração desse sentimento mútuo, o dolente e intimista “Move Together” como que selou um namoro que, um dia, noutros palcos e com menos luz do sol, pode dar em duradouro matrimónio. Uma chama que pode arder muito, principalmente quando ouvimos temas como “Let it Go”, um dos momentos mais bonitos do concerto e, certamente, um dos momentos em que os ecos do já referido e genial Buckley foram mais percetíveis.

Depois, “Scars”, uma das canções mais quentes do álbum de James Bay, mostrou como o britânico consegue tornar uns espartanos acordes numa grande canção, que ganha ainda mais corpo quando o resto da banda toma o palco de assalto.

A interação com o público atinge o auge antes do gingão “Best Fake Smile”, depois de uma afinação de guitarra mais demorada. Pouco depois, “Hold Back the River”, cantado em uníssono e de olhos nos olhos com o vizinho Tejo enquanto espectador atento, terminaria uma atuação segura, que leva a pensar que, ainda assim, James Bay pode oferecer ainda mais ao vivo.

Ben Harper | 20h40, Palco NOS

Com pouca dinâmica e ausência de canções capazes de incendiar o recinto do festival, o concerto de Ben Harper e dos seus Innocent Criminals adormeceu meio mundo e colocou a outra metade a bocejar, não obstante as canções orelhudas, repletas de talento, servidas de forma irrepreensível por Ben Harper, que demonstrou, em certas alturas, os seus dotes na slide guitar e os seus capangas de digressão – destaque para o carisma e constante ginga do seu baixista.

Ainda ficámos para ouvir “Steal My Kisses” e “Diamonds on the Inside”, mas, como o momento pedia mais energia do que aquela que estava a ser servida no palco principal, fomos até ao espaço Heineken para ver e ouvir Metronomy.

Metronomy | 21:25, Palco Heineken

Os concertos dos Metronomy em festivais portugueses já não são novidade nenhuma. Só os mais distraídos é que se podem queixar da falta de oportunidade de verem ao vivo esta magnífica banda, que lançou, há coisa de um ano, um novo álbum, intitulado “Love Letters”, em torno do qual girou grande parte do concerto (“The Upsetter”, “I’m Aquarius”, “Love Letters” e “Boy Racers” foram algumas das presenças no alinhamento).

Os seus sintetizadores já nos soam familiares, o seu rigor e vigor também. A presença em palco de Joseph Mount já não nos é estranha, bem como a energia magnetizante de Olugbenga Adeleka (não é parecido com o nosso Alex D’Alva Teixeira?) e o sorriso contagiante de Anna Prior. A familiaridade é tanta que parece que foi há meia dúzia de dias que os vimos interpretar temas como “The Look”, “The Bay” e “Resevoir” num festival da concorrência lá para os lados do Meco.

E, apesar de ontem se terem despedido de uma tenda Heineken completamente à pinha com um “até à próxima”, estamos certos que será, certamente, um até amanhã, pois não tardará muito até que o coletivo britânico volte a pisar solo nacional para voltar a colocar centenas de pessoas a dançar ao ritmo das suas músicas.

Alt-j | 22h25, Palco NOS

Quem teve a oportunidade de estar presente na edição de 2013 do NOS Alive, na altura ainda Optimus, lembra-se, de certeza, da agitação que provocou a atuação dos britânicos Alt-j, com um palco Heineken a abarrotar. Sentia-se na pele o impacto de “An Awsome Wave”, um disco carregado de sentimentos indie, embrulhados em consideráveis doses de um experimentalismo que convive com elementos rock e eletrónicos, que arrebatou o Mercury Prize em 2012.

Hoje, a banda formada em Leeds está maior, mais madura, e sinónimo desse crescimento foi a mudança de palco, com a responsabilidade acrescida de anteceder aos também ingleses Muse, monstros consagrados de um outro campeonato cuja ansiedade geral podia atrapalhar a cerimónia dos Alt-j.

Mas, felizmente, tal não aconteceu. Embora a música da banda de Gwil Sainsbury, Joe Newman, Gus Unger-Hamilton e Thom Green não seja “fácil”, e a grandiosidade do palco NOS pudesse colocar algumas dúvidas na sua expressividade, quem assistiu ao espetáculo de ontem deu por bem entregue o seu tempo. Misturando universos orgânicos com outros mais maquinais, e ousando, diversas vezes, desafiar o silêncio, os Alt-j começaram o concerto com o já habitual início de cerimónias que é “Hunger of the Pine” - uma atmosfera densa, interior, que foi muito bem secundada pelo mais tribal “Fitzpleasure”.

“Something Good”, uma das mais suaves e hipnóticas canções dos Alt-j, mostra o que pode ser a música da banda ao vivo, num registo sem rede e desprotegido da dinâmica do estúdio. Os instrumentos unem-se em torno de um só propósito e o silêncio, por vezes apenas conspurcado pelas notas do baixo, relevam o domínio musical do quarteto.

