quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

ANNA CALVI @ AULA MAGNA

O (EN)CANTO DA SEREIA



Maravilhoso. Esta pode ser uma das formas de adjetivar aquilo que se passou na noite de ontem na quase lotada Aula Magna. Rendido desde a primeira hora, o muito público presente sublinhou com aplausos e outros tiques de devoção cada interpretação da cantora, compositora e exímia guitarrista britânica.

No seguimento da digressão que promove o seu segundo álbum, “One Breath”, Anna Calvi regressou a Portugal para duas datas que, por certo, ficarão na memória dos privilegiados que assistiram aos concertos na Casa da Música e Aula Magna, espetáculos esses que encerram a referida tour.

De aspeto frágil, assente nuns desafiadores saltos altos e trajando elegantemente de vermelho e negro, Calvi enceta uma deslumbrante metamorfose ao pegar na guitarra, elemento ensimesmado da sua própria existência. Por entre registos perto de paisagens sónicas e outros momentos a reclamar o sussurro, a britânica explorou os seus únicos dois discos editados até hoje, gravando na memória dos presentes instantes perto da perfeição técnica e orgânica, com particular destaque para uma voz ímpar e um trabalho de guitarra fantástico.

Depois do público marcar a sua impaciência face a um palco momentaneamente vazio através de gritos de chamamento a Anna Calvi, a pequena diva, acompanhada por um trio de grandes músicos, entrou em palco poucos minutos depois das 22 horas. Com a bateria a marcar o ritmo inicial, “Suzanne & I”, retirado do trabalho debutante de Anna Calvi, numa versão mais calma que a do registo de estúdio, revelou a aparente fragilidade da figura que ocupava o centro do palco, rapidamente ultrapassada quando da guitarra sairam acordes maiores, assentes numa mestria assinalável.

Depois de receber, sorridente, as primeiras palmas do público, Calvi atira-se a uma grande versão de “Eliza”, retirada do recente “One Breath”. Para tocar “Suddenly”, a pequena grande britânica troca de guitarra e a voz doce de Calvi faz a todos percorrer sonhos tranquilos, através de uma doçura intimista, apenas quebrada por alguns momentos de explosão. A seguir, “Sing to Me”, uma das mais belas composição de Calvi, fez sentir laivos do universo musical de David Lynch misturado com fantasmas de PJ Harvey, e o público sente o encanto da sereia.

A assistência não esconde a emoção que se vive na sala e alguém grita: “we love you!”. Sorridente, Calvi agradece e logo a seguir atira-se a um potente “Cry” e, pela primeira vez, sente-se a presença do inconfundível sublinhar de um baixo. Em curtos minutos de genial manobra de uma guitarra que “fala” para quem a escuta, Calvi mostra que é uma das maiores guitarristas do momento. Na verdadeira montanha-russa de sentimentos que é um concerto de Anna Calvi, “First We Kiss”, leva-nos de volta ao fundo de um mar vermelho, cuja intensidade das cordas da guitarra faz a todos flutuar.

Decididamente mais potente e emotiva ao vivo, a música de Calvi procura inspiração em territórios díspares e em “I’ll be Your Man” é o blues a marcar presença. Durante alguns instantes, Anna abandona a frente do microfone e leva a guitarra mais perto da assistência através de um maravilhoso solo de intensidade oscilante. O silêncio reclama espaço e o público respeita o pedido. Antes de tocar “Piece by Piece”, a banda é premiada com uma das maiores ovações da noite e, em forma de agradecimento, oferece intensos minutos groove ao tocar outra das faixas de “One Breath”. “Carry Me Over”, um dos momentos mais “pop” da noite, faz outros instrumentos brilhar e o som irrepreensível da Aula Magna delicia os ouvidos com toques de xilofone, grandes momentos de bateria e teclas, que apenas são profanados com a estática e o feedback da responsabilidade e mestria de Calvi.

Depois, a banda retira-se de palco e Anna, tomando por companhia apenas a guitarra, toca uma assombrosa versão de “Fire”, de Bruce Springsteen. Numa atitude descaradamente sedutora, Calvi faz suar os presentes com uma interpretação agridoce que reclama desejo. Já com a banda novamente em palco, a paixão continua sob a forma de “Desire”, um exercício perfeito que conjuga a arte de bem tocar um instrumento e a magnitude de uma voz surpreendente.

Antes de se retirar pela primeira vez do palco há ainda tempo para “Love Will Be Leaving”, que assumiu contornos de uma saudável jam session.

O regresso ao palco fez-se pouco momentos depois, pois o público não se cansava de reclamar a presença de Calvi e seus pares. Depois de uma hora certinha de canções, música e momentos de grande beleza interpretativa, a serena “Bleed Into Me” e a mais encorpada “Jezebel” confirmaram a excelência do concerto, que terminaria apenas com um fantasmagórico “Blackout”, que contou com um início à moda de um western spaghetti envolto de outro solo marcante e circular de Calvi e que serviu de desculpa para regressar ao placo depois de outra curtíssima pausa.

A ovação final, com todos de pé, mostrou como todos estavam rendidos a um dos melhores concertos que os portugueses tiveram a honra de assistir em 2013 e cuja definição possível pode ser encontrada na primeira palavra deste texto.

Antes da inesquecível atuação de Anna Calvi, esteve em palco “I Have a Tribe”, um projeto de um homem só que aposta na companhia de uma guitarra ou de um piano, conseguindo proporcionar momentos de rara beleza, assentes numa assinalável linguagem corporal e dramatismo. Ao longo de sete canções, das quais de destaca “Monsoon”, assistimos a uma muito interessante e intimista prestação, cujo ambiente toca nos universos de gente como Jeff Buckley ou Justin Vernon. Em jeito de confissão, o enigmático e simpático intérprete revelou que se tratava da sua primeira digressão, sendo que o nome de “I Have a Tribe” deixou o público com água na boca, esperando-se mais novidades do músico e do seu projeto.

Foto: Marta Ribeiro/Palco Principal

In Palco Principal

Sem comentários:

Enviar um comentário