sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Valter Hugo Mãe em entrevista

«O desafio de se chegar a uma arte com outra é constante. Fazer da literatura pintura ou da pintura literatura é um dos grandes pontos da expressão, desde sempre» 



Um dos mais carismáticos e sensíveis escritores da sua geração, Valter Hugo Mãe volta aos escaparates com “A Desumanização”, um livro sensível e extremamente tocante sobre a natureza que nos rodeia e o revelo da alma perante a solidão e a dor. A propósito desta obra que marca a estreia do autor na Porto Editora, trocámos algumas palavras com um Homem que afirma que os livros podem ajudar a desenvolver o íntimo de quem os lê.

Na apresentação de “A Desumanização”, uma das definições que mais e melhor caracterizam esta obra é o facto de estarmos perante um “livro de ver”. Acha que muitos dos sentimentos que nos assaltam a alma ficam aquém daquilo que palavra escrita ou falada consegue descrever? É a imagem uma forma superior de comunicação?

O desafio de se chegar a uma arte com outra é constante. Fazer da literatura pintura ou da pintura literatura é um dos grandes pontos da expressão, desde sempre. Interessa-me muito levar adiante todos os limites que consiga. É certamente uma utopia querer que um texto seja explícito e virtuoso o suficiente para suprimir a necessidade de ver, mas pelas utopias corre a arte. Não quero correr por nada menor.

Os desenhos (da autoria de Cristina Valadas) que acompanham o livro servem para, de alguma forma, contextualizar a narrativa?

Adoro o trabalho da Cristina Valadas e quero muito estar sempre misturado com artistas plásticos. A ideia de a convidar para criar um conjunto de ilustrações passou por achar que ela seria perfeita para interpretar a candura e o susto de que se faz este livro. Acho que foi uma aposta maravilhosa. Ela fez um trabalho lindo de mais. O leitor prepara os olhos para o que o texto dá a ver.

Pela primeira vez entrega a função de narrador ou personagem principal a alguém no feminino. O que torna a personagem de “Halla” tão especial para merecer tamanha responsabilidade?

Acho a Halla uma figura impressionante. É merecedora de todos os riscos e eu não saberia escrever livros sem me colocar em perigo. Repetir receitas declaradamente não me interessa.

“A Desumanização” é um livro onde a solidão, a perda e a desesperança são sentimentos intimamente ligados à natureza das pessoas e do meio ambiente. Pensou em fazer um paralelismo metafórico entre os personagens e o cenário envolvente?

Sim. A Islândia é um símbolo de solidão. A perda da irmã gémea serve de cúmulo da solidão. Todo o livro conspira para a meditação profunda acerca de ficar só, saber ficar só, até se ser independente, livre.

“Halla” sente a morte da irmã gémea (Sigridur) como a perda da própria identidade. Acredita que um gémeo é a imagem refletida do próprio “Eu”?

Acredito que um gémeo poderá ser, ao menos na idade em que Halla nos conta a história, o extremo da companhia. A companhia absoluta. Perder um gémeo, nessa altura, tem de ser como ficar a meio na identidade.

Sabemos que teve a infelicidade de ter perdido um irmão à nascença. Será “este livro uma forma de exorcizar esse “fantasma”, de superar a perda?

O meu irmão faleceu com um ano de idade. Já havia falecido quando nasci. Nunca o vi. Não há sequer uma fotografia sua. Não há nada. E creio que escrevi o livro não para me apaziguar, mas a natureza do livro, a dado ponto, coincidiu com algumas questões minhas, como acho natural que aconteça. Não quero negar aos livros o que eles solicitam de mim. Mas é importante que os romances não se tornem exactamente súmulas da nossa vida.

O que significa para si, no fundo, “desumanizar”?

Não poder exercer em liberdade a identidade que nos corresponde. Precisar de reduzir as pulsões benignas, ingénuas, espontâneas, para não ser triturado pelo cruel que o mundo das pessoas é.

A sua escrita revela uma sensibilidade urgente e atinge um elevado patamar poético neste novo romance. Será a Islândia a musa ideal?

Para este texto foi. Este livro não poderia ser assim sem ela. Outros lugares já me terão inspirado a mesma grandeza ou ternura. Não sei pensar sem me sensibilizar, não sei sensibilizar-me sem querer explicar e escrever.

Numa das passagens do livro escreve: «As pessoas que não liam não tinham sentidos». Acha que os livros podem ser dicionários abertos da alma? Pode a leitura ser uma forma de relacionamento com o divino?

Sim. Acho que os livros são reduto do que temos de melhor. Podem cumprir todas as funções, sobretudo a de nos desenvolver intimamente, favorecendo o pensamento e as convicções. Quem não lê anda como que vazio. É apenas uma versão fraca do que poderia ser.

Sente-se, aos 42 anos, um escritor mais completo do que quando publicou, por exemplo, “O Nosso Reino”?

Sim. Sinto, sim. O tempo traz alguma paz. Não nos retira angústia nenhuma, mas permite que sejamos mais espertos a lidar com o que nos faz mal. E permite que pensemos melhor no que nos interessa, no que nos pode redimir nisto de estarmos vivos.

Foto: Miguel Gonçalves Mendes

In Rua de Baixo

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