Ainda que se diga que é melhor não voltar ao lugar onde já se abraçou a felicidade, os Alt-j mandaram esse conselho às urtigas e, não só foram muito bem recebidos, como agradeceram, bastas vezes, ao público português e ao festival em causa que está, segundo os britânicos, cravado nos seus corações e memória. E a melhor forma de agradecimento é através da música, e a roqueira “Left Hand Free”, e a mais tropical “Dissolve Me” foram os dois atos seguintes e que antecederam a cerimonial e mais intimista “Matilda”, que teve honras de participação coletiva.

As luzes do palco davam um efeito contextual à atuação da banda e foi em tons escarlate que o público recebeu “Bloodflood” e “Bloddflood Pt. 2”, dupla harmonia de inspiração shoegaze, cuja sensualidade lírica nos leva até ao fundo de uma qualquer maré emotiva, algo que “Ripe & Ruin”, depois, perseguiu em ritmo à capela.

De regresso a momentos mais maquinais, “Tesselatte” quebra a letargia e leva o público para um gigante quarto escuro, cuja densidade está na fronteira entre o som e o silêncio devocional, elementos que fazem parte, por exemplo, de nomes como os Massive Attack e que “Every Other Freckle” explora de forma competente.

Com a área do recinto já com dezenas de milhares de pessoas, e quando circular nos espaços adjacentes ao palco começava a ser uma tarefa hercúlea, os Alt-j lançaram-se de cabeça ao introspetivo “Taro”, para depois oferecerem “Warm Foothills”, um dos momentos mais calmos de “This is All Yours”, o mais recente disco da banda, que esteve na origem de um tímido e algo envergonhado assobio de Joe Newman.

O final da contenda chegaria depois de “Nara”, “Leaving Nara” e “Breezeblocks”, o habitual derradeiro tomo dos espetáculos dos Alt-j, que fazem questão de terminar as hostilidades com ritmos mais rock e, porque não dizer, dançáveis, ao som de uma declaração como «please don´t go, i love you so».

Além de um bom concerto, os Alt-j mostraram que atingiram um patamar sólido, respeitável, estando apenas a um nível “abaixo” do mais alto lugar do pódio festivaleiro. O futuro (próximo) pode ditar, definitivamente, a grandeza destes rapazes de Leeds.

No recinto do festival, são muitos os que aproveitam para gastar algum tempo e dinheiro nas atividades paralelas à música. Os brindes continuam a ser uma oferta concorrida, (parece, no entanto, que este ano a euforia não é tão acentuada, ou é só impressão nossa?) e a febre das selfies continua a ser um mal incontornável neste tipo de ambiente (bendita seja a pessoa que se lembrou de proibir o uso de selfie sticks neste certame), mas, ainda assim, é no campo da gastronomia (e ainda bem) que o visitante mais investe.

Das célebres sandes de leitão, às pizzas, kebabs, hamburgueres (gourmet e não gourmet), waffles e, claro, as bebidas (este ano, há cidra com vários sabores, uma boa alternativa para quem não gosta de cerveja), as ofertas continuam a ser vastas e satisfazem o desejo do requinte (pedimos desculpa à Ferrero Rocher pelo plágio).

Por esta altura, Tiga leva a tenda do Optimus Clubbing ao êxtase com o seu live set, onde se pode ouvir o hit “You Gonna Want Me”. Porém, já se ultimam os pormenores no palco principal para as estrelas da noite. Vamos lá.

Muse | 00:10, Palco NOS

Uma verdadeira montanha russa musical. Talvez seja esta a melhor forma de descrever o concerto dos Muse, no palco NOS.

A banda de Bellamy não foi capaz de servir um concerto linear, homogéneo e coeso, e isso deve-se única e exclusivamente à fraca qualidade das músicas mais recentes, quer do álbum “The 2nd Law”, quer de “Drones” - um decréscimo de qualidade para com os episódios discográficos anteriores que, como seria de esperar, acabou por se refletir no exercício ao vivo.

Os Muse parecem ter caído num fosso criativo, numa espiral de falta de ideias. E tal condição começa a afastá-los, lentamente, do estatuto de banda épica, capaz de incendiar um estádio com as suas canções. Atualmente, preocupam-se mais com os néons das suas guitarras e com os tunings de pianos e baterias do que propriamente em construir músicas que encham o ouvido, ao invés de encherem o olho. Mas passemos aos exemplos concretos.

A primeira sequência de todas a denunciar uma queda substancial na qualidade musical e na própria aceitação por parte do público aconteceu logo no início do concerto. “Plug In Baby” roubou os primeiros coros uníssonos da noite – depois de uma partida morna ao som de “Psycho” (provavelmente, a melhor do último álbum, a repescar uma cena clássica de “Full Metal Jacket”, de Stanley Kubrick), “Supermassive” e “The Handler” –, deixando o recinto em euforia, para, logo de seguida, “Dead Inside” mergulhar o público numa profunda apatia. São poucos os que cantam, são ainda menos os que saltam. Há quem vire as costas ao palco para retomar a conversa deixada a meio aquando da subida do trio (ou do quarteto, visto trazerem um elemento a mais para tomar conta dos teclados e percussão), ignorando por completo a vocalização e o solo a la Brian May de Bellamy.

