sexta-feira, 30 de outubro de 2015

“Os Médicos da Morte”
Philippe Aziz


Tunisino nascido em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial, Philippe Aziz – cujo verdadeiro nome é Aziz Mahjoub – dedicou parte da vida a estudar a História Universal, com especial enfoque nos impérios Inca, Asteca e do Antigo Egito, bem como à História do Islão ou à Revolução Francesa.

Nado e criado no seio de uma família muçulmana Aziz formou-se em Islamologia, mas foi o seu percurso enquanto jornalista e escritor que o colocou na órbita dos mais atentos no que toca à análise da História Contemporânea e, principalmente, ao período entre 1939 e 1945.

Fruto de muita dedicação a essa negra fase do calendário da Humanidade, Aziz investigou com particular afinco a macabra filosofia utilizada pelos médicos nazis nos campos de concentração. À boleia do lunático desvario de Adolf Hitler na tentativa de demonstrar e elevar a superioridade da raça ariana, foram realizadas inúmeras, desumanas e macabras experiências cujas práticas passavam, por exemplo, pela incineração, o castramento e a sufocação de homens, mulheres e crianças que serviram de cobaias para o Terceiro Reich.

Um dos relatos maiores dessa monstruosidade (des)humana, “Os Médicos da Morte” (Saída de Emergência, 2015) assume-se como um poderoso documento que retrata, de forma exemplar, clara e assustadoramente real, os horrores da medicina nazi.

Tendo por base testemunhos de sobreviventes, confissões de médicos SS e milhares de documentos que os nazis não conseguiram destruir antes da derrota final, esta obra fundamental de Aziz permite-nos avaliar o sofrimento de milhares de crianças, deficientes, homossexuais, ciganos, judeus e até alemães dissidentes que não tiveram outra escolha senão o papel de mártires sob a égide de um repugnante delírio científico.

Dividido em quatro partes e com mais de 800 páginas, “Os Médicos da Morte” mergulha o leitor numa viagem negra que revela o pior do ser humano, que encontra eco em nomes como Josef Mengele, Horst Schumann ou Eduard Wirths, autênticos anjos da morte que ordenaram o envio de milhares de presos dos campos de Auschwitz para, por exemplo, câmaras de baixa pressão onde as vítimas eram testadas com drogas e venenos, esterilizadas, congeladas até à morte.

A par disso, foram realizadas “experiências em gémeos para estudar a genética e semelhança biológica, organizados banhos prolongados de água gelada a fim de se descobrir o tratamento para a hipotermia ou testes com malária, gás mostarda, tifo, venenos, variados vírus e germes para se chegar a antídotos ou curas ou estudar o desenvolvimento das doenças como potenciais armas biológicas.”

A maldade não tem limites e “esterilizaram-se milhares de pessoas através de radiação para se descobrir o método mais eficaz de inutilizar a capacidade reprodutiva daqueles que eram considerados defectivos em relação ao ideal da raça ariana; procurou-se saber se era possível tornar a água do mar potável, matando centenas de pessoas de desidratação; fizeram-se transfusões e transplantações sem anestesia. Muitos morreram de dores agonizantes ou insanidade.” Em nome da justificação biológica e científica da superioridade da raça ariana.

Muito do que foram os seis anos de maquiavelismos nazis que se perpetuaram para a eternidade estão registados em “Os Médicos da Morte”, um impressionante trabalho originalmente editado na década de 1970 que é sinónimo de uma competente análise histórica e que não deixará ninguém indiferente. Para ler sob uma perspetiva enciclopédica, este é um dos títulos mais impressionantes sobre a máquina científica nazi e aquilo que se pode fazer em nome de uma ideologia oca e cega.

In deusmelivro

“PEREGRINO”
DE TERRY HAYES

A violência flutua



Existem livros especiais que nos absorvem, consomem, exasperam. A ansiedade que a narrativa provoca, tal a sua complexidade, transforma o simples ato de folhear numa expetactiva crescente. E isso acontece com “Peregrino” (Topseller, 2015), vencedor do National Book Award no Reino Unido, obra de estreia do inglês Terry Hayes, antigo jornalista que se tem distinguido enquanto argumentista e produtor nos campos da sétima arte através de alguns filmes da saga Mad Max, bem como em telefilmes e miniséries cujo reconhecimento da crítica lhe valeu mais de duas dezenas de prémios.

