quinta-feira, 5 de junho de 2014

“Canadá”
de Richard Ford

O Livro do Mundo



Corriam os agitados anos 1980 quando “Canadá” (Porto Editora, 2014), o mais recente livro de Richard Ford, terá – ainda que de forma inconsciente ,tido a sua génese. A convite de Dave Carpenter, romancista e ensaísta canadiano, Ford e o também escritor Raymond Carver aceitaram participar numa caça ao ganso nas margem sul do rio Saskatchewan, no Canadá.

Conhecedor das artes da caça através do legado herdado de um pai e avô caçadores, Ford aceitou de bom grado a demanda e, dessa aventura, nasceu um desafio entre o autor de “O Jornalista Desportivo” e Carver: fazer um romance sobre o episódio vivido no Canadá, de criação livre. Infelizmente Raymond Carver morreria pouco tempo depois, mas Ford não esqueceu a promessa e, duas décadas depois, “Canadá” é uma maravilhosa realidade.

Depois de editar “A Pele da Terra”, tomo terceiro do trilogia que tinha como principal personagem Frank Bascome, “Canadá” traz de regresso, seis anos depois, a escrita genial de um autor que já viu a sua obra ser reconhecida através dos prestigiados prémios Pulitzer e Pen/Faulkner.

Obra ficcional divida em três partes, “Canadá” centra-se na figura de Dell Parsons, um rapaz de quinze que vive um período de abandono familiar depois dos pais terem sido acusados de assaltar um banco (e posteriormente presos). Dell é um personagem edificado com mestria, através de uma linguagem desarmante que torna a escrita de Richard Ford num acontecimento sem paralelo.

À semelhança do que fez no romance “Wildlife”, “Canadá” traz de novo a palco a pequena cidade Great Falls, no estado de Montana. Vivem-se os finais da década de 1950 e os ecos da Segunda Guerra estão ainda muito vivos. Ainda que esta obra seja entendida do ponto de vista presente, Richard Ford dá a Dell Parsons a possibilidade de viver um discurso na primeira pessoa, fazendo um interessante regresso ao passado de modo a conseguir entender a sua posição no mundo, afastando – ou pelo menos realizando essa tentativa – fantasmas de tempos idos.

Mas tudo em “Canadá” é complexo e está inserido num universo contextual particular. Com um argumento cru, Ford relata a história de vida de Dell Parsons, filho de Bev Parsons, ex-militar e tripulante de um B-52 responsável pelos bombardeamentos aquando da Segunda Guerra Mundial, e Neeva Kamper, professora de profissão.

Deste improvável casal nasceram Dell e Berner, gémeos falsos que partilham as bruscas mudanças de quotidiano promovidas pelo espírito nómada dos seus progenitores. Bev, otimista e extrovertido por natureza, arrasta a sua família de base em base militar em busca de um local “perfeito”.

Dell e Berner sentem dificuldades de habituação e integração nas comunidades que vão conhecendo. Rapaz e rapariga fecham-se sobre si mesmos, ainda que Berner consiga libertar-se de amarras e tente socializar. Já Dell refugia-se entre duas paixões: as abelhas e o xadrez.

À medida que as páginas avançam, é cada vez mais notório que este romance assenta o seu perfil num equilíbrio entre o enredo e a própria linguagem da escrita de Ford, sendo que qualquer um destes elementos não se sobrepõe, convivendo antes de forma deliciosamente harmoniosa.

Enquanto a vida vai agudizando as dificuldades da família, Bev decide optar por um caminho que vai mudar a vida de todos. Na companhia de Neeva decide assaltar um banco no Norte do Dakota. Sem experiência e movido por uma sensação de desespero, o casal acaba por ser detido e entrega os filhos à sorte do destino. Berner opta pela fuga, Dell é salvo por uma amiga da mãe que o leva para o desconhecido Canadá.

As pradarias de Saskatchewan, não referidas no “World Book” de Dell, surgem como uma segunda oportunidade para o adolescente que é acolhido por Arthur Remlinger, um norte-americano radicado no Canadá cuja personalidade é um misto de carisma e vazio. Dell está, agora, entregue à sua sorte, mas tudo à sua volta é um cenário escuro. Ainda que a vida seja entregue vazia e seja nossa a responsabilidade de a encher, estará Dell preparado para tal tarefa?

Ao longo deste livro, sem dúvida uma das obras mais consistentes deste ano, é o poder da linguagem de Richard Ford que hipnotiza o leitor. A estória é de uma autenticidade assinalável e os personagens espelham alguns dos maiores defeitos e virtudes do ser humano, ainda que seja difícil classificar a sua destrinça.

Se Berner era para Dell um dos poucos fios condutores entre o mundo e a sua vivência, ao jovem perdido em si mesmo por terras do Canadá não resta outra coisa que não completar o puzzle interrompido da sua vida e encontrar o seu caminho, o seu papel no Mundo. Richard Ford entrega ao personagem de Dell uma voz lacónica, ligeiramente melancólica, onde o julgamento é ideia esquecida. A sua memória vai sendo construída, a ferros.

Não é, definitivamente, fácil ser filho de criminosos, ainda que os mesmos não tenham tal rótulo escrito na testa. Mesmo como narrador e na sua função de adulto e professor veterano, Dell não perde uma fragilidade construída através de desconcertantes jogos de instabilidade emocional. Escondidos em frases ou disfarçados em ações, são os pormenores da vida de Dell que traçam a lógica deste romance que não pretende ser mais do que um reencontro com a vida interior.

Tentar ter uma vida normal é a mais árdua tarefa da vida de quem perdeu tudo ou quase. A solidão cresce a cada momento, a cada ato falhado, a cada humilhação, a cada desprezo sentido. O caos da vida de quem está só no mundo pode transformar simples atos em tarefas hercúleas. A coragem é a única arma para vencer desafios, principalmente quando se ultrapassam certos limites, fronteiras que traçam essa ténue linha entre racionalidade e insanidade, entre a paz e a violência, entre o ser e o nada.

Com “Canadá”, Richard Ford faz uma viagem ao abismo do ser humano, na tentativa de uma redenção examinativa de uma vida que foi arruinada pela irresponsabilidade alheia. Ainda que o escritor norte-americano diga que esta obra resulta da sua imaginação, é impossível não retratar e comparar a mesma face a um quotidiano que se revela em pormenores e hesitações, e que está bem próximo de todos e mistura medos com coragem, felicidade com angústia, vitórias com derrotas, sendo a vida uma imensa queda.

In Rua de Baixo

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