domingo, 5 de maio de 2013

DEOLINDA
COLISEU DOS RECREIOS (03.05.2013)

Movimento perpétuo contra a austeridade sisuda


Cerca de dois meses depois do lançamento do excelente “Mundo Pequenino”, terceira aventura sonora da Deolinda, a banda de Ana Bacalhau fez o concerto de apresentação deste trabalho na noite de 3 de maio sendo o Coliseu dos Recreios o palco de toda a celebração.

A expectativa era muita e poucos minutos antes do início do espectáculo ainda alguns resistentes tentavam as poucas dezenas de ingressos que restavam na bilheteira.

Sentia-se que o Coliseu ia encher e a muita gente que entrava na sala dividia a conversa entre trivialidades e as constantes medidas de austeridade pois vivia-se mais uma ressaca de novas medidas governamentais. Ainda assim, o espírito familiar que ambientava a sala lisboeta, com uma confluência de gerações que juntava netos, pais e avós, era a fórmula ideal para esquecer tristezas. E, como sabemos, nada de melhor existe para afastar maus augúrios que a alma desta Deolinda deslumbrante e alegre.

Já dentro da sala, as cadeiras são preenchidas a uma velocidade de cruzeiro e contam-se os minutos para o início do concerto. Há quem se abane com um leque, quem tire fotos de grupo, quem acene para o outro lado da sala, quem troque olhares profundos para um amor separado por algumas cadeiras.

Alguns minutos depois da hora marcada surgem as primeiras palmas a reclamar a presença dos artistas. Há impaciência, sim, mas o ambiente é o melhor possível. Os mais pequenos, pouco habituados a estas coisas das músicas, perguntam a razão das palmas. A resposta dos mais velhos sobre o eventual atraso leva a mais uma pergunta: “A que horas começa?”.

Mais aplausos, desta vez mais fortes, e alguns assobios. As luzes teimam em resistir mas, pouco depois de um terceiro e mais convincente apelo, a escuridão surge e as palmas acolhem a entrada da Deolinda. Primeiro a orquestra e, instantes depois, a voz. De preto trajada, Ana Bacalhau arranca uma das maiores ovações da noite e, sem demora, aproveita os primeiros acordes de Pedro da Silva Martins e ataca «Algo de Novo».

Perto do delírio, o público aplaude a dança ensaiada de uma cada vez mais bonita Ana Bacalhau e sente-se que a Deolinda faz jus às suas palavras e, assumidamente, “é ela que manda aqui”. Terminada a primeira música, entram mais três músicos em palco. A evolução musical proporcionada por “Mundo Pequenino” alargou a narrativa musical da banda e ao longo da noite o palco vai recebendo surpresas.

Já com trompete, tuba e trombone a postos, «Concordância» ecoa no Coliseu. Para além do crescimento musical, a arte feita pela Deolinda continua assente em grande parte pela poesia saída da pena do guitarrista Pedro da Silva Martins, um dos maiores génios da arte de escrever canções em Portugal.

A festa continuava em palco e «Gente Torta», continuava a explorar o terceiro álbum da banda. O público, completamente rendido diga-se, fixava os olhos na expressividade de Ana Bacalhau que enche o palco de alegria e competência. A bateria abafada trocava galhardetes com o contrabaixo enquanto as cordas olham-se de soslaio. No final da canção ouvem-se os primeiros “bravos” da noite.

Terminada esta primeira incursão por “Mundo Pequenino”, «Não Tenho Mais Razões» arranca um enorme aplauso. Revivem-se momentos de “Dois Selos e um Carimbo”, segundo disco da banda, e na bateria está o “quinto Deolindo”, ou seja, Sérgio Nascimento, que fornece uma batida consistente que abre o caminho para as guitarras se soltarem.

O retorno a “Mundo Pequenino” faz-se com «Medo de Mim» e entramos numa fase mais intimista do espectáculo. À festa entretanto juntou-se mais um artista e o piano conta com a graciosidade de Joana Sá. As teclas soam de forma brilhante e já em «Pois Foi», uma espécie de vingança feminina nas palavras de Ana Bacalhau, o xilofone de António Sérginho, preenche os silêncios e aconchega a alma. «Passou por Mim e Sorriu», de “Dois Selos e um Carimbo”, enche as retinas de uma luz rosa que a voz de mariposa em formato canção de Ana Bacalhau leva a todos para um sonho ondulante e é sem favor que a audiência aplaude outra maravilhosa actuação desta Deolinda de olhos bonitos.

