segunda-feira, 19 de maio de 2014

Susana Nobre em entrevista

“Os RVCC resolviam, ou ajudavam a resolver, um problema administrativo que advém da obrigatoriedade de ter o 9ª ano de escolaridade para ter acesso a uma grande parte dos empregos. Não há neste momento nenhuma resposta tão eficaz como foi o caso dos RVCC” 



País de brandos costumes e de gente trabalhadora, Portugal procura sair da crise económica e pessoal. Através do documentário “Vida Activa” Susana Nobre traça o perfil orgulhoso de gente que não desiste mas sente-se encurralada numa conjuntura que transforma a existência numa vivência interrompida. O desemprego, a precaridade e a requalificação estão na base dos testemunhos que compõem o fio condutor desta brilhante experiência cinematográfica. Para a devida contextualização deste projeto estivemos à conversa com Susana Nobre

RDB – Como surgiu a ideia de fazer um filme deste género? 

Susana Nobre – Partiu do conhecimento prévio das metodologias dos processos de Reconhecimento e Validação e Certificação de Competências (RVCC). Estas metodologias implicavam a enunciação da história de vida a partir de instrumentos formais. Interessava-me ver como a história de vida particular, na sua enunciação, resistia a um processo institucional e formatado como era o RVCC.

RDB – A conjuntura social e económica em Portugal tende a tecer uma diferença cada vez maior entre o desempregado e quem tem emprego. Até que ponto acha que programas como o RVCC podem estimular quem se encontra inscrito num centro de emprego? 

SN – Os RVCC resolviam, ou ajudavam a resolver, um problema administrativo que advém da obrigatoriedade de ter o 9ª ano de escolaridade para ter acesso a uma grande parte dos empregos. Não há neste momento nenhuma resposta tão eficaz como foi o caso dos RVCC. Nesse sentido, estimulam porque regulam o acesso. Podemos questionar essa formatação do mercado de trabalho para o 9º ano. Foi ela que tornou premente a criação destes processos que têm uma lógica integradora e não de exclusão. No caso português fazia todo o sentido, pois temos uma população pouco qualificada do ponto de vista académico e com percursos profissionais muito determinados e desenvolvidos pela experiência de vida.

RDB – Das muitas entrevistas que realizou como se processou a escolha daquelas que figuram em “Vida Activa”? Obedeceu a algum critério predefinido?

SN – Penso que talvez haja um traço comum que é o extravasar para além do guião técnico e das respostas formatadas. Era muito frequente os candidatos terem um discurso orientado para o pressuposto do que deveria ser correto responder. Isto tem a ver com uma dimensão opressiva que as instituições produzem, ou podem produzir, no confronto com elas. Também é dessa tensão entre o indivíduo e a sua história particular e a instituição, que a todos obriga e a todos trata por igual, que o filme vive.

RDB – Dos rostos que se dão a conhecer no documentário é notória uma certa sensação de tranquilidade dando a entender que a câmara não intimidava. Como se realizava o processo de filmagem?

SN – A câmara não intimidava mas penso que o guião técnico das entrevistas sim. O filme pode ser estruturado em dois momentos: um primeiro momento de seriação de entrevistas, conduzidas pelo guião técnico de entrevista, e um segundo momento em que intervenho mais, ao procurar outras questões que já não faziam parte dos instrumentos do RVCC. Esta segunda parte decorre principalmente em sessões de grupo onde já havia uma relação estabelecida com os protagonistas.

RDB – Invariavelmente os testemunhos refletem vidas que estão de certa forma interrompidas. Ainda assim, o orgulho é um dos sentimentos mais presentes no discurso dos entrevistados. Entende esse orgulho como uma reação face às adversidades vividas por estas pessoas?

SN – Talvez seja um orgulho pela lucidez, pelo conhecimento do lugar em que se está. Mas há diferentes tipos de orgulho. Há o brio profissional de se ter cumprido as tarefas propostas, mas também o orgulho pelo conhecimento construído. O conhecimento profissional construído ao longo dos anos funciona como uma catedral que permite assumir com segurança uma perspetiva crítica sobre o lugar em que se está. No caso do filme isto é bastante evidente nos relatos masculinos.

RDB – Ao longo do filme somos presenteados com inúmero material fotográfico que serve de contextualização ideal. Foi difícil obter esse material?

SN – Esses materiais faziam parte dos portefólios que os candidatos tinham de construir ao longo do processo. Uma das funções que tinha, era dar orientação na construção dos mesmos.

RBD – Tendo em conta a sua experiência na génese de “Vida Activa”, como definiria o perfil do português? Será que o facto de se registar uma elevada taxa de desemprego e uma situação laboral precária pode tornar-nos num povo definitivamente depressivo?

SN – Não sei se é uma característica do povo português, penso que não, mas está muito enraizada a ideia de que a dignificação pessoal só advém do trabalho enquanto emprego. Quando esse lugar deixa de existir, instala-se uma crise de participação que desvincula politicamente as pessoas do mundo à sua volta.

RDB – Ainda que falemos em termos documentais, sentimos que “Vida Activa” tende a centrar-se no depoimento evitando sempre qualquer tipo de julgamento. Nunca sentiu a tentação de deixar cair a cortina da imparcialidade?

SN – A subjetividade não se dá apenas em comentários na primeira pessoa. A estrutura do filme não é imparcial. Há uma montagem de problemas que tem uma orientação muita clara. A cena final é disso emblemática. A destruição dos papéis ressoa por todo o filme, como o facilitismo dominante em destruir o que levou anos a construir. Não se trata da destruição da memória pessoal mas sim de estruturas produtivas irreparáveis.

RDB – De que forma motivaria o espetador a ver o seu documentário?

SN – O ato de ver um filme em sala transforma o filme numa experiência, o que nem sempre acontece numa televisão ou num computador.

In Rua de Baixo

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