“Don’t think about making art, just get it done. Let everyone else decide if it’s good or bad, whether they love it or hate it. While they are deciding, make even more art.” Andy Warhol
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
“A Mulher Louca”
de Juan José Millás
Diário Pouco Secreto de Lúcidas Loucuras
Um dos mais brilhantes escritores da sua geração, o espanhol Juan José Millás deixa, a cada livro, uma marca profunda de uma genialidade que mistura a realidade objetiva e corriqueira com elevadas doses de surrealismo.
Com uma assinalável carreira enquanto jornalista e também escritor, o autor de livros como “O Mundo”, “Laura e Júlio”, “Os Objetos Chamam-nos” ou “O Que Sei dos Homenzinhos”, faz-nos agora chegar “A Mulher Louca” (Planeta, 2014), um dos mais aguardados livros do ano e, sem dúvida, um dos mais brilhantes.
Vencedor de galardões como o “Prémio Planeta 2007” ou o “Prémio Nacional de Narrativa 2008”, Millás é dono de uma escrita única, desconcertante e profundamente psicanalítica e “A Mulher Louca” eleva a narrativa ao expoente da fronteira (ténue) que divide realidade e ficção, possível e impossível, verdade e mentira.
Embrulhado em um sentido de humor cuja génese resulta de uma capacidade honesta de combater a dura realidade, seja ela alternativa ou não, “A Mulher Louca” é um livro diferente. Os seus personagens desafiam a lógica a cada frase, a cada conceito. O desejo de pertença é assinalável e o próprio autor não resistiu ao enredo. Millás vive nas páginas desta obra através de um desdobramento triplo: como autor, narrador e personagem.
No centro da trama está Julia, que mistura o trabalho em uma peixaria com o estudo autodidata da gramática. Fá-lo para entender a linguagem mas também porque quer entrar no mundo de Roberto, o seu chefe, e amante, filólogo de formação.
Nos intervalos da sua atividade, Julia, dedica os seus tempos livres a ajudar a cuidar de Emérita, uma doente terminal e na sequência de tal conhece Millás, o jornalista, que está a preparar uma reportagem sobre a eutanásia. Mas Millás, o escritor, vê em Julia o objeto perfeito de um romance. A braços com um terrível bloqueio criativo, Millás, a pessoa, refugia-se na cadeira de uma psicoterapeuta idosa.
É a realidade que assombra Millás, a pessoa, o jornalista, o escritor. As coisas tornam-se ainda mais complexas quando Emérita revela a Millás um segredo que guardou toda a sua vida. O que se assemelhava a uma reportagem mudou por completo durante as vistas a Emérita e o que era lógico torna-se absurdo e um dilema.
Ao longo do curto “A Mulher Louca” (apenas 190 páginas, para nosso descontentamento), Millás revela-se, expõem-se, arrisca-se. As metáforas concecionais são frequentes, assim como os delírios narrativos, as coincidências, os devaneios ou as interrupções (in)voluntárias da realidade.
Julia é, por exemplo, uma personagem cuja personalidade assume-se avessa. Alucina com a linguagem, ajuda palavras com problemas no seu consultório verbal. Deliciosamente saída da mente de Millás, Julia resulta da relação entre a literatura e a loucura, de um jogo criado em torno da dicotomia entre criatividade e rutura, características inatas à escrita do autor.
Millás consegue mesmo, com elevada distinção, abordar a insanidade de forma a extravasar os clichés do tema. A perceção da realidade é aqui adulterada e Millás é também ele uma “vítima” da narrativa assumindo uma personalidade tripla e bidimensional. Assistimos, deliciados, a uma fuga da banalidade do complexo narrativo simultaneamente com um processo intuitivo que busca forças e pertinência na inspiração e reflete (sobre) a criação literária.
Os desdobramentos pessoais, o carteiro analfabeto, o silêncio sem gramática, a enfermidade turística da existência, os senhores Porquesim e Porquenão, a morte assistida e uma certa intriga policial são outros componentes que somados ajudam a conseguir um todo que é sinónimo de um romance inteiro e imperdível pois “A Mulher Louca” revela o melhor de Juan José Millás, alguém que tem o condão de transformar a pura ficção em ficção pura.
In Rua de Baixo
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