quarta-feira, 6 de maio de 2015

“Hereges”
de Leonardo Padura

Pura literatura, sem embargos


Quatro anos é muito tempo sem notícias literárias de Leonardo Padura. Foi esse o hiato entre “O Homem que Gostava de Cães” e o recentemente editado “Hereges” (Porto Editora, 2015). Pior, não tínhamos novidades de Mário Conde desde “Um Passado Perfeito”, romance datado de 2009.

Mas, felizmente, “Hereges” veio colmatar essa dupla falha e apresenta-nos um Conde diferente, a correr atrás do sonho dos livros e longe dos dias de tenente. Ainda que o contexto tenha mudado, a pandilha continua junta e ainda que em doses menos generosas que em outros livros podemos sentir a presença de Carlos Magricela, Tamara, Candito, Josefina, Coelho, Dulcita e Yoyi. Para contextualizar os mais desatentos, esquecidos ou novos leitores do universo Padura, as (parcas) notas de rodapé remetem para eventos literários saudosos em forma de exercício de memória.

Como um caleidoscópio temporal, “Hereges” tem início em 1939, quando o navio S.S. Saint Louis, que transportava 900 judeus que fugiam da Alemanha, esteve ancorado no porto de Havana durante alguns dias enquanto esperava por autorização de desembarque, um dos episódios mais tristes da História de Cuba.

Em terra, à semelhança de muitos outros, Daniel Kamisky e o tio Joseph aguardavam no cais pela saída dos familiares. Carregavam a esperança de ter os entes queridos por perto, principalmente porque os Kamisnky tinham em sua posse uma pequena tela de Rembrandt, uma obra do século XVII.

Os dias passaram e nada acontecia. A ansiedade, e o medo, cresciam. Até que a esperança deu lugar à tristeza pois o transatlântico regressou para a Europa, levando consigo pessoas, sonhos, deitando por terra possíveis e desejados reencontros, o que foi, na esmagadora maioria dos casos, sinónimo de morte.

Décadas depois, em 2007, a referida obra de Rembrandt surge num leilão londrino e Elias Kaminsky, filho de Daniel, parte dos Estados Unidos da América para a capital cubana com o propósito de descobrir o que terá acontecido ao quadro e à sua família.

A responsabilidade de descobrir o caminho certo deste labirinto emocional fica nas mãos, e inspiração, de Mário Conde, o único ser humano com sensibilidade e engenho para ajudar Elias. Aos poucos, o pintor e filho de Daniel, descobre que o pai vivia atormentado por um terrível crime e que a peça de Rembrandt – uma imagem de Cristo que teve como modelo um judeu que trabalhou no atelier do mestre holandês e aspirava aprender com este – pode ser a chave de tão intrincado mistério.

“Hereges” é um romance, tripartido, sobre a dor e alguns dos seus mais (ou menos) visíveis tentáculos e da perda de entes queridos, da esperança, do fim de ilusões várias. Mas também se escreve sobre do fel do desenraizamento, a frustração de não se puder ter aquilo que se merece ou acha justo, a sociedade de Havana, a paixão do baseball, a rebeldia da juventude, a corrupção, a homossexualidade, o todo político, social e cultural de uma Cuba embargada emocionalmente.

Mas, apesar destes e de outros ingredientes, aquilo que confere unidade a esta iguaria literária é a busca pela liberdade, pelo exercício do livre arbítrio por parte do ser humano em períodos e contextos históricos dissonantes tendo por base a vivência de dois personagens judeus, fundindo intriga policial, investigação histórica e uma tese filosófica.

No fundo, estamos perante uma obra completa, arrebatadora (algo inato à mestria da escrita de Leonardo Padura Fuentes) e que nos transporta numa viagem emocional e temporal de Cuba das décadas de 1949 e 1950, ecos dos primeiros anos revolucionários, fazendo uma tangente à Amesterdão do século XVII, principalmente no que tocava à sua efervescência artística e tolerância religiosa, regressando depois ao “presente”.

O leitor é convidado a (re)viver cenários de mudança política e social de forma exemplar e tem como elemento charneira um Mário Conde em excelente forma, enquanto sentimos a crueza e o realismo atroz das perseguições e consequentes massacres vividos pelos judeus nos séculos XVII e XX. Fruto de uma investigação com base em documentos históricos e feita de forma exaustiva, “Hereges” coloca o dedo na ferida de uma sociedade moderna que é também um reflexo de uma História repleta de momentos negros e irracionais.

Sob o risco de cair na tentação de qualquer tipo de spoiler, não podemos adiantar muito mais da trama de “Hereges”, um livro que transcende géneros. Apenas deixamos uma certeza, como em qualquer livro de Mário Conde, tal com na vida, há um acreditar no futuro, na esperança de ser feliz, ainda que a dor seja algo a que não se pode escapar, e a isso, ninguém está a salvo. Tal como diz um dos protagonistas deste livro: «A felicidade é um estado frágil, às vezes instantâneo, uma faísca».

In Rua de Baixo

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