Mas como falar da trama idealizada por Hayes sem revelar demasiado? Bom, imaginemos um thriller condimentado com generosas doses de espionagem, cujas primeiras páginas remetem para uma cena de crime grotesca onde uma jovem mulher é brutalmente assassinada num hotel barato de Manhattan. Mas mais peças se juntam a este intrincado quebra-cabeças: um filho assiste à decapitação do pai na Arábia Saudita; os olhos de um homem são roubados do seu corpo ainda vivo; restos humanos ardem em fogo lento numa qualquer montanha de uma cordilheira no Afeganistão.

Ao todo, são 656 páginas de uma alucinante e intensa espiral de acontecimentos que levam o leitor até a um universo que entrelaça momentos dignos de um filme de ação que James Bond não desdenharia participar, com episódios elevados ao extremo do pormenor e que tem como base para o seu credível entendimento um homem que se perde num labirinto de identidades e aventuras e é conhecido como Peregrino.

Como que uma bússola de orientação múltipla, “Peregrino” alimenta-se de uma série de desventuras dentro da própria estória-mãe e vai desaguar numa missão de vida com um objetivo definido: impedir que Sarraceno, um bioterrorista islâmico, consiga transformar o ocidente no início de um Armagedão global.

Numa corrida contra o tempo, e com intermináveis reviravoltas e viagens pelo globo, Peregrino e Sarraceno jogam uma espécie de partida do “gato” e do “rato”. E ainda que em lados diferentes da barricada, existem alguns pontos de contacto entre herói e vilão: ambos são determinados, implacáveis, astutos e têm no secretismo de quem os apoia uma das maiores armas. Contornar becos sem saída, falsas pistas, sacrifícios e traições, são situações vividas capítulo a capítulo, página a página, e apenas são superadas por elevadas doses de coragem.

Estamos perante uma verdadeira peregrinação, uma coleção de viagens e demandas. O Peregrino abandona, definitivamente, a sua identidade, simbolizando uma espécie de último moicano em prol da paz internacional; Sarraceno desespera por vingança pessoal e encontra no terrorismo internacional a arma que permite chegar a tal fim; o autor veste a pele de um “narrador” que tem em sua posse um conhecimento decisivo e que se mescla entre a subjetividade, o livre-arbítrio e a racionalidade de quem tem um fim definido.

Terry Hayes desenhou um oceano de possibilidade cujos vislumbres de retrospetivas várias dão ao leitor a sensação que a sua leitura não é um ato solitário mais sim uma partilha de experiências in vivo com personagens muito bem construídos, que valem por si mesmas, bem como pelo contexto geral de toda a narrativa.

As cenas dos crimes, a ação da policia, os rituais e procedimentos da justiça e dos “maus da fita”, deixam-nos no olho de um tremendo, alucinante e emotivo furacão de acontecimentos que apesar de contar com alguns clichés não dá um segundo de descanso ao leitor que devora com avidez um livro extraordinário.

Cada momento de “Peregrino” é sinónimo de um facto essencial, um pormenor que faz toda a diferença, uma pista que poderá definir todo o processo. Mas é também mais que isso. É “invadir” vidas alheias, saber mais sobre os seus hábitos, as suas famílias e amigos, as suas virtudes e defeitos. Particularmente, ao longo desta caminhada, o Peregrino aprende a viver com o seu próprio passado e essa pesada herança é tão fascinante, dolorosa e angustiante como a trama em si.

A história move-se como uma espécie de volta ao mundo e à medida que cada minuto, segundo, passa, a contagem decrescente galopa essa stressante realidade, colocando Peregrino e Sarraceno em posições cada vez mais determinantes para salvar ou destruir o mundo.

“Peregrino”, cujo argumento espera por uma adaptação cinematográfica, é, definitivamente, um dos livros do ano, que apenas pecará por um excessivo número de páginas. É um género que emotiva, desafia, uma viagem no mundo e em nós próprios. Os personagens ganham um pouco de nós e nós deles, dá-se uma espécie de metamorfose entre leitor e personagens. É certo que em alguns momentos, o livro pesa, os braços doem, os olhos ardem, mas a leitura é como a vida, não suporta intervalos, pausas, pois as paixões, sejam de respirar ou ler, são humanamente indispensáveis.

