Um policial para todas as idades
Bishop’s Lacey, no coração do countryside inglês da década de 1950, vive momentos de alguma agitação aquando da realização da quermesse local. Uma das barraquinhas é diferente. Nela, uma velha cigana dispõe-se, em troca de algumas moedas, a ler a sina dos mais curiosos. Flavia de Luce não resiste e recorre aos préstimos da velha mulher e, a partir desse momento, desencadeiam-se uma série de bizarros acontecimentos na pacata aldeia.
Flavia tem onze anos e é a mais nova de três irmãs. Tem, na paixão pela química, a sua maior razão de vida. Conhecida pelo temperamento difícil, prefere a solidão do laboratório vitoriano – localizado na fria ala este de Buckshaw – à companhia de outros seres vivos, com uma honrosa exceção em forma de inspetor policial.
O pai, um filatelista inveterado, passa grande parte do seu tempo a examinar selos através de uma lupa especial, de forma a encontrar nos pequenos pedacinhos de papel algo que os transformem em especiais alvos de venda, pois as dificuldades financeiras que o pós-guerra adensou estão a fazer estragos. A mãe de Flavia, Harriet, a herdeira da propriedade e do espólio familiar, desapareceu nas montanhas no Nepal e está, presume-se, morta.
Enquanto a mansão se degrada, os jardins aparentam lugares abandonados há décadas, o papel de parede não se distingue da humidade, vão desaparecendo algumas peças do espólio da família. Mas Flavia tem outras preocupações, a maior das quais sobreviver à provação da existência das irmãs, cujo passatempo preferido é maltratá-la. Se Ophelia se perde diante da imagem que o espelho reflete na sua presença e Daphne se refugia na literatura, estas duas almas tão diferentes unem esforços para assustar Flavia, que apenas se sente segura a explorar fórmulas químicas ou ao volante da sua bicicleta Gladys, uma herança da mãe desaparecida.
E foi num desses passeios em duas rodas que Flavia entrou na referida barraca da cigana, acabando por se achar em sarilhos por, acidentalmente, incendiar o local. Apesar do calor das chamas e da aflição inerente, a velha acaba por escapar a tal provação e, na sequência desse infortúnio, Flavia sente-se na obrigação de se redimir e decide ajudar. A proposta é instalar a caravana da vidente em terrenos da propriedade da família de Luce que, em tempos, havia expulsado a velha alma dos mesmos lugares, pois suspeitava-se que tinha sido ela a pessoa que raptara uma criança da aldeia.
E, como Flavia tem uma espécie de íman para estranhos acontecimentos, ao visitar mais tarde a cigana encontra-a numa poça de sangue, à beira da morte. Ato de vingança ou não, este acontecimento desencadeia uma sucessão de bizarras ocorrências – entre elas conta-se a morte de um conhecido malandro de Bishop’s Lacey, a entrada em cena de Porcelain, neta da velha cigana que afinal dá pelo nome de Fenella, a intervenção de fanáticos religiosos e um nunca mais acabar de intrigantes acontecimentos.
Naquela que é a terceira aventura de Flavia de Luce, depois de “A Talentosa Flavia de Luce” e “Flavia de Luce e o Mistério do Bosque de Gibbet”, o escritor canadiano Alan Brandley traz-nos “Flavia de Luce e a Bola de Cristal da Cigana” (Planeta, 2014), um policial muito interessante, de características juvenis, narrado na primeira pessoa e que consegue, num ápice, levar o leitor para dentro de uma trama que tem como destacado interesse o modus operandi de uma menina de onze anos que se revela uma detetive de primeira água.
De uma forma bem-humorada e simples, Brandley mostra-nos o encanto de uma pacata aldeia através de um romance que vai buscar alguns pozinhos de perlimpimpim a tradicionais contos de “órfãs” que enfrentam as atrocidades das ciumentas irmãs, mas sem a pouco simpática figura da madrasta. Flavia é, sem dúvida, uma personagem fascinante, algo inocente e irresistível que se move num intrincado jogo entre o passado e o futuro e que, nesta aventura, abraça provações por si desconhecias de forma a desembaraçar uma sucessão de acontecimentos repleta de nós e pontas soltas. Conseguirá a menina de grandes olhos azuis desenlaçar estes mistérios?
In Rua de Baixo
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