terça-feira, 21 de outubro de 2014

“Duas Vidas”
de Georg Maas

A verdade da mentira



Em novembro de 1989, Berlim tornou-se, por alguns dias, no epicentro do mundo. Quase três décadas depois da sua construção, o Muro de Berlim, para muitos apelidado de Parede da Vergonha, era derrubado. Berlim e a Alemanha (e por que não dizer o mundo) regressavam ao ponto de partida, sem divisões. Por terra caiam as repúblicas federais e democráticas, a Guerra Fria terminava.

O muro que dividia a Europa entre ocidente e a influência de leste foi destruído em clima de euforia. A liberdade chegava, finalmente, mas, ainda assim, nem todas as questões associadas à Cortina de Ferro ficaram resolvidas. A política, como sempre, é dona de longos tentáculos e os seus fins justificam alguns meios.

É na ressaca do eco dos acontecimentos registados a 9 de novembro de 1989 que “Duas Vidas”, a segunda longa-metragem do alemão Georg Mass, toma palco tendo como fonte inspiradora um romance baseado em fatos verídicos da autoria de Hannalore Hippe.

A ação leva-nos a terras norueguesas no raiar da década de 1990 e Katrine Evensen Myrdal (Juliane Katrine) é uma mulher feliz e o centro de uma família estável. Trabalha numa empresa de design gráfico e é casada com Bjarte Myrdal (Sven Nordin), um capitão naval. O casal tem como maior preocupação a filha Anne (Julia Bache-Wiig), estudante universitária e mãe solteira. O outro elemento da família é Ase Evensen (Liv Ullmann, uma das divas de Ingmar Bergman), mãe de Katrine e uma bisavó muito presente.

Tudo está tranquilo até à chegada de Sven Solbach (Ken Duken), um idealista advogado com uma nobre causa e que quer processar o Estado norueguês. Com a reunificação alemã em progresso, são possíveis alguns ajustes de contas jurídicas pela (nova) Europa.

Ainda que a família não tenha muito presente o fato, Katrine é fruto de uma relação proibida, é um bebé “Lebensborn”. Também apelidadas de “crianças da vergonha”, muitos foram os bebés cuja génese foi a relação entre a uma mãe (norueguesa) e um oficial nazi durante a ocupação na Segunda Grande Guerra.
Ase engravidou de um soldado alemão e Katrine nasceu em um período conturbado. A vitória dos Aliados teve as suas consequências e muitos foram mortos ou acusados e presos por serem colaboracionistas das forças de Hitler.

Antes, os bebés foram encaminhados para um orfanato especial na Saxónia que funcionava como uma espécie de “laboratório da raça ariana”. O Terceiro Reich conseguiu seduzir muitos noruegueses a fazerem parte da mistura étnica que resultaria na supra raça ariana. Mas o conflito terminaria e a Cortina de Ferro separou tudo e todos. As crianças perderam o rasto dos pais.

Mas a conjuntura mudou e a verdade pode ser reposta ainda que tal acarrete custos. Depois de muita insistência, Sven Solbach consegue levar Katrine a testemunhar em tribunal a sua experiência de vida e na sequência de tal a realidade começa a ficar ligeiramente distorcida. O que leva alguém a esconder algo durante uma vida inteira? Pode alguém assumir uma identidade falsa em nome de uma missão?

Como uma narrativa de construção semelhante às obras de mestres do suspense e espionagem como John le Carré, “Duas Vidas” aposta na duplicidade de uma personalidade que luta interiormente entre a verdade e a conveniência, entre a vida e uma missão. Nesta adaptação de Mass face ao romance de Hannalore Hippe são caras as aproximações à espionagem nos tempos da Guerra Fria e ao longo do filme o espetador é convidado a desbravar as várias camadas de uma mesma estória. Com o recurso a muitos flashbacks, “Duas Vidas”, assume a forma de um puzzle com uma leitura cronológica difusa mas que permite, gradualmente, um conveniente entendimento.

A par dos referidos regressos ao passado – período que tem Klara Manzel a interpretar o papel da jovem Katrine -, Maas aposta numa filmagem segura a formal mas, a espaços, concede à câmara uma liberdade que a faz deslizar sobre a belíssima paisagem nórdica ou colocar, com distinção, os atores como figuras preponderantes face a uma narrativa que aqui e ali parece carecer de um ou outro pormenor ainda que tal seja ultrapassado com competência no seu todo.

De forma propositada ou não, ao longo do filme somos levados a pensar se Maas terá tido como propósito assentar a sua perspetiva sobre um perfil de espionagem pura ou fazer realçar mais a questão dramática dos acontecimentos que receberam o nome do ideal nazi apelidado de “Fonte da Vida”.

Acima de tudo, “Duas Vidas” foca-se na exploração levada a cabo pela Stasi, os serviços secretos da ex-RDA, na tentativa de forjar falsas identidades aos seus agentes recrutados ao programa “Lebensborn”.
Escolhido como o candidato alemão ao Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro em 2014, “Duas Vidas” – que já arrecadou galardões como o Melhor Filme no Festival de Cinema Alemão – é um filme muito interessante e conta com um fortíssimo e coeso elenco com destaque para Kohler e Ullmann que muitas vezes não precisam de quaisquer palavras para expressar os seus sentimentos, sendo as suas faces verdadeiros espelhos da alma.

A banda sonora de Christoph Kaiser e Julian Maas também dá um forte contributo ao filme e faz da música um elemento preponderante na evolução narrativa do filme, papel que deve ser dividido com a fotografia de Judith Kaufmann que trabalha com mestria os díspares momentos da própria trama.

In Rua de Baixo

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