terça-feira, 27 de maio de 2014

“Só os Amantes Sobrevivem”
de Jim Jarmursch

Teorização quântica da paixão



Alguns cientistas defendem que o entrelaçamento quântico possibilita que dois ou mais objectos se liguem de forma excecionalmente una e que uma das partes não existe sem a outra, nem que isso represente uma distância de milhões de anos-luz.

É com base nesta reflexão que Jim Jarmusch pensou em Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), o casal trágico-apaixonante do mais recente filme do realizador de “Dead Man” que sustenta de forma magnífica “Só os Amantes Sobrevivem”, uma experiência romântica que se assume como uma metáfora criativa sobre a questão da eternidade do ponto de vista de dois vampiros que sentem a vida eterna de perspetivas diferentes.

Juntos desde sempre Adam e Eve tem uma relação fora do comum. Ele enfrenta uma das suas fases mais depressivas e tem no cenário decrépito e desolador de uma Detroit à beira do colapso a sua morada. Ela, encantadoramente clássica, devora livros sob a tranquilidade exótica de Tânger.

Para ambos, enquanto vampiros, a vida é sinónimo de uma vivência noturna, de óculos escuros e luvas. Ambos cultivaram relações que permitem alimentar a sua sede de sangue sem recorrer ao vulgar assassinato. Também para Adam e Eve, a cultura é forte alicerce. Ele é um músico experiente, ela uma conhecedora de literatura. Ele colecionada guitarras, ela trata os livros como parte da sua alma. Ele venera Jack White e os Dirtbombs, ela é apaixonada pela obra de Cervantes e Kafka. Ele tem em Ian (Anton Yelchin) o seu braço-direito, ela confia a sua sorte a Kit aka Christopher Marlowe (John Hurt). Ambos nutrem uma paixão incondicional pelo outro.

Depois de uma conversa patrocinada pelas novas tecnologias, Eve constata a depressão que envolve Adam. Vitima das loucas políticas dos zombies (leia-se, comuns mortais) Adam confessa a sua desilusão face à humanidade ponderando mesmo o suicídio com uma bala especial. A sua opção pela reclusão é a par de Eve e da música, a sua razão de viver.

Eve, preocupada, decide rumar a Detroit para junto do seu amado. Consigo leva uma “bagagem” repleta de clássicos da literatura assim como um sonho que lhe atormenta os dias. A presença onírica de Ava (Mia Wasikowska), sua irmã, deixa-a preocupada. Mais, também Kit já apreendeu que Ava está a chegar e a sua personalidade impetuosa e imatura vai deixar marcas, de facto.

Estão assim lançados os dados para “Só os Amantes Sobrevivem”, um filme poético, elegante, que simboliza o perfil de Jarmusch pela sensibilidade estética, algo aristocrática e nostálgica, que encerra sobre si mesma uma sensação de solidariedade aqui e ali salpicada por um acutilante sarcasmo sob a forma, por exemplo, de uma crítica ao trabalho de William Shakespear ou ao simples tragar de um gelado de sangue O-negativo.

Realizado sem pressas e com uma narrativa propositadamente lenta – para os vampiros algumas centenas de anos são apenas curtos pedaços de História – “Só os Amantes Sobrevivem” é um hino ao romantismo assim como uma pertinente crítica política e social e um apontar de dedo a dependências que aqui assumem a forma de uma necessidade de sangue.

As muitas referências a nomes da cultura mundial e a maravilhosa banda sonora (o momento com Yasmine Hamdan é sinónimo de uma comovente e extraordinária associação entre sentimentos, música e imagem) tornam a realização de Jarmusch como uma espécie poética onde os planos picados servem de elemento aglutinador de toda a ação.

Em vez de vulgares planos de corte, Jarmusch serve-nos deliciosos momentos sonoros onde as guitarras ao desalinho (sons tão caros os universo do realizador) e os feedbacks delicados dão um toque indie muito interessante e servem de guias face ao cenário quase apocalíptico da (ex-) Motor City.

Ainda que se trate de um filme de vampiros, não se espere de “Só os Amantes Sobrevivem” cenas gore, paixões teenagers ou vulgares rapazes da noite. Estamos no elegante universo de Jim Jarmusrcsh e os caninos apenas crescem de forma subtil e quase ensimesmada. O ambiente é decrépito, sim, e é o rock and roll que mais ordena ainda que envolto de assinaláveis doses de poesia e bom gosto. Ainda assim, lamentavelmente, Adam e Eve vivem na sombra e têm de beber sangue para viver, nem que para tal tenham de o pedir por favor.

In Rua de Baixo

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