Caminho sinuoso e, por vezes, desesperante, que percorre o atlas geográfico e mental, “Peregrino” é um livro que não deixa ninguém indiferente, que consume, assusta, diverte, vicia, trazendo à memória episódios marcantes da história recente como a Segunda Gurrra Mundial, o conflito do Afeganistão, o 11 de setembro ou a Guerra Fria. Se dúvidas existissem, Terry Hayes consegue ao primeiro livro uma conquista reservada a poucos pois acerta em cheio!

In Rua de Baixo

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

“Ora, como eu dizia…”
de John Cleese

 
Foram muitas as referências artísticas que marcaram definitivamente as últimas décadas do século XX, influenciando as gerações seguintes, como uma espécie de jurisprudência cultural. Tal aconteceu em várias esferas e universos, da pintura ao cinema, do teatro à música, da arquitectura à comédia. Nesta última área, em particular, destacaram-se alguns nomes britânicos como, por exemplo, Benny Hill, Mr. Beans (Rowan Atkinson) ou os Monty Python.

Em comum estava uma abordagem nonsense da própria comédia, uma visão desafiante da lógica do pensamento e do próprio conceito de fazer rir – ou sorrir. Entre as “estrelas emergentes” desse movimento destaca-se um rapaz alto e tímido de Westen-super-Mare, Somerset, que, contrariando toda a normalidade, se tornaria numa estrela planetária: uma lenda.
 
Falamos de John Clesse, conhecido na escola primária como “Chesse” (queijo), mente brilhante e divertida que recentemente nos ofereceu “Ora, como eu dizia” (Planeta, 2015), uma autobiografia generosa, algo inesperada e tentadoramente diferente.

Ao contrário de outros livros do género, Cleese chutou para longe escândalos ou podres de bastidores, concentrando-se na vida em si mesma que, quase por “acaso”, lhe reservou um enorme sucesso. Mesmo quando há algumas referências a terceiros, o contexto é de tal forma cómico que se eliminam quaisquer resquícios de animosidade. Esqueça contos escabrosos e entre numa espécie de viagem ao cérebro de um genial comediante.

Neste percurso está bem patente a inteligência de Cleese, no fundo uma pessoa introspectiva, muito apegado à sua mãe, mas que, por obra divina ou quejandos, nasceu com uma capacidade anormal para o absurdo e farsa. Ao contrário de muitos outros casos, a comédia de Cleese é um fortalecimento do Q.I. alheio, uma de bomba de gás hilariante que atingiu o seu expoente nas séries “Monty Python’s Flying Circus” e “Fawlty Towers”, na sétima arte via Monty Phyton – “Em busca do cálice sagrado” ou “A Vida de Brian” – ou mais a solo em “Um Peixe Chamado Wanda”.

“Ora, como eu dizia” é também um livro sobre a própria escrita do acto de fazer rir, pois tanto Cleese como os seus companheiros de Cambridge – e mais tarde de Monty Python (Graham Chapman, Eric Idle, Michael Palin ou Terry Jones) – eram, antes de performers, produtores de comédia. Neste livro, o foco não está na descrição dos sketchs, nas cenas dos filmes, mas sim, por exemplo, na humanidade de Cleese de se sentir nervoso antes de cada cena, no medo de as coisas não serem bem recebidas ou sequer entendidas pelo público.

Ao folhear esta autobiografia, saltam à vista as descrições reais e quotidianas que invariavelmente resvalam para o riso, pois é a sua tendência natural. Cleese, que confessa ter vivido uma excelente experiência académica de ambos os lados da barricada, redige uma verdadeira tese sobre o acto da natureza humana. Mas vai mais longe, levando o leitor ao cerne daquilo que o inspira como comediante e pessoa, à forma como conseguiu moldar um espírito criativo e individualizado que fez nascer uma nova forma de fazer humor, arte que se disseminou por diversas áreas da dita cultura moderna e que ousou aplicar um determinado estudo psicológico do entendimento humano em situações banais – e até mesmo exageradas.

Há ainda espaço para deambulações através de lembranças, algumas delas com direito a fotografia: a sua primeira aparição pública na Escola Primária St. Peter, aos oito anos; as tournées pela Nova Zelândia e pelos Estados Unidos; referências ao acto de contrair matrimónio (ao primeiro casamento); o primeiro encontro com Graham Chapman; os problemas com a BBC; a criação dos Monty Python; a experiência de trabalhar com Peter Sellers, David Frost ou Marty Feldman; ou a passagem pelo sistema de ensino enquanto professor.

