domingo, 20 de novembro de 2016

“Homens imprudentemente poéticos
de Valter Hugo Mãe

A humanização


Era uma vez um artesão que vazia leques e um oleiro que fazia taças. Era uma vez um Japão distante em que o amor se media pelo pensamento, a sensatez pela ausência de atos, a paixão pela distância e ausência das pessoas que se amam. Era uma vez Itaro, o artesão, e Saburo, o oleiro, que cultivavam uma perigosa animosidade fundada na irracionalidade da “saudável” convivência. Era uma vez dois homens em luta consigo próprios cujos sabres desbravam os seus pensamentos, as suas perdas, o seu caminho interrompido pela desgraça. Era uma vez a morte, presente ou ausente, de ser-se humano. Era uma vez uma imaginação feita, pensada, edificada, em jeito de parábola e que revela as fraquezas das gentes desenraizadas de sentido, feridas de morte pela vida.

Não era uma vez, são todas as vezes. São todos os livros de Valter Hugo Mãe. Peças únicas de uma filigrana narrativa escrita com alma de poeta sem rimar, que procuram «a felicidade no detalhe» e levam o leitor a uma espécie de lugar recorrente, conhecido, próximo, íntimo. E que fazem entrar numa geografia particular, seja “aqui” ou na terra do sol nascente, este último lugar palco de “Homens imprudentemente poéticos” (Porto Editora, 2016).

Dividido em quatro partes, como se de uma encenação se tratasse, o mais recente livro do autor de “A máquina de fazer espanhóis” invade-nos sem pedir licença, de início timidamente, e, depois, quase sem dar-nos conta, já não conseguimos desta cela sair, amarrados à sua eternidade poética cujo expoente metafórico afigura-se numa lenda cujo poço nos permite agarrar o medo, sentir o seu bafo e a sua violência, mas que acaba por cauterizar o mais profundo dos desgostos.

O perfil dos protagonistas, fantasmas de si próprios cuja vizinhança apenas faz adivinhar a desarmonia, traça o caminho para a restante e restrita companhia. Se Itaro ainda se pode valer da companhia da irmã cega Matsu e da senhora Kame, «a mãe perto», a Saburo resta-lhe chorar a morte de Fuyu, sua mulher. Pelo meio existem sábios que aumentam ou minguam de tamanho de acordo com a ocasião, fantasmas paternais ou um espantalho de quimono (trans)vestido que serve de bandeira à saudade.

Como suporte global está a natureza. Seja ela da vida ou da morte, da dor alheia à vontade ou da procura do suicídio como um ato de expiação esgravatado numa floresta anónima, oca de vida, que serve de santuário à reflexão cujo vórtice apela ao mito de Ariadne, a essa procura do caminho certo, seguro, merecido.

Mais que um livro, “Homens imprudentemente poéticos” é uma ferida aberta, uma dor ora latejante ora suportável, sem analgésicos ou cura. É um pedaço da vida, de um «tempo mitológico» construído com uma escrita dinâmica, elástica e plástica, em que os Homens, desprovidos de qualquer sentido de visão, assumem essa condição ficando de costas voltadas para todos os lados.

In Rua de Baixo

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