Conhecedora da alma lusitana, dos seus defeitos e virtudes, a Deolinda consegue retratar alguns episódios da portugalidade de forma sábia e divertida. «Há-de Passar», por exemplo, assume-se como um hino ao conformismo que conta com as cordas vocais dos elementos masculinos da banda para abrilhantar o momento. Aproveitando o balanço «Mal por Mal», recebido com muito entusiasmo pelos presentes, faz recuar o tempo até “Canção ao Lado”, disco de estreia do grupo. A bateria pulsa ainda mais os aplausos que servem de ponte para «Um contra o Outro», outro dos temas mais conhecidos de “Dois Selos e Um Carimbo”.

Ao sentir-se o entusiasmo do público e a competência, afinco e alegria com que a Deolinda toca, sabe-se que a banda cresceu, extravasou um mundo de pequenas dimensões e agora assenta num universo que tende a expandir-se. A composição flui de forma espontânea e a edição física de” Mundo Pequenino” deixou de fora alguns temas que, no entanto, fazem parte da versão virtual do terceiro álbum da banda. E é com «Fadout» e «Fiscal do Fado» que a noite prossegue, ainda que pelo meio estes dois momentos sejam “interrompidos” pela fantástica «Fado Toninho», outro dos hinos maiores da banda.

O ambiente estava ao rubro e depois dos anteriores momentos dedicados à canção lisboeta, ainda que envolta de uma roupagem particular, a fanfarra regressa ao Coliseu e «Fon Fon Fon» proporciona momentos divertidos entre a menina que (en)canta e uma tuba que quebra corações. Para manter o moral da tripulação elevado, a companhia Deolinda presenteia a plateia com «A Problemática Colocação de Um Mastro», mais um bem-disposto retrato nacional que traz como oferta momentos flamencos à moda lusitana.

Depois regressamos a momentos que reclamam maior sossego e a maravilhosa. «Semáforo da João XXI» leva Ana Bacalhau a sentar-se e deixar a sua voz ser levada na companhia do piano, do contrabaixo e das cordas tímidas. Ainda por territórios de “Mundo Pequenino”, «Não Ouviste Nada» traz outro convidado ao palco. Dono de uma voz que Ana Bacalhau define perto da musicalidade de um Stradivarius, António Zambujo troca carícias vocais com a vocalista da Deolinda e somos levados a um dos mais intensos momentos da noite que vagueiam entre o sussurro e o silêncio.

O espírito baladeiro continua com «Balanço», um poema cantado acompanhado por uma viola, o contrabaixo e alguns truques de pianista. O público respeita e bebe o momento com um silêncio total. A agitação chega logo a seguir com «Seja Agora» e, de rajada, «Movimento Perpétuo Associativo» assume-se como uma das mais gloriosas apresentações da noite.

Antes, Ana Bacalhau agradece a quem ajudou na concepção do álbum e todos têm honras de referência. A festa prosseguiu com «Musiquinha» e o frenesim era comum a todos os presentes no Coliseu e ninguém poupou ancas e almas quando de pé se dançava mais uma valsa de “Mundo Pequenino”.

Aplausos, assobios, pés a bater. Tudo servia para agradecer à Deolinda a maravilhosa noite proporcionada mas a estória não terminava aqui. Visivelmente emocionados, os membros voltaram ao palco, exercício que voltaria a repetir por mais duas vezes.

Se numa primeira aparição a acalmia de «Clandestino» – que deu direito a um abraço a Ana Bacalhau por parte de uma criança que irrompeu pelo palco – foi arrebatada pelo espírito festivo de «Doidos», depois «Quem tenha Pressa» e por fim uma nova versão de «Musiquinha», que levou Ana Bacalhau a desfazer-se dos saltos, fora sinónimo de um final de festa que dificilmente sairá da memória de quem teve a sorte de assistir à apresentação de “Mundo Pequenino”.

Esta Deolinda merece flores, abraços, aplausos. Esta Deolinda merece palcos maiores, mais pequenos, dentro e fora de portas. Esta Deolinda soube crescer e continua a encantar quem a ouve e segue. Esta Deolinda está mais elegante e bonita. Esta Deolinda merece paixão. Esta Deolinda é de todos nós. Pois então que viva a nossa Deolinda!

In Rua de Baixo

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