“Don’t think about making art, just get it done. Let everyone else decide if it’s good or bad, whether they love it or hate it. While they are deciding, make even more art.” Andy Warhol
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
“Montedor”
de J. Rentes de Carvalho
O cenário de crise em Portugal está, infelizmente, envolvido numa dinâmica de eterno retorno. Ciclicamente, somos arrastados para um profundo estado de apatia no que toca ao desenvolvimento económico, social e pessoal.
Hoje, a profunda depressão que a sociedade portuguesa atravessa é como um dilacerante sentimento de déjà vu. O desemprego teima em manter-se elevado (ainda que alguns tentem desmenti-lo com base em subterfúgios envoltos de características pontuais ou sazonais), a confiança está no limiar do desespero e, uma das soluções encontradas por milhares, é a emigração.
É esse um dos paralelismos que encontramos em “Montedor” (Quetzal, 2014), o primeiro romance de J. Rentes de Carvalho, um livro que nos apresenta um anónimo personagem que, na distante década de 1960, sentia na pele a desesperança de muitas famílias portuguesas que, depois de muita luta, não encontra uma saída, um rasgo de futuro.
A solução passa por sonhar, por não desistir de um qualquer objetivo mas que, ainda assim, se desmorona com o passar do tempo. Ao viver uma vida onde a frustração é apenas erradicada (e a muito esforço) através de laivos de uma irrealidade momentânea, o presente pode ser sinónimo de uma morte lenta, de um impasse que corrói a alma e pode levar a quebrar fronteiras morais.
Ainda que através de uma (des)confortável lupa, “Montedor” reflete também uma das fases da vida de Rentes de Carvalho, quando foi obrigado a sair do país por questões políticas e que o tornou em um cidadão do mundo ao palmilhar as Américas passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Nova Iorque, como também alguns canto da Europa como Paris ou Amesterdão – esta última cidade que ofereceu ao homem nascido em Vila Nova de Gaia a oportunidade de se licenciar em Literatura Portuguesa, disciplina que lecionou entre 1964 e 1988.
Enquanto paira no ar um sentimento que traz à tona uma tensão constante, “Montedor” é um retrato onde o destino é adiado de forma crua e o medo está ao virar de cada canto da existência. Viver é, assim, entendido como uma luta entre o fantasma do “tentar ser” e a (triste) consciência do que se “é”.
Em uma sociedade que tem no “tacho” uma das mais tradicionais formas de sobrevivência social, o nosso personagem procura uma espécie de El Dourado. Os estudos fracassam, a tropa revela-se pouco útil e as austrálias, tão longe, não são alternativas reais. O recurso ao padre – em troca de uma franga – é sinónimo de um embaraço da desventura, uma forma de pedalar uma bicicleta que percorre um trajeto repleto de obstáculos entre o café e o local a que se ousa chamar de “casa”.
Viviam-se (tal como hoje) tempos onde a miséria de espírito é um reflexo da precariedade social de um país fechado em si mesmo sob a égide da ditadura. Ao “herói” de “Montedor” resta pouco mais do esconder-se no refúgio fugaz da felicidade, aqui entendido como o leito, bem como nas páginas de livros e jornais na esperança de antecipar o tal estado onírico que tarda.
Nas entrelinhas percebe-se também uma crítica mordaz ao hábito da Igreja que, no caso, não faz o monge. Mas talvez a salvação, ou não, passe mesmo por um matrimónio a contra gosto e a vida que mais parece a dor de um parto precoce e indevido possa endireitar por linhas tortas.
Com uma prosa direta, simples e repleta de uma portugalidade que se vive ainda fora dos grandes meios urbanos, “Montedor” é um livro fabuloso e a sua leitura é obrigatória.
Galardoado recentemente com os prémios APE (Associação Portuguesa de Escritores) para a Escrita Biográfica e Crónica, Rentes de Carvalho é, sem dúvida, um dos autores mais emblemáticos de língua portuguesa. Esta edição da Quetzal reflete esse estatuto e dimensão.
In deusmelivro
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