terça-feira, 30 de abril de 2013

“A IRMÃ DE FREUD”
de GOCE SIMLESVSKI

O Esquecimento de Adolfine



A existência, enquanto relação interior ou com o próximo, pode ser uma experiência talhada para a incerteza, um vazio que se procura preencher com momentos, pedaços de vivência, com sentimentos, com amizade, com amor.

No decorrer da vida vão existindo obstáculos inesperados e outros que são a confirmação da efemeridade ou permanência de conceitos tão abstratos como a felicidade, a inocência, a tristeza, a solidão e, por muito estranho que possa parecer, os laços familiares.

Uma das mais famosas personalidades da história recente, que dedicou toda a sua vida a tentar esclarecer o labirinto da consciência humana e a dar algum sentido à análise psicanalítica do “Eu”, foi o austríaco Sigmund Freud; com ele a mente assumiria um papel de indiscutível importância no conhecimento do Homem enquanto ser pensante.

Depois de Copérnico e Darwin assumirem papel de destaque na relação do Homem no seu espaço e origem, Freud procurou, no interior do cérebro humano, razões para o comportamento individual. A frieza da sua análise levou a cultivar uma personalidade peculiar. Os seus estudos polémicos, a base da sua vida, foram a forma de atingir a imortalidade através de uma obra que encantou a comunidade científica.

É esta obsessão que dá o mote ao romance “A Irmã de Freud” (terceira obra do autor e a primeira com edição portuguesa) do macedónio Goce Smilevski, que decorre numa das épocas mais complicadas e traumatizantes da Europa: entre as duas primeiras guerras mundiais, a ascensão de Adolf Hitler ao poder e a anexação da Áustria por parte do Império Nazi.

Vencedor do Prémio União Europeia da Literatura de 2010, este romance, agora editado pela Alfaguara, chancela da Objectiva, conta a vida da irmã mais nova de Freud, que se viu subjugada ao amor que dedicara a Sigmund e que colocou essa estima à frente da própria vida. A trama é contada em jeito biográfico, com uma narrativa que extravasa o conceito comum da linha cronológica.

A história tem o seu início em 1938, depois da Alemanha anexar a vizinha Áustria. Os tempos são conturbados, a limpeza étnica está em marcha e o famoso psicanalista Sigmund Freud, à época enfermo, consegue vistos para fugir para Londres. Assim, Freud elabora uma lista com 16 pessoas que o vão acompanhar nessa viagem, que pode significar a própria salvação perante a ameaça irracional da filosofia de Hitler.

Freud preenche essa lista com o nome da sua esposa, dos filhos, netos, cunhada, médico particular, criadagem e do seu amigo de quatro patas. Estranhamente, o nome das suas quatro irmãs não configura nesse rol, cujo destino será a morte em campos de concentração. A “loucura temporária” de Hitler serve de obstáculo racional ao germanófilo psicanalista, que não vê necessidade de afastar as suas irmãs da sua terra natal.

Será a sensível Adolfine, a sua irmã mais nova – e segundo Freud “a melhor e mais doce irmã” -, a assumir o papel de narrador, revelando uma vida repleta de vazios e pontas soltas cujo seio familiar é o grande responsável pela sua incompetência enquanto ser humano.

Misturando e confundido realidade com ficção, Smilevski traça uma autêntica Via Sacra a Adolfine que, depois de suplicar uma tentativa de saída do país pela mão do irmão, se vê refém de uma vida que tem nas suas irmãs e na sua mãe um fim em si mesmo. A simbiose que ligava Adolfine a Sigmund foi há muito foi perdida, e não resta outra coisa senão o triste destino de encarar a morte, o esquecimento da vida, num campo de concentração nazi.

Tal como referimos, a narrativa deste “A Irmã de Freud” não é linear. Se no início do livro estamos no auge do período Nazi, o avançar das páginas faz uma regressão à Viena do virar dos séculos XIX e XX, onde a arte e o espírito intelectual mascaravam a dor e a solidão de muitos. O epílogo da obra leva o leitor de novo a um presente que se quer esquecido.

A escrita magistral de Goce Smilevski trabalha de forma inteligente e sagaz a memória, o subconsciente, e fixa-se na história de vida de uma mulher engolida pela pobreza, financeira e mental, que é sinónimo do desapontamento, da perda. Adolfine cresceu sobre o estigma de ser indesejada pela própria mãe, de se ver rejeitada pelo seu irmão e não conseguir um relacionamento estável e saudável na sua intimidade.

A vida torna-se cada vez mais crua e madrasta para Adolfine que consegue, ainda assim, atingir estados de felicidade, mesmo que efémeros. O amor inocente vivido com Rainer (“Quando a alma e o corpo ainda estão unidos…”) e a amizade que a une a Klara ou a Ottla formam a sua personalidade enquanto ser humano, fechado em si mesmo e à beira da falência.

Citando Nietzsche, Adolfine ganha o abismo depois de estar muito tempo face a tal sensação. É esse sentimento que Smilevski explora de forma sublime quando Adolfine, depois de passar pela maior provação em termos do conceito de maternidade, decide ir para uma instituição que alberga loucos, que é também casa de Klara. Adolfine toma esse ato de forma consciente, não por se sentir fora das suas faculdades mentais mas para se libertar «da prisão que o seu espírito se encontra».

A loucura enquanto vazio interior atormenta a frágil Adolfine, que se refugia numa realidade alternativa e marginal de forma a sacudir o peso da insanidade provocada pela solidão. Mais uma vez, Smilevski pega da psicanálise freudiana e no “Eu” em relação a eventuais relacionamentos com terceiros. De forma a abrir ainda mais a caixa de Pandora da ausência de racionalidade, as linhas deste livro revelam testemunhos de possíveis definições de loucura, como é o caso do pintor Van Gogh.

Goce Smileski, apontado por muitos como herdeiro de Saramago ou Grass, mais do que uma atribuição de culpa procura, com esta obra, uma profunda reflexão sobre a vivência humana, os seus acidentes de percurso pessoais e as consequentes falências.
Ao ler as páginas de “A Irmã de Freud”, percebemos que a dimensão da vida pode ser subjugada por fatores externos, à própria racionalidade, razoabilidade e efemeridade. Numa das muitas citações que se encontram nesta fantástica obra, as palavras de Píndaro ousam definir o ser humano: «O Homem é o sonho de uma sombra».
Alegoria ou não, “A Irmã de Freud” tem tudo o que o leitor deseja. Do amor à traição, da demência à racionalidade “excessiva”, da alegria à dor, do abandono ao regresso. A vida inteira reunida numa dos mais belos exercícios de reflexão filosófica e pessoal dos últimos tempos. A não perder!

In Rua de Baixo

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