quarta-feira, 18 de setembro de 2013

“O CULTIVO DE FLORES DE PLÁSTICO”
de AFONSO CRUZ

A vida é uma porta aberta




Depois de lançar “Livro do Ano” e o terceiro tomo da “Enciclopédia da Estória Universal”, dois dos mais brilhantes livros que a literatura nacional recebeu, e acolheu, nos últimos tempos, o multifacetado artista Afonso Cruz regressa com “O Cultivo de Flores de Plástico” (Alfaguara, 2013), uma peça de teatro em forma de livro que reflete o quotidiano de um grupo de sem-abrigo. Ao longo dos nove atos que constituem a mais recente obra do autor de “Os Livros que Devoraram o meu Pai”, Cruz apresenta quatro personagens: Jorge, Lili, o couraçado Korzhev e a senhora do fato, quatro sem-abrigo que espelham o esquecimento que a sociedade de consumo exibe para com quem perdeu o rumo, o emprego, a família, o teto, a própria vida.

Afonso Cruz retrata a miséria e a descrença de quatro almas através da sua escrita hábil, aqui transformada em diálogos que são, eles próprios, a força maior dos personagens. Através de pequenas estórias e episódios avulso, alguns deles envoltos de uma ironia sagaz, somos convidados a conhecer melhor a vida – ou o que sobra dela – de pessoas que atingiram um limite, uma fronteira que depois de alcançada dificilmente tem ponto de retorno. O plástico que o título sugere e remete está intrinsecamente ligado a uma sociedade que deixou de se importar com os outros, com quem se sente fora, de quem abandonou ou foi abandonado pela esperança. Esse plástico é a falsidade, o engano, a traição, a desconfiança.

Do desespero nasce a miséria, a loucura, a indiferença, a invisibilidade enquanto pessoa, enquanto ser humano. Jorge deixou de acreditar no próximo, Lili incompatibilizou-se com a vida, Korzhev sentiu a exclusão na pele e a senhora do fato viveu o cataclismo do desemprego. Causas diferentes, o mesmo destino: a rua e a solidão.

Ao ler “O Cultivo de Flores de Plástico” sentimos uma lição de vida. A via-sacra da pobreza permite fazer uma separação das águas e quando se tem pouco ou nada inicia-se um novo processo de descoberta. A amizade passa a ser, definitivamente, um bem precioso, a solidariedade é a maior das armas, o céu aberto o melhor dos tetos, um pedaço de cartão puro conforto, uma sopa a poção da vida eterna.

E é a dignidade desta gente que vive sem esperança que nos faz lembrar que a efemeridade da felicidade é algo que foge entre os dedos, que dura um mero segundo. A vida muda de um momento para o outro. O lógico torna-se absurdo. Afinal, o que queremos nós da vida? Ao percorrer as páginas deste pequeno (grande) livro sente-se o calafrio da incerteza de um amanhã que deixou de ser um futuro risonho, antes uma porta aberta para algo que se espera melhor que o passado.

E, como a solidariedade é o mote deste livro, os direitos de autor resultantes da venda da obra revertem a favor da associação CASA – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo.

In Rua de Baixo

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