De seguida, “Hysteria”, do álbum “Absolution”, volta a reconquistar o público com o seu refrão inteligentemente endereçado às multidões, para depois “Drones”, do último álbum, e “Madness”, do penúltimo, protagonizarem nova quebra no espetáculo – apesar desta última ainda ter resgatado um coro ou outro aqui e ali, todo o espetáculo visual, com letras rechonchudas e coloridas nos ecrãs, e Bellamy a pedir ao público para acenar da esquerda para a direita (ou da direita para a esquerda, como preferirem), foi digno de um concerto da Violetta ou dos One Direction, e não Muse.

Não obstante o constante carrossel em que se transformaram os concertos de Matt e companhia, há que ressalvar as suas qualidades enquanto performers – não há uma nota que falhe na voz e guitarra de Bellamy, um tempo ao lado na bateria de Howard e uma harmonia desencontrada no baixo de Wolstenholme. Mas a grande arma dos Muse ao vivo nem é essa. É a experiência que têm nestas andanças, pois sabem exatamente como agir em palco, quando devem ou não adereçar palavras ao público (em português, claro, para combinar com a bandeira que têm sobre o estrado da bateria; bandeira essa que Bellamy coloca sobre os ombros, perto do final do concerto), quando devem ter uma atitude mais rebelde para acordar os mais adormecidos (no final de “Reapers”, o vocalista e guitarrista atira a sua guitarra contra o amplificador, provocando um gigantesco estrondo) e quando têm que transformar as suas atuações em verdadeiras festas de Ibiza, com jatos de fumo, confetis, serpentinas e bolas gigantescas. E fazem-no, curiosamente, em músicas menos interessantes, como foi o exemplo de “Reapers” e “Mercy”.

Ainda assim, apraz-nos sublinhar que o concerto acabou em grande. “Uprising” e “Knights Of Cydonia” fizeram a festa junto de um recinto esgotadíssimo, com dezenas de milhares a cantarem e a aplaudirem duas canções que ainda podem ser consideradas dos anos de ouro da banda britânica. Faltaram temas como “Bliss” e “New Born” à chamada, mas ficarão certamente para outras núpcias. Que a próxima passagem do coletivo por Portugal aconteça em momento de maior inspiração, de forma a que possam servir um espetáculo sólido, sem altos e baixos.

Django Django | 01h40, Palco Heineken 

Enquanto os Muse iniciavam o encore, alguns convivas optaram por percorrer outros caminhos. Ainda que os decibéis libertados pela banda de Matthew Bellamy se fizessem ouvir num raio de quilómetros, o relógio indicava que, tanto no NOS Clubbing como no palco Heineken, havia mais música para ouvir.

Ainda que o destino estivesse parcas centenas de metros mais adiante, o gosto pela música dos portugueses X-Wife fez-nos deliciar uns breves instantes, como que a fazer a “purga” auditiva entre os Muse e os senhores que se seguiam no Palco Heineken, nem mais nem menos do que os britânicos Django Django, um dos projetos musicais mais interessantes que surgiram nos últimos anos.

O interesse residia em saber como é, ao vivo, o recente “Born Under Saturn”, o fresquinho segundo álbum do coletivo que em 2013 apresentou o debutante e homónimo disco neste mesmo local. Tal como nesse concerto, ontem, os Django Django puseram toda a gente a saltar, naquela que talvez tenha sido a melhor atuação do dia/noite.

Visivelmente bem-dispostos e com vontade de aquecer as almas presentes, os Django Django não perderam tempo e lançaram-se de cabeça, com o psicadélico “Introduction” a revelar umas boas vibrações que se prolongaram durante cerca de uma hora, non-stop.

Vincent Neff liderava a nau hipnótica, experimentalista e psicadélica que são os Django Django com peças irresistíveis como “Storm” e “Shake and Tremble”. Coincidentemente (ou não), com o final da atuação dos Muse o espaço do Palco Heineken trasvestiu-se de simpaticamente preenchido para lotação esgotada em poucos minutos e, quando “First Light” já soava, a loucura era saudavelmente coletiva.

O céu, ou Saturno, pareciam (não) ser o limite e composições como a desafiante “Waveforms”, a egípcia “Skies Over Cairo” e, principalmente, a robótica “Default” tornaram um simples concerto em algo deveras especial, onde guitarra, teclas, bateria e sintetizadores soavam como partes de uma doce e oleada máquina.
O relógio galopava para as três da manhã, mas o corpo dos presentes manteve-se fiel ao clima festivo dos Django Django e “Life’s a Beach” e “WOR” terminaram a cerimónia da melhor forma possível, com uma alegre sensação de cansaço e de dever cumprido. Amanhã, hoje, há mais.

In Palco Principal

Com Manuel Rodrigues

Fotografias: Marta Ribeiro e Rita Bernardo