“Don’t think about making art, just get it done. Let everyone else decide if it’s good or bad, whether they love it or hate it. While they are deciding, make even more art.” Andy Warhol
domingo, 22 de fevereiro de 2015
“Terra Amarga”
de Joyce Carol Oates
Se há conteúdos e títulos que se conjugam na perfeição, “Terra Amarga” (Sextante Editora, 2014), de Joyce Carol Oates, é paradigmático. É mesmo fel que se sente ao ler esta colecção de contos (negros) que versam sobre violência, abuso, violação, culpa e tristeza, ingredientes que, infelizmente, se cruzam em muitos relacionamentos, independentemente da sua dose de “normalidade” ou bizarria.
O ambiente de Nova Jérsia, Nova Iorque ou Minnesota, a perda de um cônjuge e o labirinto emocional que tal representa, assumem papéis decisivos no desenrolar destas histórias. Estas mulheres enlutadas procuram lutar contra monstros, com ou sem rosto, cujas armas são a brutalidade sexual ou física como uma forma de existência. E essa dor mantém-se, fica e fixa-se mesmo durante a ausência.
O livro abre com “Cabeça de abóbora”, um conto que traz a palco uma mulher de nome Hadley, viúva muito recente. Na ressaca, convida um jovem e excêntrico biólogo molecular, um quase-desconhecido, que invade o seu lar, corpo e alma. Sem capacidade de defesa e não querendo revelar uma fragilidade latente, Hadley fica à mercê de alguém que a beija e morde os lábios com uma fúria manipuladora, que tenta convencer a viúva de que é isso que ela deseja. E não será?
Mais à frente, “Sucessões”, o conto que abre o terceiro “capítulo” do livro, revela a forçada convocatória de Adrienne face a um Tribunal de Sucessões. O seu primeiro pensamento é sinónimo de uma sensação redentora e absorvente de uma dor que é interiorizada como “merecida”, pelo simples facto de estar viva. Mas a morte por vezes não é um ponto final. Adrienne é uma viúva confrontada com uma série de questões que colocam em causa a identidade do falecido marido. Seria ele um distinto historiador ou um terrível pervertido? Para desfazer a dúvida, esta mulher, ou o que resta dela, coloca em causa a própria sanidade mental.
Em “A história da facada” relata-se um acontecimento cujo horrível contexto adquire vida própria, independentemente de nunca se chegar a uma conclusão plausível, mesmo para quem foi testemunha. O incidente é demasiado doloroso para que seja relatado à inocente filha de Madeleine, principalmente por não existir uma certeza dos factos, característica muitas vezes presente nas narrativas de Carol Oates. O esfaqueado terá morrido? O assassino foi apanhado? Oates dá o ónus da dedução ao leitor.
Por vezes, sexo e violência dão as mãos e a punição pode ser reflexo de um orgasmo como morte certa. Em “Babysitter”, uma mulher casada encontra-se com um homem cujo nome não importa reter. Para ela é apenas um indivíduo qualquer. Mas este encontro nada tem de simples pois significa a traição, a infidelidade a marido e filhos. Esse acto de procura de prazer, e a luta das consequências que daí advêm, transformam a mulher adúltera na confessora do crime da traição e o seu amante em alguém que testemunha e a castiga, pois ela é uma mulher que merece sofrer, ser punida. Aqui, o sexo é sinónimo de luta e esses conceitos são indistinguíveis, principalmente para uma mulher que se confessa a um estranho, indivíduo esse que age mais como violador que amante.
Essa estranha sensação de partilha encontra também eco em contos como “Bonodo Momma”, que conta a relação entre uma mãe (lindíssima) e a filha enferma que nunca vai conseguir superar as expectativas da progenitora. A história é conduzida com uma sublime forma de narrar e o sentimento de derrota leva o leitor a perguntar quem perderá mais face a um futuro que supõe o vazio.
A disfuncionalidade é outro dos conceitos trabalhados por Oates e tal pode ser traduzido como a própria ideia da morte. Num conto como “Sorte filha da mãe”, a culpa junta-se como uma perfeita aliada para a desgraça, principalmente quando um pai morre no dia de aniversário de uma filha que acha essa “coincidência” como um presságio que interroga o amor entre pai e filha face a uma estranha noção de incondicionalidade.
“Amputada”, conto que encerra o primeiro capítulo de “Terra Amarga”, segue essa filosofia bizarra e traz a palco uma bibliotecária que perdeu as pernas e atrai um homem casado. É mais um no rol de candidatos a rejeitados, homens que devem sentir essa crua sensação de desamparo. No fundo, ela “apenas” ficou amputada de pernas e não do poder de seduzir.
Mas é “Sourland”, o último conto do homónimo livro, o mais impressionante relato da escritora norte-americana. Mais uma vez é uma viúva que ocupa o papel principal, no caso, a única sobrevivente de um terrível acidente de viação. Essa provação leva-a a interiorizar o pensamento do marido que sempre a alertou para ter cuidado com os erros que cometerá “sem rede”, pois a morte dele deixara-a por conta própria. Vítima de si própria, a mulher deixa-se cair num pesadelo que pode encarcerá-la para sempre.
Ainda assim, três semanas depois de o marido ter falecido, aceita o convite de um homem enigmático e decide viajar com ele. A necessidade de fugir da vida, de um somatório de passado e presente, leva Sophie para o deserto (literal ou não) com um desconhecido. Essa fuga leva-a para os braços de uma mente perversa que a faz pensar que está a ficar louca. Leitor e personagem são assim levados a cogitar que vivem a mesma história e que apenas o próximo passo pode salvar o que resta.
Com mais ou menos pormenores, maior ou menor sentido de injustiça, todos estes 16 contos, editados em publicações como os prestigiados The New Yorker e The Guardian – ou na (in)suspeita revista Playboy -, colocam o dedo na fragilidade humana face a um contexto que ultrapassa o controlo dos simples acontecimentos. Estes relatos não são aconselhados a pessoas sensíveis, nenhum dos textos de Oates o é.
Quem se atrever a pegar neste livro arrisca-se a percorrer caminhos inquietos, envoltos de armadilhas para a mente, trajectos que transformam e moldam gente que encara o luto como um personagem bizarro e fascinante que se atravessa no caminho e azeda ainda mais a vida. São páginas que servem para a autora exorcizar a perda de alguém que a acompanhou em quase cinco décadas, de uma agonia que rasga as emoções de alguém que perdeu o equilíbrio, de gente em ruínas, de despojos humanos, de pessoas normais.
In deusmelivro
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