terça-feira, 21 de junho de 2016

“Francamente, Frank”
de Richard Ford

Depois do Furacão


Passaram trinta anos desde que o norte-americano Richard Ford, recentemente distinguido com o prestigiante prémio literário Princesa das Astúrias, escreveu “O Jornalista Desportivo”, o primeiro tomo da conhecida série que tem como protagonista o peculiar Frank Bascombe. Nas últimas páginas desse livro, Ford fazia um, muito particular diga-se, elogio à vida que, segundo o escritor, se situava no limbo entre «uma doença ou uma síndrome».

Essa busca pelo sentido, sofrido e cínico, da existência, Ford continuou a sua saga através de “O Dia da Independência”, “A Gordura da Terra” e, mais recentemente este “Francamente, Frank (Porto Editora, 2016).

De escritor sem grande sucesso, passando por jornalista desportivo ou agente imobiliário, Frank Bascombe tem agora setenta anos (idade bem próximo do seu mentor que conta agora com 72 primaveras), está reformado e é com um enorme prazer que reencontramos um dos personagens mais emblemáticos, e bem construídos, das últimas décadas da literatura norte-americana (e não só) cujo perfil mantém elevadas doses de ceticismo e cinismo ainda que se assuma mais reflexivo e, espante-se, em modo carpe diem.

Em “Francamente, Frank”, damos de cara com este septuagenário a viver em Haddam, um subúrbio de New Jersey, no rescaldo do furacão Sandy. A ironia e o politicamente incorreto continuam a ser algumas das suas mais distintas marcas e, como se de uma viagem sem retorno se tratasse, leva o leitor a mergulhar no quotidiano norte-americano, muitas vezes pejado de sucessos, fracassos ou sonhos perdidos, carregando estigmas sociais e económicos como o racismo, a crise financeira e a inveja pura.

Dividido em quatro capítulos, ou novelas, “Francamente, Frank” traça alguns pertinentes retratos de uma América ferida. Num primeiro momento (“Estou Aqui”), Frank é forçado a recuar ao passado enquanto agente imobiliário uma vez que Arne, um antigo conhecido a quem vendeu a sua antiga casa, lhe pede conselhos para tentar vender da melhor maneira, entenda-se lucrativa, as ruínas que hoje são sinónimo desse imóvel agora devastado pelo furacão.

O segundo “episódio” (“Tudo Podia ser Pior”) explora os resquícios de racismo da sociedade norte-americana e leva-nos a conhecer Charlotte Pines, uma «bem vestida negra de meia-idade», que esperava no alpendre do lar de Frank que, outrora, havia pertencido à sua família.

À medida que Pines revela as suas intenções, percebemos que algo de terrível aconteceu entre aquelas paredes e, de forma algo inesperada, procura algum conforto na pessoa de Frank depois de revelar a tragédia que a sua família foi alvo. Assumindo, mais uma vez, o papel de confessor e “amigo” do desconhecido, o ex-agente imobiliário aceita e entende o conflito interior de Charlotte, alguém que consegue resgatar sentimentos de honestidade e nostalgia do âmago de Frank.

Marcado também pelas suas relações pessoais e atribulada relação com os filhos, uns ainda vivos e outro há muito falecido, Frank mostra a sua faceta (forçada mas firme) solidária com Ann, a sua ex-mulher da qual se divorciou há trinta anos e que agora reside num lar, descrito por Ford como «um plano de laboratório vivo para americanos grisalhos», perto de Haddam.

Entre laivos agridoces, Richard Ford revela neste terceiro momento (“A nova norma”) um Bascombe observador, e algo condescendente, face a Ann, uma mulher sempre pronta a magoar o ex-marido, amarga e que a Doença de Parkinson parece fazer adensar o fel que carrega e que nem a presença “ortopédica” de Frank consegue amenizar, mesmo que a época natalícia seja o cenário.

Na derradeira parte deste livro (“Mortes dos Outros”), Frank é assaltado por um estranho e anónimo telefonema que o leva a assistir aos últimos dias de Eddie, alguém que conheceu em tempos e ganhou a alcunha de Olive, e que está às portas da morte devido a um cancro. No seio desta inesperada chamada está um segredo que pode provocar algum abalo na vida de Frank mas que, acima de tudo, expõe a relação de um homem face à morte, a um fim anunciado.

Seja em qualquer das referidas quatro perspetivas, Richard Ford consegue, de forma natural e desarmante, ligar-nos à “pessoa” de Frank e coloca em jogo memórias trágicas, partilhas de fantasmas inesperados, discursos paliativos, contextualizações ora cínicas, melancólicas ou irritantes e irritadas ou até lições de vida sobre a parentalidade, ainda que fugidia. O resultado é um excelente livro, ainda que curto, e que leva a pensar se alguma vez mais teremos a sorte de voltar a ter como companheiro de cabeceira o “velho” Bascombe, fugidio ser que nos assombra a alma a cada década.

In Rua de Baixo

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