Exemplar assertivo na arte de contar não uma história mas sim uma vida simples – e recomendado a todos os fãs de Cleese e dos projectos criativos a si associados -, “Ora, como eu dizia” é um interessante e inteligente “monólogo” de um homem tímido, fã de críquete e esqui aquático – que se revelou um verdadeiro génio comediante (mas que nunca se assumiu como tal) -, mas também o reflexo de uma humorística Britânia e dos seus maiores actores, elementos máximos de algo completamente diferente.

In deusmelivro

“À Morte Ninguém Escapa”
de M. J. Arlidge

A vida depois de Marianne

 
São muitos os livros que surgem todos os anos nos escaparates, mas alguns destacam-se dos demais. É nessa categoria que se encaixava “Um dó, li tá”, um policial lançado em 2014 por terras lusas, da autoria do britânico M. J. Arlidge que se estreava no formato livro depois de muita experiência na área da televisão, nomeadamente na conceção de algumas séries do género supra citado.

No epicentro da trama estava Helen Grace, traumatizada inspetora-detetive do departamento policial de Southampton, personagem que volta à carga em “À Morte Ninguém Escapa” (Topseller, 2015), interessante e pertinente sequela do intrigante mundo criado por Arlidge.

Ainda com os ecos de “Um, dó, li tá” na mente, Helen Grace vê-se de novo envolvida numa onda de crimes que, tudo leva a crer, têm como autor um tenebroso serial-killer cujas vítimas são homens “de família” que recorriam a prostitutas cujo “cardápio” era divulgado via Internet.

Seja dos escritórios da polícia local ou em cima da sua Kawasaki, Grace sabe que não tem uma tarefa fácil e o tempo corre contra si quando há um obstinado e cruel assassino à solta. Mas Helen tem mais inimigos e fantasmas que lhe atormentam a vida: o regresso de Charlie ao ativo elevou a tensão no seio da investigação; a nova líder do departamento, Ceri Harwood, boicota o trabalho da equipa por mero egoísmo e sentimento burocrata; Emilia Garanita, a jornalista do Southampton Evening News continua a atormentar, perigosamente, o seu passado e agora com um aliado inesperado…

Enquanto isso, existe mais um terrível caso para resolver e tudo começou quando foi descoberto um corpo abandonado num sítio recôndito. Do cadáver fora arrancado o coração que, mais tarde, foi entregue à família em forma de arrepiante encomenda. O crime fora sangrento, terrível, impiedoso, cirúrgico, e não vai ser o único.

É nesta atmosfera cortante que evolui “À Morte Ninguém Escapa”, um livro dinâmico e absorvente que (e)leva o leitor para dentro de um caleidoscópio emotivo que trás de volta um universo tão caro a Arlidge e que qualquer fervoroso leitor de um (bom) thriller policial não vai querer perder. E para isso muito contribuí a capacidade do autor britânico em criar, e alimentar, bons e credíveis personagens cujo crescimento vem desde “Um dó, li tá”, e arriscamos mesmo dizer que este segundo volume conta como um ambiente mais envolvente e “sedutoramente” violento.

A isso juntam-se outros ingredientes de caráter social e humano que tornam a narrativa mais pertinente e crítica. Em causa estão as novas tecnologias e o consequente perigoso anonimato que a Internet (nomeadamente nos chamados fóruns) possibilita; a religião e a cínica usurpação dos seus mandamentos em nome de interesses pouco “católicos”; as frustrações relacionais dos casais modernos que colocam a família em segundo plano em detrimento da realização profissional; as relações de conveniência entre a polícia e a imprensa.

Estes ingredientes, alicerçados numa aventura rápida, cinematográfica, sem tréguas, à base de capítulos que não ultrapassam a meia dúzia de páginas, fazem com que “À Morte Ninguém Escapa” seja sinónimo de uma leitura ávida, uma estória entusiasmante (e sangrenta) e algumas horas muito bem passadas de livro na mão, com o virar das páginas a assemelhar-se a uma espécie de engatilhar de revólver.

In Rua de Baixo