“Don’t think about making art, just get it done. Let everyone else decide if it’s good or bad, whether they love it or hate it. While they are deciding, make even more art.” Andy Warhol
segunda-feira, 30 de março de 2015
“Dora Bruder”
de Patrick Modiano
Muita da literatura do século XX teve como “inspiração” o abominável período da Segunda Grande Guerra. Mestres como o italiano Primo Levi e o húngaro Imre Kertész, ambos judeus, deixaram obras que reflectiam e expiavam, de forma sublime, o Holocausto.
Dono de uma obra que contempla mais de trinta títulos editados, entre romances, livros infantis e guiões cinematográficos, o francês Patrick Modiano, o mais recente vencedor do Nobel da Literatura, enquadra-se também no nicho de Levi e Kertész e, “Dora Bruder” (Porto Editora, 2015), é um livro que faz jus aquilo que a academia sueca entendeu estar na base da sua escolha: «a arte da memória que utilizou para evocar os destinos humanos mais inalcançáveis e para revelar o universo da ocupação».
“Dora Bruder” é um hino à lembrança dorida, a feridas que teimam em não sarar. A narrativa fala-nos de alguém que em 1988 descobre, nas páginas de um exemplar do jornal Paris-Soir – datado de dezembro de 1941, período da ocupação nazi em França -, o anúncio sobre uma rapariga desaparecida. Homem e rapariga “partilharam”, no passado, as mesmas ruas, locais, espaços, vivências.
Essa conexão motiva esse alguém, no caso o próprio Modiano, nascendo assim, espontaneamente, laços entre a desaparecida Dora e o escritor que passa a “procurar” o paradeiro da menina judia, para saber a história de mais uma terrível vítima da guerra, do desespero, do destino.
Convém esclarecer que não estamos perante um livro que segue a normal narrativa de um “simples” romance. Patrick Modiano constrói “Dora Bruder” como um objecto literário assente em memórias, pensamentos vagos, memórias de familiares, cartas, fotografias, suposições e um forte sentido de desconhecimento face aos acontecimentos que traçaram o destino da menina. O resultado é um livro melancólico, escrito em forma de relato onde a burocracia e a esperança são ferramentas que podem, eventualmente, indicar o caminho certo de uma verdadeira perseguição (desolada) a um fantasma.
Quase como um detective, Modiano procura a parisiense Dora Bruder, filha de Ernest Bruder e Cécile Burdej, nascida a 25 de fevereiro de 1926. O ponto de partida são esses dados, encontrados em assentos de nascimento, relatórios policiais e, claro está, nas ruas de Paris. Para contextualizar a busca, o escritor “revive” a sua adolescência, as memórias dos pais e encontra paralelos entre as vidas das famílias Bruder e Modiano.
O sentimento de vazio que se inala ao respirar (e sentir) as linhas de “Dora Bruder” deixa ao leitor uma sensação tocante de perda. Modiano escreve sobre a sua demanda: «Eu não sei, nunca saberei». Apesar desse desabafo, ao folhear este livro somos levados a crer que conhecemos Dora, ainda que apenas saibamos a sua antiga morada e conheçamos dados soltos de burocracia sobre o seu internato, prisão e deportação.
Modiano consegue, como que por magia, fazer-nos sentir cúmplices do vazio da vida de Dora Bruder. As muitas referências ao conteúdo de cartas, entretanto trocadas e descobertas, transmitem paradoxalmente laivos de esperança e desespero. São esses os muitos fantasmas que marcam este livro, luzes que ora iluminam ora enegrecem o paradeiro de Dora Bruder.
Na página 31, Modiano confessa: «Ao escrever este livro, lanço apelos, como sinais de farol, mas infelizmente custa-me a acreditar que possam vir iluminar a noite». Mais do que querer apagar da memória um passado triste e incompreensivelmente real, o escritor transforma a sua busca numa forma de redenção, de paz interior. Este pequeno grande livro tem o dom da verdade, crua e dura, uma mensagem que nunca é demais ser conhecida, de um dos períodos mais negros da humanidade, de uma espécie de inverno (ou inferno) temporal.
In deusmelivro
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